A arte como salvação

outubro 23, 2024
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Resenha do livro “A ARTE DE ESPANTAR DINOSSAUROS” de André Islabão

Por: Carla Rosane Ouriques Couto

 “O que distorce o tempo é nada menos que a intensidade de nossa presença a cada instante.” (p. 171)

          Quais pedras estão a rolar no pensamento de André Islabão e a ressoar na mente e no coração de quem se preocupa com o “estado da arte” no qual se encontra a medicina?

           Uma primeira pista seria o primoroso prefácio de “A Arte de Espantar Dinossauros”, escrito por dois ícones da Slow Medicine e de quaisquer movimentos mundiais que busquem o resgate da medicina centrada na pessoa e nas comunidades, liberta das leis do mercado: Juan Gérvas e Mercedes Pérez-Fernández, médicos rurais espanhóis. Gérvas e Mercedes convidam os críticos, os inquietos, os que sentem falta de algo quando se tornam pacientes, os que gostariam de ver seus idosos partirem em paz; a seguir a leitura sobre as tantas artes que nos auxiliam a espantar obstáculos ou buscar estratégias para promover encontros entre pacientes e profissionais de saúde. Um encontro hoje apressado, pleno de desvios, interesses conflituosos, negociatas e desconfianças.

          Pensando na obra de André Islabão e indagando por qual dimensão da vida ela navega e nos atravessa, um trecho de Gérvas pareceu-me essencial para situar “A Arte de Espantar Dinossauros”. O médico, para além de mágico, salvador ou negociante, precisa ser um tradutor, um intérprete do sofrimento do paciente. Para exercer essa interpretação ele precisa se apropriar do território “vida” dessas pessoas, pois a forma como vivem, trabalham, convivem, lutam, amam e sofrem aparece do outro lado da mesa do médico, transmutada em sintomas, dores e angústias. Quem está doente configura todo um cenário de seu adoecer, protagoniza sua peça de teatro própria, pinta um autorretrato, esculpe um “eu” singular desse momento, atualiza suas memórias e traumas. 

          Entendo então que é desse espaço, desse lugar estranho até para quem o cria, nessa dimensão sem contornos nítidos, da qual conseguimos perceber somente um sintoma, uma demanda aparentemente biológica, que André Islabão se ocupa. É nesse espaço que André caminha, com seu instrumental médico é claro, mas com muitas outras armas. São essas armas que nos permitem chegar mais perto dessa obra de arte que cada paciente carrega ao entrar em uma sala de atendimento. Uma obra inacabada, às vezes destruída, às vezes em reconstrução, em reforma, feita de elementos sempre singulares. 

          Como podemos nos propor a olhar, perceber essa obra de arte, se vivemos nós distantes de qualquer manifestação artística? Se não desenvolvemos a sensibilidade necessária para essa ousada jornada? 

          Podemos tentar a ciência da linguagem e as melhores técnicas de comunicação clínica. Mas ainda assim não será suficiente. A interpretação vai precisar de todos os nossos sentidos. Aqueles que são expressos na poesia, na música, na literatura, na pintura, no cinema, em tudo que se pode chamar de “arte”.

          André fala aos seus leitores de querer ser uma inspiração. Inspiração que nos motive, nos impulsione a nos tornarmos esses intérpretes do sofrimento humano. Porém creio que se trata de algo além: seus textos são instrumentos muito potentes na prática do cuidar. Também Gérvas nos lembra o que são “consultas sagradas”: aquelas em que o paciente chora. Diria que também são consultas sagradas quando nos encontramos junto com um paciente numa música que ele adora, que tem significados. Ao discutir um filme que fez sentido em sua vida. Ao olharmos com uma criança o seu desenho. Nesses espaços sagrados encontraremos os delicados fios que tecem seu adoecimento e sua capacidade de ter saúde, pois são feitos de um mesmo material, abstrato, complexo de se colocar em palavras, como aquela língua do maluco da praça que espantava os dinossauros de uma pequena cidade. É preciso adentrar esse espaço entre o maluco e os dinossauros.

          André usa duas vertentes de sua capacidade tão bem descrita por Saramago: “Se podes olhar, vê; se podes ver, repara”. Uma vertente para que utilizemos a arte em cada encontro com o paciente, para que o interpretemos melhor, e uma outra que nos permite, através da arte, perceber o mal dos excessos e distorções que perpassam e invadem os sistemas de saúde atuais. Suas metáforas nos ajudam a entender ofertas que não são humanas em sua origem, que negam o envelhecimento e a morte dignas. 

          Com as obras de Picasso, Hans Arp, Mondrian, Dalí, Paulo Ito, André nos lembra não ser possível fragmentar um ser humano, tratá-lo como um quebra-cabeças que ninguém consegue montar ao final de uma linha de produção, como têm funcionado com frequência os vários dispositivos dos sistemas de saúde. Somente o tempo irá nos permitir visualizar com mais clareza o sofrimento singular de cada pessoa (separar as pontes de Rob Gonsalves dos barcos), e como nos mostra Rembrandt (pelo olhar de André) só então encontraremos a beleza, que também sempre existe, em cada ser humano. E a loucura como a sociedade a define, será relativizada pela sensibilidade das pinturas de Bosch e Bruegel.

          O cinema e o teatro são espelhos da vida, nos permitem o lugar de expectadores de cenas que podem não estar tão claras no cotidiano: a medicalização da vida, a pressa de viver empurrando os ponteiros do relógio cada vez mais velozmente, negando a necessidade de pausas e introspecção, a cegueira pela qual somos conduzidos por inovações tecnológicas. André nos mostra essas cenas com precisão, lembrando que não temos mais tempo para viver “aquele momento”, ele acaba sendo só filmado, nos escapa rapidamente. Assim a velha questão de Shakespeare permanece: “Who is there?” A humanidade segue torturada e vacilante como Hamlet. O que nos tornará inteiros, íntegros, e então saudáveis? O que precisamos para “ser” e sentir que estamos vivos?

          Da mesma forma, através da literatura e da poesia, nas obras de Clarice Lispector, Bukowski, Dickinson e Saramago, André retira preciosos alertas: a morte nasce conosco, e precisamos viver sob a sua égide, honrando com a vida esse momento final, evitando a ilusão da imortalidade e da juventude eterna.

          Como um típico médico Slow, André Islabão é um médico que cria músicas. E é um pianista que prescreve. Leva o som terapêutico de seu piano a pacientes idosos, e faz parte de uma banda, onde exercita a saúde de fazer parte de um grupo especial de amigos. Em seu livro consegue com muita delicadeza extrair da música várias dimensões inerentes a uma vida significativa: um tanto de rebeldia é necessário, um tanto de drama é importante, momentos de tédio são relevantes, as pausas também. E por fim o silêncio pode ser também pacificador e consolador. 

          A “Arte de Espantar Dinossauros” é uma obra absolutamente coerente com o movimento Slow Medicine, no propósito de cuidar não só com incorporação científica e tecnológica, mas com todos os nossos sentidos, que nunca serão reproduzidos a contento pela máquina, pelos procedimentos e pelos medicamentos. Não se trata de inteligência apenas, e sim do caleidoscópio de afetos, sentimentos e paixões humanas. 

          Dessa forma, o livro de André Islabão é um guia de aprimoramento de nossa sensibilidade, não só para sermos melhores profissionais de saúde, mas para nos aproximarmos de uma vida sagrada, capaz de transcender, pelo menos em alguns momentos, nosso destino comum: pobres criaturas em busca de luz.

                                                        “Salvos pela arte, passamos a entender que a morte, mais do que um fim, pode representar uma libertação.” (p.165)


Carla Rosane Ouriques Couto é médica pela UFSM, especialista em Pediatria, Medicina de Família e Comunidade, Saúde do Trabalhador, Saúde Pública, Gerenciamento de Unidades Básicas, Educação Médica e Terapia de Família. Mestre em Psicologia Social. Psicanalista em formação. Educadora na UNASUS/Programa Mais Médicos. Vivendo o tempo sagrado de ser avó. 

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Bráulio Muzzi Ribeiro de Oliveira
Bráulio Muzzi Ribeiro de Oliveira
1 mês atrás

Muito bom!

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