Slow Medicine na Amazônia – Anotações de uma Triagem

janeiro 23, 2017
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Por José Carlos Campos Velho:   Em novembro de 2016, tive uma nova oportunidade de participar da 36ª Expedição da ONG Expedicionários da Saúde  – EDS, desta vez para a região do Alto Rio Negro, naquele que é um dos  maiores municípios brasileiros em extensão territorial, São Gabriel da Cachoeira. Nossa função era a triagem dos indígenas de áreas remotas, onde identificaríamos os pacientes que tivessem indicação de cirurgia de hérnias e catarata. Os EDS desenvolvem desde 2004 um esforço de levar atendimento cirúrgico de ponta para populações indígenas em áreas remotas, com foco no tratamento de hérnias e catarata, em decorrência do grande impacto que estas patologias causam na vida laboral e social de seus portadores.

A sede desta expedição era em Nossa Senhora de Assunção do Içana, em uma comunidade administrada pela Igreja Católica. Paralelamente à expedição principal, um grupo de oftalmologistas e cirurgiões-plásticos foram até Iauaretê, onde fariam um mutirão, em um pequeno hospital local, para o tratamento cirúrgico de triquíase , grave complicação oftalmológica do tracoma, com uma incidência particularmente elevada na etnia Hupda,  um grupo indígena nômade, vítima de um grave problema, a incidência de alcoolismo em sua população, quadro que tem tomado uma extensa e devastadora dimensão, com a progressiva marginalização deste povo.

Partindo de Iauaretê., prosseguimos eu, minha esposa Roberta Murasaki Cardoso, cirurgiã e Francisco Crestana, o Chicão, oftalmologista, até São Joaquim, no extremo-norte do Brasil, na chamada Cabeça do Cachorro, divisa do estado do Amazonas com a Colômbia. A comunidade de São Joaquim é formada particularmente por indígenas da etnia Kuripaco. O racional de enviar os médicos para estas regiões é que são áreas de acesso muito remoto, onde as dificuldades de deslocamento são enormes, e o acesso à serviços de saúde muito precário, particularmente a serviços médicos. A triagem dos casos com indicação cirúrgica se torna importante pois a logística de transporte de pacientes da comunidade até a sede da expedição é complexa e de custo bastante alto. Os pacientes teriam de ser transportados de avião até São Gabriel e de lá de barco até a expedição. São Joaquim  é uma comunidade localizada num lugar aprazível, os indígenas são pessoas doces e gentis, e vivem seu cotidiano tranquilo, caçando, cultivando suas roças e uma variedade de frutas – abacaxi, côco, caju; são exímios artesãos e produzem farinha de mandioca. No fundo das casas com frequência encontramos pequenos cercados onde é cultivada a hoje famosa pimenta baniwa – uma das características dos povos desta região é o consumo deste tempero e talvez em decorrência disso uma alta incidência de quadros dispépticos entre eles. A primeira observação que pude fazer, da perspectiva da Slow Medicine é que, diferente do que temos visto nos grandes centros, onde o excesso de recursos diagnósticos e terapêuticos é o habitual, lá nos defrontamos com a absoluta carência de quase tudo, em termos de atenção à saúde. Faltam recursos humanos, a tecnologia diagnóstica é praticamente inexistente, dispõe-se de um número restrito de medicamentos. Porém uma coisa chamou-me a atenção: embora o tempo para o atendimento dos pacientes fosse escasso, o fato de nos aproximarmos, trocarmos algumas palavras – a maior parte das vezes com a intercessão de um tradutor – e examinarmos com os recursos que dispúnhamos – um esfigmomanômetro, um estetoscópio, um otoscópio, o glicosímetro, o oxímetro, os instrumentos mais importantes que usamos foram a escuta, o toque, o cuidado compassivo. E neste momento tive uma epifania, lembrando-me de Abraham Verguese e sua compreensão do encontro clínico como um ritual. E pude compreender o papel do médico como curador, assemelhando-se aos xamãs e aos pajés, dando consolo, orientação e suporte. Bastava estar ali presente, e dividir compassivamente o sofrimento do outro, eventualmente acenando com uma perspectiva de resolução, melhora ou alívio. No final da tarde, fui visitar um velho índio em sua casa, pois estava com dificuldade de locomover-se, por conta de uma provável infecção na perna – esta situação, “visitas domiciliares”, iriam se repetir algumas vezes ao longo da expedição. Disponhamos de antibióticos, e  depois de ver o caso com a Roberta, que é cirurgiã-vascular, prescrevemos o tratamento e fomos surpreendidos com o agradecimento: um abacaxi para cada um de nós – deliciosos, como pudemos comprovar depois. Voltamos para o Pelotão Especial de Fronteira, onde havíamos sido recebidos pelo Exército, em estado de graça.

No dia seguinte, após termos atendido pela manhã e encaminhado os pacientes para São Gabriel, fomos de helicóptero até a longínqua comunidade de Canadá, onde começamos a tomar contato com a etnia Baniwa  . O enfermeiro William, paulista e conhecedor da região e dos indígenas, era nosso porta-voz e nosso guia. Lá prosseguimos nosso trabalho, vivendo experiências incomuns – uma delas a visão fantasmagórica da aldeia vazia de madrugada, com o chão de areias brancas alumiado por uma “super-lua”. Em um determinado momento, sentei-me ao lado do Francisco, que conversava com um indígena. Ele contava de como estavam trabalhando no resgate de suas tradições, entre elas o canto e a dança  , que seus ancestrais executavam num ritmo quase diário, cuja intenção era a manutenção da saúde e da agilidade do corpo, e que havia sido considerada pecaminosa por missionários e proibida de ser executada. Fiquei impressionado com o relato dos benefícios que ele atribuía à preservação da saúde com o ritual cotidiano da dança, melhorando a flexibilidade e a mobilidade das articulações. A dança baseia-se nos movimentos dos animais, e faculta uma integração à natureza e à comunidade. Naquela noite, ainda visitamos uma menina em casa, portadora de uma grave hidrocefalia, cuidada com muito desvelo pelos pais. Mais uma vez o aforisma  curar algumas vezes, aliviar quase sempre, consolar sempre esteve presente em nossas mentes.

Prosseguimos nossa viagem descendo o rio Içana de voadeira, um pequeno barco com motor de popa, por longas horas observando somente o rio de águas negras e profundas, a insondável floresta nas margens e os céus, cientes de nossa pequeneza. Paramos nas comunidades de Macedônia e Tucuman. Desde minha chegada pude observar o grande número de portadores de hipertensão arterial, boa parte deles presumidamente em uso de medicação – o Captopril é o padrão naquela região;  contudo a grande maioria não se encontrava controlada. O consumo de grandes quantidades de sal é alarmante entre os indígenas, que o utilizam para conservar os alimentos e também como tempero – e que acredito que seria a grande medida para o enfrentamento desta doença, a redução do consumo de sal, como já apontamos no artigo que citamos anteriormente. Creio que inundar as aldeias de anti-hipertensivos, com o risco de estarem sendo usados de forma irregular, em doses inadequadas, sem modificação  dos hábitos alimentares – aliás, um retorno aos seus hábitos milenares, mais saudáveis – parece-me uma estratégia pouco efetiva de prevenção e controle da hipertensão arterial. Alguns dias depois, assisti a um simpósio de Cardiologia após ter voltado para São Paulo, no qual foi abordada a Medicina Personalizada”  em Cardiologia” . Nesta ocasião conheci um pouco  melhor o conceito de farmacogenômica,  e não pude me furtar ao pensamento de que determinadas classes de antihipertensivos talvez não fossem as mais eficazes em populações indígenas – este raciocínio é somente uma ilação. Mas efetivamente nossa capacidade de avaliar a eficácia terapêutica dos IECAs em indígenas hipertensos é muito limitada. Tal reflexão vem de encontro ao  Princípio da Slow Medicine , que nos pontua a necessidade da individualização do cuidado.

Já no final de nossa jornada, nos encontrávamos em Nossa Senhora de Assunção do Içana, quando fui convocado para fazer uma visita domiciliar num local próximo à comunidade, atravessando o rio. A foto que ilustra a cabeceira de nosso site foi tirada nesta ocasião. O sol se punha e no barco que vemos chegando estava  a família do indígena que eu tinha ido avaliar. Tratava-se de um nonagenário, que recentemente havia recebido alta do hospital em São Gabriel da Cachoeira, após uma longa permanência na CASAI do município. Entrei na casa de chão batido e em uma rede encontrava-se o paciente, acompanhado pelo seu genro. Caquético, praticamente não estabelecia contato. Estava com uma sonda vesical de demora e fraldas. Examinei-o, observei lesões por pressão na região sacral e trocantérica. Olhei pela janela, onde se via o entardecer amazônico, e pensei no que fazer. Conversei com o genro para saber se algum momento o sr. M.O. tinha manifestado algum desejo. Ele falou que ele havia expressado que não gostaria de voltar para o hospital e que preferia permanecer em sua casa. Era o que eu precisava ouvir. Cuidados paliativos na selva. Os expedicionários permaneceriam por no local por 10 dias, e pudemos planejar como poderíamos contribuir para cuidá-lo – fazer os curativos diariamente, proceder à reavaliação médica, enfim, fornecer o suporte necessário. Estávamos nos preparando para voltar quando chegou o barco com sua filha e seus netos. Uma cena inesquecível, que impregnou minha retina e minha memória – o esplendoroso pôr-do-sol, a superfície dourada do rio. Conversei um pouco com a filha, e a decisão foi tranquila: íamos procurar proporcionar cuidado e conforto, com os recursos que dispúnhamos. Soube depois que o que havíamos planejado foi executado pela enfermagem, e que o sr. M. O. foi à óbito em sua casa, um mês depois.

No dia seguinte, mais uma longa viagem de voadeira até São Gabriel. No caminho, ainda procedemos à triagem na comunidade de São José, um lugar populoso, e com enormes necessidades de assistência e uma grave carência de recursos. Um paciente em franca insuficiência cardíaca foi encaminhado para o hospital – não havia praticamente quaisquer medicamentos que pudéssemos utilizar para proceder a um atendimento de urgência.

Chegando à São Gabriel, fomos recebidos por Ricardo Affonso Ferreira, ortopedista, idealizador e coordenador da ONG, no porto fluvial da cidade. Ao longe, no horizonte, víamos a Bela Adormecida, uma curiosa formação geológica, que lembra a princesa da Disney em sono profundo. Ainda restava a triagem na cidade. O centro de saúde era simples e bem organizado, e os profissionais de saúde gentis, comprometidos e interessados. Diferente do que eu havia observado nas aldeias, atendi vários diabéticos – sugerindo a dimensão da relação desta doença com os hábitos da civilização. Combinei de ver um paciente em casa no dia seguinte, um grave quadro de pênfigo, na companhia do dedicado enfermeiro do centro de saúde. Ali terminava a jornada. Agora era a longa viagem de volta.

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Este relato não se propõe a qualquer análise científica da saúde indígena e tampouco detém uma visão antropológica daquela situação. É muito mais a narrativa de uma vivência singular da prática médica, a partir do olhar uma pessoa que tem sido tocada pela filosofia da Medicina  sem Pressa e de como ela pode ser uma referência nos mais diversos contextos e ambientes onde o cuidado à saúde é praticado.

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