A arte da moderação

setembro 18, 2020
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O mestre disse: Quem se modera, raramente se perde.

Confúcio

A crise atual escancarou uma realidade nova para muita gente: a medicina não é uma ciência exata em que as respostas são absolutas e indiscutíveis. Nem as condutas médicas são sempre definidas por protocolos científicos bem estabelecidos e inquestionáveis. Isso tudo porque os estudos científicos podem gerar resultados divergentes e porque os próprios médicos têm pontos de vista diferentes. Além disso, ao tratarmos de pessoas de carne e osso temos que adaptar cada conduta à realidade da pessoa que busca ajuda. Para isso, a ciência médica, com seus estudos e suas estatísticas, serve como uma ótima ferramenta para pautar as decisões que tomamos. Mas é importante termos em mente que esta ciência médica é exatamente isso: uma ferramenta. Ela não deve ser confundida com a própria medicina, a qual é tanto uma ciência quanto uma arte.

Muito se tem falado sobre a primazia da ciência e de como todas as condutas deveriam ser baseadas em evidências científicas, mas é importante lembrar que muitas das coisas mais evidentes nunca chegarão a ser testadas empiricamente devido a dilemas éticos e ao simples bom senso. É por isso que nunca veremos um estudo comparando paraquedas e placebo. Além disso, uma consulta empática, um abraço caloroso e uma escuta atenciosa nunca foram testados em ensaios clínicos randomizados e nem por isso duvidamos de sua eficácia. O importante é não cairmos em nenhum dos dois extremos: nem curandeirismo nem fundamentalismo científico. É preciso, como de costume, haver equilíbrio e bom senso. 

Quando se diz que algumas práticas associadas aos cuidados de saúde não teriam base científica – como poderia ser o caso de algumas práticas integrativas e complementares ou da psicanálise – é preciso ter cuidado, pois não ter uma base científica robusta ou não preencher determinados critérios científicos não significa que elas não mereçam espaço no cuidado do paciente ou mesmo que sejam “pseudociências”. Aliás, o próprio termo pseudociência, apesar de escolhido por Karl Popper para essas situações, parece desnecessariamente pejorativo. O fato de uma coisa não ser considerada ciência pelos moldes atuais não a torna menor ou inútil. 

Sigmund Freud

No exemplo citado da psicanálise, alguns poderiam chamá-la de teoria, especulação ou fantasia, mas nem por isso o trabalho realizado por Freud se apequenaria. É bom lembrar que, independente do nome que se atribua ao seu trabalho, Freud fez mais pela humanidade do que muitos pesquisadores que, apesar de seu domínio das ferramentas estatísticas, nunca estiveram frente a frente com um paciente, ali onde a medicina “acontece”. Ao desbravar os mistérios da mente humana com as escassas ferramentas da época e sob os paradigmas disponíveis, ele abriu um caminho que ainda não foi esgotado. Considerar que o seu trabalho é uma “pseudociência” a partir de critérios filosóficos definidos após a sua época não seria justo, assim como não é correto questionar a importância de suas teorias a partir de técnicas de neuroimagem criadas muitas décadas depois de sua morte. Atacar Freud e o caminho aberto por ele é um pouco como atacar Descartes. Pode-se questionar e discutir o dualismo cartesiano, mas não se pode negar que a sua empreitada metafísica – totalmente não científica para os moldes atuais – abriu as portas da percepção humana para a própria consciência. Sua importância é tão grande que ainda hoje é difícil encontrar investigações científicas da consciência humana que não o tomem como ponto de partida.

É preciso cuidado para não cairmos na armadilha do cientificismo e para não menosprezarmos saberes e práticas acumulados ao longo do tempo e que podem ter servido de base para nosso conhecimento atual. Um exemplo disso é o fato de o próprio Gerald Edelman, um dos maiores neurocientistas e exploradores do cérebro humano e da consciência, citar o mestre vienense em seus trabalhos. Não é difícil imaginar o inconsciente freudiano influenciando os “núcleos dinâmicos reentrantes” que formariam a consciência na concepção de Edelman. Por mais que o rigor científico seja importante e deva sempre que possível ser buscado, parece evidente que ele nem sempre é necessário. Aliás, o momento atual mostra que aguardar um consenso científico alcançado a partir de ensaios clínicos e modelos matemáticos pouco ajuda para mitigar os impactos de uma crise. Decisões difíceis devem ser tomadas, e a verdade é que elas não têm como se basear em dados científicos robustos. 

Talvez aproveitássemos melhor toda essa energia gasta com tentativas de desmontar as práticas mais antigas e ancilares da medicina se a canalizássemos para tentar corrigir defeitos evidentes no método científico atual, como os onipresentes conflitos de interesse econômicos que distorcem a boa ciência e minam a sua credibilidade. Outra questão importante seria refletir sobre o quanto realmente avançamos ao trocarmos os conceitos “pseudocientíficos” da psicanálise pelo paradigma do desequilíbrio de neurotransmissores. Há quem considere que trocamos aquela “pseudociência” por uma epidemia de sobrediagnósticos de doença mental e por um excesso brutal no uso de psicofármacos. Talvez devêssemos mais uma vez procurar um equilíbrio entre esses dois extremos, e a psicologia, com suas variadas formas de psicoterapia, certamente faria parte dessa solução.

Para nós médicos, a moderação é fundamental, sendo importante para reconhecer as situações em que o rigor científico formal é imprescindível e aquelas outras em que nos basta ser humanos e ter bom senso. É impossível fazer boa medicina apenas com a ciência, deixando de lado a arte de considerar cada pessoa que busca ajuda como um ser humano único, que tem seu próprio tempo e suas próprias ideias. Há tantas coisas na vida que nos fazem bem e que não se baseiam em nenhuma ciência sólida, como a música, a poesia, o calor humano e a empatia. E a importância dessas coisas belas dificilmente será comprovada cientificamente. Nossa arte enquanto médicos é descobrir quando e como melhor aplicá-las a quem delas necessita. 

______________

André Islabão: Médico internista, mas também pai, músico, tradutor, compositor, artista e escritor. Autor do livro “Entre a estatística e a medicina da alma – ensaios não controlados do Dr. Pirro”.

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GENIBERTO PAIVA CAMPOS
GENIBERTO PAIVA CAMPOS
4 anos atrás

ACHO QUE ESTE TEXTO MERECERIA UM DEBATE MAIS ADEQUADO AO SEU CONTEÚDO E À SUA VERDADEIRA MOTIVAÇÃO, ALGUMAS FORMULAÇÕES DO AUTOR SÃO SIMPLESMENTE INACEITÁVEIS, OU NO MÍNIMO QUESTIONÁVEIS. NÃO SOMOS TÃO INGÊNUOS.
E DEPOIS, QUEM SERIA CONTRÁRIO À MODERAÇÃO?
SUGIRO UMA REFLEXÃO MAIS ATENTA…

José Carlos Campos Velho
José Carlos Campos Velho
4 anos atrás

Obrigado pelo comentário. Talvez fosse interessante que você pudesse apontar com mais clareza quais foram as formulações tidas como inaceitáveis ou quesionáveis, para permitir que o autor pudesse refletir acerca das mesmas. Acabamos de viver um momento em que a moderação estava distante de qualquer debate médico mais cuidadoso e ponderado – portanto, a moderação se faz cada vez mais necessária, ao invés gritaria que observamos na mídia e nas redes sociais. Da mesma maneira, sugiro uma refle≈ão mais atenta. Um abraço.

Ronaldo Figueiredo Taddeo
Ronaldo Figueiredo Taddeo
4 anos atrás

Achei este artigo excelente e baseado no bom senso que nós médicos devemos ter.
Atualmente, a medicina baseada em evidências está tirando o espírito critico dos médicos e sua reflexão sobre o tratamento medicamentoso , a experiência que o médico acumula durante os vários anos de estudo, e atendimento aos pacientes, que respondem diferentemente ao enfoque terapêutico .
A melhor medicina é a baseada em conhecimento.

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