Por André Islabão
“Pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo.” (Desconhecido)
O charlatanismo é coisa bem antiga. Alguns séculos antes de toda essa confusão atual, Voltaire já dizia que o charlatanismo havia começado no exato instante em que o patife original encontrou o primeiro idiota. Porém, embora seja verdade que o charlatanismo envolve sempre um certo grau de patifaria, suas vítimas nem sempre são idiotas, sendo muitas vezes apenas pessoas boas e comuns que são pegas de surpresa por profissionais um tanto mal-intencionados.
É exatamente para apontar o perigoso desvirtuamento da atividade médica rumo ao charlatanismo que Kurt Kloetzel publicou há algumas décadas seu ABC do Charlatão, livro com aura de cult onde o autor destila ironia e indignação a fim de desmascarar os charlatães que dificultam o trabalho dos profissionais sérios, ameaçam sobremaneira a saúde das pessoas e, principalmente, minam a credibilidade da medicina.
Para Kurt, a primeira “qualidade” do charlatão é a ganância. Jamais encontraremos um charlatão puramente filantropo que não tenha o lucro pessoal entre seus objetivos principais. Isso exige que ele seja também um oportunista nato que sabe aproveitar qualquer oportunidade que surja para obter ganhos pessoais vultosos. Se a tal “soroterapia” está em alta, logo o charlatão se transforma em um especialista no assunto – o charlatão é um camaleão e um mestre da comunicação! – e prontamente instala seu próprio “serviço de soroterapia integrativa e funcional”, assim com um nome bem comprido mesmo que é para se diferenciar de seus nobres colegas de charlatanismo.
É preciso ser criativo nesse meio, e criatividade é o que não falta ao charlatão. Ela serve para que se inventem coisas tão diversas como novas entidades nosológicas, tratamentos misteriosos e explicações estapafúrdias para os mecanismos pelos quais seu tratamento X é o único realmente efetivo para combater a doença da moda Y. Porém, para que seu tratamento seja realmente um sucesso comercial, o pobre paciente deve morrer de medo da doença em questão, o que faz com que a capacidade de mistificar as doenças – transformando uma “doencinha” qualquer em grave ameaça existencial – seja outro atributo importante dos charlatães.
Alguns charlatães agem assim por pura audácia, sem aparentar qualquer medo de represálias de colegas ou dos conselhos e associações médicas que deveriam coibir suas ações. Outros o fazem por pura toleima, como ocorre com alguns profissionais que têm uma formação médica tão fraca que os torna incapazes de discernir adequadamente o que é certo ou errado. Em outras palavras: se é verdade que a maioria dos charlatães é formada por profissionais carentes de escrúpulos, também há os charlatães que acreditam piamente no que fazem. E esses charlatães do tipo “tolo honesto” podem ser os mais obstinados!
Não haveria um número tão expressivo de charlatães se as pessoas não tivessem tanto medo da doença e da morte aliado a um natural desconhecimento em relação aos aspectos técnicos da medicina. O medo sempre foi uma ferramenta poderosíssima para exercer a dominação sobre as outras pessoas. É por isso que o charlatão é um mestre na arte de explorar o medo entre seus pacientes. Assim, uma gripe qualquer pode facilmente se transformar em uma “ameaça de pneumonia” e um nível de hemoglobina ainda normal pode virar um “princípio de anemia”. Essas palavras ditas a pessoas facilmente sugestionáveis são como a semente de uma relação comercial longeva e altamente rentável para o charlatão, embora representem uma séria ameaça para a saúde dessas pessoas, as quais ficam expostas não apenas à toxicidade financeira de tal relação, mas também a inúmeros e imprevisíveis efeitos colaterais deletérios dos diversos métodos terapêuticos empregados no tratamento de suas “quase-doenças”.
Como se não bastassem as inúmeras iatrogenias físicas a que os pacientes tratados por charlatães ficam expostos em função de seus tratamentos heterodoxos, existe algo ainda mais nocivo para a sociedade e a própria medicina: a “iatrogenia do espírito”. Esta se manifesta toda vez que um profissional de saúde mais sério e bem-intencionado tenta sem sucesso desfazer o encanto e fazer o paciente compreender que muito do que lhe foi dito pelo charlatão não passa de enrolação para mantê-lo sob seu controle. É assim que o médico de bom senso tenta – muitas vezes em vão – fazer o paciente compreender que aquela dorzinha nas costas não tem nenhuma característica de gravidade nem muito menos se trata de uma “ameaça de hérnia de disco” que deva receber uma série de infiltrações esquisitas, ou que aquela infusão de selênio a que o paciente se submete semanalmente não é nada mais que um placebo caríssimo e potencialmente perigoso. Não é necessário dizer que essa iatrogenia do espírito tem um custo elevadíssimo para a sociedade e mina a credibilidade da medicina e daqueles bons profissionais que tentam fazer seu trabalho de forma honesta.
Como o livro foi originalmente escrito ainda na década de 1980, Kurt dedicou uma parte dele ao chamado “megacharlatão”: aquele charlatão que era turbinado por anúncios de televisão – o meio de difusão de informações em massa mais poderoso da época. Kurt nem imaginava que o advento da internet e das redes sociais criaria algo como um “hipermegacharlatão turbo”, o qual pode atingir milhares de pessoas com um único anúncio fajuto do mais novo tratamento infalível para aquela disfunção hormonal ou deficiência nutricional que nem mesmo existe. É claro que, se o megacharlatão da TV já era um problema enorme, o novo hipermegacharlatão turbo que hoje domina redes sociais como o Instagram e o TikTok é uma ameaça gigante à saúde pública e à credibilidade da boa medicina. Isso sem falar nos chamados “metacharlatães”, que são aqueles charlatães que ganham a vida vendendo cursos onde ensinam as suas próprias técnicas mirabolantes nas redes sociais, o que serve apenas para multiplicar as ameaças de charlatanismo que recaem sobre o pobre cidadão comum.
Kurt encerra seu instigante livro com uma citação de Marcel Proust: “Acreditar na medicina seria a maior das loucuras, não fosse loucura ainda maior dela descrer”. Isso serve para reforçar a importância da medicina para a sociedade e o papel fundamental que o bom médico tem na manutenção da saúde da população. Se a medicina é, de fato, fundamental e precisa da confiança das pessoas, então a primeira coisa a fazer é separar o joio do trigo ou, melhor dizendo, traçar uma linha que separe – ainda que de maneira nem sempre exata – o charlatão daquele profissional honesto que tenta realmente fazer o melhor possível para ajudar seus pacientes. Para isso, o reconhecimento das características do “bom” charlatão citadas anteriormente pode ser de grande valia, mas é preciso ir adiante se quisermos atualizar nosso “detector de charlatães”.
Em contraste direto com os médicos sérios que trabalham duro pela saúde da população, o charlatão moderno raramente será visto clinicando em postos de saúde, emergências superlotadas ou hospitais universitários. Em vez disso, ele costuma habitar aquele ambiente mágico e glamouroso das clínicas integrativo-funcionais privadas e das redes sociais, sempre trajando roupas elegantes sobre corpos sarados e emoldurando sorrisos falsos. É preciso reconhecer que também há variações bizarras, como os charlatães do tipo sexy doctor ou aqueles que seguem o estilo lumberjack ou “lenhador urbano”. Porém, o que não muda é a sua enorme capacidade de convencer os incautos, o que se manifesta por meio de teorias estapafúrdias, métodos terapêuticos inovadores e certeza absoluta na obtenção de bons resultados, o que não é difícil de explicar, uma vez que seus pacientes em geral nunca estão de fato doentes.
A triste verdade é que sempre haverá charlatães e que a parcimônia e o bom senso defendidos pela Slow Medicine podem ajudar a evitar muitas dessas ameaças. O próprio Kurt Kloetzel deixou claro em seu livro que não esperava acabar com o charlatanismo com a sua publicação, contentando-se em “colocar a pulga atrás da orelha” dos leitores – profissionais e leigos – para que eles pudessem identificar mais facilmente a ameaça representada pelos charlatães. Podemos dizer com a maior tranquilidade que tal objetivo foi alcançado com este livro. Como diz o autor, no combate a um problema renitente como o charlatanismo médico, tal proselitismo é mais que justificado e a união entre os pacientes e médicos de verdade parece ser a melhor solução.
André Islabão: Sou médico internista formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) com três anos de residência em Clínica Médica pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Depois de vários anos dedicado ao atendimento de pacientes hospitalizados, decidi reduzir o ritmo e me concentrar no atendimento ambulatorial, domiciliar e em consultório próprio.
O tempo disponibilizado possibilitou que me dedicasse a outras atividades igualmente importantes, como a vida em família, a música, a tradução de livros médicos, o estudo de saberes diversos e o acompanhamento de pessoas em clínicas geriátricas, onde realizo um trabalho informal de musicoterapia tocando piano regularmente e levando um pouco de alegria aos moradores idosos.
Para mim, a medicina é tanto arte quanto ciência. A fim de humanizá-la e de reduzir alguns excessos, acredito na filosofia slow, em uma relação médico-paciente longeva, na transdisciplinaridade do conhecimento e na análise crítica da ciência. Meu novo ritmo ainda me possibilita compartilhar ideias próprias em meu blog (www.andreislabao.com.br) e em quatro livros publicados: Entre a estatística e a medicina da alma – ensaios não controlados do Dr. Pirro; O risco de cair é voar – mors certa hora incerta; Slow Medicine: sem pressa para cuidar bem (em parceria com a Ana Coradazzi); e A Arte de Espantar Dinossauros, recém-lançado pela Editora Ballejo.
Excelente! Texto mais que necessário nos últimos dias.
Obrigado, Isabelle!!
Mto obrigada pela sua bela escrita !!!!👏🏽👏🏽👏🏽👏🏽
Muito obrigado, Janaína!!
Excelente texto. Muito cansativo isso que estamos vendo. Outro dia topei com uma médica no Instagram apregoando ser criadora de vários protocolos para as mais variadas doenças…fico inconformado como o CFM não toma qualquer atitude para coibir essa anarquia que a medicina está virando…por outro lado, temos belos textos assim que nos divertem,mesmo nesse triste cenário.
Obrigado, Roberto. De fato, o aparente silêncio dos conselhos é ensurdecedor.
Caro Roberto. Esperar o que do CFM. Somente preocupado com a política e a próxima eleição. Já desistiram há anos da medicina.
Gostaria de convidar o colega para uma Live comigo, canal Doutor von Mühlen do YouTube, para apresentarmos estes importantes aspectos ao povo leigo. Grato.
Seria ótimo, Carlos. Podemos combinar, sim.
Excelente artigo
Muito obrigado, Antônio!
Maravilhoso. Hoje de alma lavada com essa leitura
Muito obrigado, Allan!
Como sempre brilhante em seus pensamentos e inferências! Parabéns!!!
Obrigado, Terry!!
Texto cirúrgico, com a licença do trocadilho… rsrs. Outro dia, vi um “urologista de Instagram” referir-se a pênis como “piu-piu” para, em seguida, oferecer suas injeções de ácido hialurônico com vista a aumento do membro. Algo precisa ser feito em relação a esse fenômeno, tão recorrente quanto preocupante, que a meu ver, tem se tornado um problema de saúde pública. Obrigado pela lucidez do artigo.
Sim, Wesley… este “fenômeno” está ficando constrangedor para a medicina. Abraço!
Espetáculo de texto
Obrigado, Gustavo!
Parabéns pelo belo texto. O medo é o pior companheiro do paciente. Mas como evitar que isso aconteça? As heranças atavicas a esse respeito são imensas.
Obrigado, Marilucia!!
Excelente! Precisamos de mais promotores de saúde!
Muito obrigado, Leila!!
Fantástico! Excelente texto André, parabéns pela clareza das ideias 👏🏼👏🏼👏🏼
Muito obrigado, Jilana!!🙏
Brilhante! Meu máximo respeito.
Muitíssimo obrigado, Ana Lúcia!!
Parabéns, excelente artigo. Que sirva de alerta contra esses charlatões modernos, uma boa maneira de combatê- los é através da informação. Sou médica cardiologista, formada na PUC- Sorocaba com residência em Clínica Médica e em Cardiologia pelo Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia.
Muito obrigado, Sueko!!
Parabéns pelo excelente texto.
Obrigado, Edson!!
Parabéns pelo texto tǎo sensato e abrangente! O desvirtuamento da medicina segue acelerado com estes novos “ coachs” da saúde, onde seguem uma pseudociência raza e sem nexo!
Temos que seguir como “ os herois da resistência “ para o bem de todos!
Muito obrigado, Luciano! 🙏
Infelizmente se confunde o trabalho insalubre e de condições limitadas (ex. Emergências superlotadas) com a sinceridade profissional, uma espécie de “Síndrome do Nice Guy” na medicina.
“Opa, olha como sou bonzinho, ganho pouco trabalhando muito em péssimas condições”.
Não é um médico bonzinho, é alguém que se convence que sua incompetência profissional o faz melhor, porque não “se corrompeu”.
99% iriam para o charlatanismo se tivessem a chance, e eu desconfio absurdamente das panelinhas que se criam para proteger dos supostos charlatões – que logo começam a promover seus próprios salvadores da pátria e detentores da verdade.
Não consigo concordar. Mas agradeço por expor sua opinião, Dr. Mauro.
Que texto necessário! Excelente e indispensável.
Muito obrigado, Janaína!🙏
Sempre existiram charlatães. Em Todas as profissões. Mas, na medicina, por lidarem com a saúde das pessoas, sempre causaram muitos danos. Fico imaginando, séculos atrás, um sério médico, tentando ser um bom médico, esforçando-se para diagnosticar as doenças, baseando-se apenas no relato dos sintomas e dos sinais fornecidos pelos pacientes. Um exame físico bem feito, trazia perspectivas, porém a desinformação pelo não conhecimento da anatomia e, principalmente da fisiologia, induziam o raciocínio clínico ao erro. Lembrem que na antiguidade, não era permitido “violar” um corpo humano. Mesmo de um cadáver.
Terreno fértil para o “inventor de diagnóstico e de tratamentos” ( o charlatão).
A medicina evoluiu, tornou-se ciência, as pesquisas tomaram formas e métodos rígidos. Conhecemos bastante de genética e dos funcionamentos celulares, enzimáticas, hormonais, etc.
Ultrapassamos a época dos “achismos” pois os diagnósticos podem e devem ser comprovados, com exames de laboratórios, imagens, etc…
Informações são disponíveis a um toque de teclado.
Então, deveríamos ver o desaparecimento do charlatão, do incompetente, do exibicionista.
Pelo menos, era essa a esperança que os bons médicos tiveram.
Porém, a Internet fez ressurgir milhões de charlatães, que se multiplicaram aos milhões durante a pandemia, onde todo dia aparecia o “dono da verdade”, da cura e da salvação.
A ciência foi negada, tratamentos ridículos foram propostos, políticos e médicos negaram o valor das vacinas e até a máscara indicada para a população, foi acusada de causar morte por aspiração do CO2 exalado na expiração.
Muitas destas barbaridades foram defendidas por médicos e até o CFM se perdeu, negando a cobrança dos defensores de idiotices, como o tratamento da vítima pandêmica com um vermífugo.
A medicina que segue as regras científicas prevaleceu, às custas de muito sofrimento dos agentes (todos) de saúde que estavam na linha de frente do atendimento da população contaminada pela Covid.
Então, as pessoas centradas em seu tempo evolutivo, sofreram muito. O charlatães ganharam fama e dinheiro. A MORTALIDADE FOI ABSURDA.
Inacreditável o que ocorreu em pleno século XXI.
Espero que não mais se repita.
Perfeito! Obrigado, Rolf!
“Pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo.” (Desconhecido)
Esta frase é atribuída a Abraham Lincoln
Obrigado, José Alberto!
O charlatão nunca coloca a sua verdadeira identidade em jogo, mas ele consegue mostrar pra alguém que os seus conhecimentos são verdadeiros e pensa ser o único colocando indivíduos em risco e esses ainda o colocam em um pedestal falando que as pessoas seguem as suas doutrinas.
Obrigado, Medeiros!!
Parabéns André, um apanhado histórico e resumo claro do doutor Instagram (charlatão Z). Só gostaria de destacar que as Barbies também se prestam muito eficientes nesse papel.
Medico(a) charlatão deve fazer doutorado em sedução.
Perfeito, Gustavo. Muito obrigado!!
Maravilhoso!!
Obrigado, Fátima!!
Caro André: obrigado imensamente pelo texto: sóbrio, respeitoso, justo e VERDADEIRO. Quanta alegria ter cruzado seu caminho e poder ter acesso aos seus “fazeres”e “agires”.
Querido Pessanha! Obrigado e grande abraço!!
Tive o privilégio de ter sido aluno do Professor Kurt Kloetzel em 1974, na Universidade Estadual de Londrina. Aprendi muito. Inesquecível!
Muito bom, Paulo!