Mortais

outubro 25, 2016
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Por José Carlos Campos Velho:

122913191_1GGO livro não é novidade. Atul Gawande é um cirurgião geral, que atua no Brigham’s and Women’s Hospital em Boston, EUA e um escritor laureado, com várias obras publicadas,  três delas sobre sua atividade como cirurgião. Aqui nos debruçaremos sobre seu último livro, Mortais, que lhe trouxe fama internacional, sendo publicado em várias línguas e países.

O titulo já adianta as questões que são abordadas pelo autor: Mortais – Nós, a medicina e o que realmente importa no final. Na introdução do livro, ele recorda que o primeiro contato que teve com a questão da mortalidade foi em uma aula no início do curso, onde o livro “A morte de Ivan Ilitch” de Tolstoi foi analisado. Posteriormente, ao longo do curso, esta história se desvaneceu frente às tecnicalidades que predominavam no aprendizado e na prática médica.

Foi mais tarde, já trabalhando como cirurgião, que o autor começou a perceber que o treinamento médico formal não o preparava para as situações que passaria a enfrentar cotidianamente: o envelhecimento, a dependência e a morte.  Mais do que tudo, lidar com a impotência e as limitações da  medicina em resolver questões por natureza inexoráveis. Lidar com seus próprios limites.

Eu soube de “Mortais” pela primeira vez por indicação de um colega oncologista do hospital, que me falou que eu precisava ler este livro, pois ele o fez lembrar de nossas conversas e reflexões em torno de um café, no conforto médico do hospital. 

Minha primeira impressão é que se tratava de um livro de cuidados paliativos. Mas, na medida em que eu progredia na leitura, fui percebendo que Atul Gawande vai muito além disso. Percebi que  tratava de doença e envelhecimento, de vida, de liberdade e autonomia, de ousadia.

O livro é impiedoso: sem metáforas como “a melhor idade” ou dourando a pílula com a “melhor fase da vida”, em determinado momento o autor cita Phillip Roth, no livro Homem Comum: “A velhice não é uma batalha; a velhice é um massacre”. Não estamos aqui nos referindo ao período mais áureo da maturidade, onde as habilidades ainda estão preservadas, os papéis sociais estão definidos, e a saúde relativamente boa – falamos do momento em que a doença e a dependência passam a rondar e determinar as agruras cotidianas, em que as coisas que eram feitas com facilidade passam a apresentar graus crescentes de dificuldade.

A ousadia vêm da forma de encarar estas questões. O livro é um libelo em favor da autonomia e da preservação da vontade individual, mesmo que isso signifique o enfrentamento da precariedade. Como geriatra, fiquei tocado quando no capítulo “Caindo aos pedaços” ele faz uma descrição detalhada de uma consulta geriátrica, onde fica admirado com a diferença da abordagem do geriatra frente à uma senhora idosa e de quanto questões às quais ele nunca dera muita atenção tomavam uma importância fundamental – pois a doença dava lugar à pessoa e o valor essencial era a preservação da capacidade funcional e da autonomia – a consulta se encerra com o encaminhamento da paciente para um podólogo. Mas o surgimento da dependência – e o avizinhamento da questão de onde o velho viverá seus últimos anos de vida – é um dos momentos em que o livro é firmemente questionador: o autor faz uma extensa pesquisa das alternativas de moradias para os idosos em situação de dependência, de um ponto de vista histórico, detalhando a evolução desta questão nos EUA e as variabilidade de modalidades em diferentes lugares do país. O que fica claro é que podemos envelhecer, mas continuamos essencialmente seres humanos. E talvez o valor fundamental para o ser humano seja a liberdade. Liberdade que se perde ao entrarmos em uma instituição.  O livro Manicômios, prisões e conventos, de Erwing Goffman, revela a faceta obscura destas “instituições totais”. Atul Gawande as compara com as instituições geriátricas de longa permanência , como atualmente são chamados os asilos e casas de repouso. E compreendemos facilmente por que as pessoas querem continuar vivendo suas vidas em suas casas até quando puderem, mesmo precariamente.  E que, por mais que sejam amigáveis, modernas  e estruturadas, as instituições geriátricas continuam sendo locais fechados e isolados, com regras de funcionamento e horários, a despeito dos esforços no sentido de humanizá-las. Também fica claro que o olhar do outro, que pode ver em determinado lugar o melhor espaço para seu parente ficar, não é visto pelo velho com os mesmos olhos,  pois ele vê ali ruir a independência que duramente conquistou ao longo da vida. Porém, sem ingenuidade, o autor também percebe o paradoxo de tal resolução, a institucionalização , que revela-se às vezes como a única possível, e busca a aceitação e a resignação como os princípios a serem adotados por todos os atores deste drama, frente a tal situação.

Finalmente, o livro trabalha com profundidade a questão da finitude e da dignidade da morte. E identifica claramente os cuidados paliativos como a alternativa mais adequada frente às doenças marcadas pela inexorabilidade do fim em sua evolução, a despeito de todos os esforços terapêuticos realizados. E neste momento, a vivência da doença de seu pai, Atmaram Gawande, também médico,  urologista, que teve um tumor raro na medula espinhal passa a ser a protagonista principal do livro. A angústia frente à impotência, frente às tomadas de decisões, frente ao sofrimento e à incerteza – o cirurgião literalmente  percebe sua própria carne sendo cortada.  O autor não cita em nenhum momento a Slow Medicine, mas seus princípios estão presentes na reflexão cuidadosa sobre as decisões terapêuticas, no cultivo de uma relação médico-paciente sólida e genuína, no respeito às decisões, aos valores e à cultura do paciente e no questionamento do uso intempestivo da tecnologia diante do inevitável.

Dividido em 8 capítulos – “O ser independente ; Caindo aos pedaços; Dependência; Assistência;  Uma vida melhor; Desapegar-se;  Conversas difíceis e Coragem” , o livro é fruto de uma pesquisa profunda e tem uma extensa bibliografia. O próprio autor, em um determinado momento, revela que escrever para ele não é um ato fácil, em que as palavras brotam espontânea e harmoniosamente de sua mente, mas um trabalho exaustivo e obstinado. Em seu epílogo, estamos quase presentes ao lado de Gawande, quando ele, sua mãe e sua irmã, vão jogar as cinzas do pai nas águas do Ganges , na cidade sagrada de Varanasi,  na Índia, de acordo com o desejo expresso de seu pai.  Inúmeras vezes trechos do livro poderiam ser citados, pois são de beleza e profundidade incomuns. Mas optei por trazer este trecho, que sintetiza a obra em poucas palavras: “Os dias finais de nossas vidas são dedicados a tratamentos que confundem nossos cérebros e exaurem nossos corpos em troca de uma chance mínima de obtermos benefícios. São passados em instituições – casas de repouso e unidades de tratamento intensivo – onde rotinas regradas, anônimas, nos isolam de tudo o que nos é importante na vida. Nossa relutância em examinar de forma honesta a experiência do envelhecimento e da morte aumenta os males que causamos às pessoas e lhes nega os confortos básicos de que mais precisam. Na ausência de uma visão coerente a respeito de como as pessoas poderiam viver plenamente até o fim, permitimos que nossos destinos sejam controlados pelos imperativos da medicina, da tecnologia e de estranhos”. Francamente, uma leitura necessária.

1 comentário

  1. Francamente, uma leitura necessária. Essa frase final da sinopse que Dr. José Carlos faz do livro eu acrescentaria, uma leitura indispensável dentro e fora da área da saúde, pois cada ser humano deve se preparar para envelhecer e morrer, eventos que não acontecem de uma outra para outra mas que pegam a todos desprevenidos e o despreparo pode causar um sofrimento desnecessário ao ser humano como um todo. Estar preparado não significa querer morrer ou achar que o envelhecimento seja a melhor fase, pois não o é, sou velha e sei disso na prática. Mas temos uma responsabilidade que não devemos outorgar a ninguém, é com nossa própria vida, seja no envelhecimento ou na morte. Para haver dignidade no processo de envelhecer ou morrer é preciso haver dignidade na existência que precede a esses eventos e isso está contido em nossas ações, comportamentos, atitudes e valores.

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