A autonomia termina onde a segurança alheia começa

abril 21, 2021
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            “Sem dados, você é apenas mais uma pessoa com uma opinião.”

(William Edward Deming)

A autonomia sempre foi uma aresta incômoda no que diz respeito às relações entre médicos e pacientes. Nos tempos medievais, ela era privilégio exclusivo do médico. Era ele o detentor de todo o conhecimento (que, vale dizer, era restrito e baseado em experiências pessoais). Como tal, determinava sozinho os tratamentos a que seus pacientes deveriam ser submetidos, não havendo nada acima dele, exceto talvez divindades sobrenaturais. Quem procurava um médico implicitamente estava lhe oferecendo uma procuração de plenos poderes sobre sua saúde, algo como um salto de fé. As décadas se passaram, a medicina foi transformada pelo método científico, e o conhecimento médico tornou-se ainda mais poderoso enquanto ferramenta para a recuperação da saúde perdida. O distanciamento crescente entre médicos e pacientes chegava a ser tamanho que os primeiros podiam ser dominados pela arrogância, enquanto aos últimos restava submeter-se a isso. Essa arrogância desmedida foi responsável por atentados graves à dignidade humana. Foram inúmeros os casos de abusos em nome dessa pretensa autonomia, justificada por uma busca por benefícios à Humanidade que nem sempre era tão bem intencionada assim. Pessoas eram submetidas a tratamentos experimentais cujo racional era ilógico, pouco plausível ou até sádico (como os icônicos experimentos de Joseph Mengele com judeus em campos de concentração, ou a tragédia do envenenamento de dezenas de crianças por dietilenoglicol). A autonomia que sobrava nos médicos faltava em seus pacientes, e o conceito hipocrático primordial de primum non nocere (em primeiro lugar, não causar dano) era facilmente varrido para baixo do tapete.

            Foi para impedir esses abusos que os códigos de ética médica foram criados, e eles regem a conduta médica em todas as áreas de atuação: pesquisa clínica com voluntários saudáveis, pesquisas de medicamentos em voluntários doentes, prescrição de tratamentos, solicitação de exames diagnósticos, comunicação, cuidados no final da vida, e qualquer outra área já existente ou que venha a ser criada. Códigos de ética não foram desenhados para cercear a autonomia, e sim para aumentar a segurança e garantir a dignidade das pessoas. Mesmo os médicos mais bem intencionados correm o risco de, iludidos por circunstâncias variadas, optarem por estratégias que façam mal aos pacientes. Eles podem ser vítimas de suas próprias crenças e experiências pessoais que, em grande parte das vezes, distorcem a realidade, fazendo que que resultados positivos sejam vistos onde não existem. Isso é humano – mais que isso, é esperado. O método científico e a ética médica são as ferramentas que criamos para impedir que esses vieses prejudiquem os outros (no caso, nossos pacientes). Nessa relação assimétrica em termos de conhecimento, a autonomia do paciente precisa ser tão assegurada quanto a do médico, permitindo que ele expresse seus desejos e expectativas e, assim, colabore com a construção da estratégia mais adequada para sua saúde. O método científico garante sua segurança, enquanto a ética médica assegura que sua dignidade seja respeitada. É dessa conjunção de estratégias que resulta uma parceria mais sóbria, respeitosa e justa. A autonomia, aqui, funciona como uma via de mão dupla: a autonomia de um encontra seus limites no ponto onde se inicia a autonomia e a segurança do outro.

            O que temos visto é uma grande confusão sobre a autonomia de um médico em prescrever tratamentos ou obedecer a procedimentos de segurança, ou mesmo se posicionar contra ou a favor de determinadas condutas. As pessoas têm confundido autonomia com opinião pessoal, e isso é perigosamente antiético. Qualquer pessoa pode ter uma opinião pessoal sobre qualquer coisa. Ela pode acreditar que a terra é plana, que os bebês nascem das flores ou que a pandemia de coronavírus não existe. Isso é um direito. Esse direito acaba no momento em que ela decide mudar rotas de aviões de acordo com sua visão terraplanista, substitui maternidades por jardins floridos ou determina que não é necessário utilizar qualquer medida contra a disseminação do vírus. Sua autonomia termina no momento em que seus atos podem causar danos, e o que determina esses potenciais danos é ela: a ciência. 

No caso específico da medicina, isso é irretorquível. Médicos são treinados para respeitar a ciência e tomá-la como base para suas decisões. É sua obrigação compreender os riscos de não levá-la em conta, assim como é seu dever conhecer seus limites. Médicos sabem, desde sempre, que não têm solução para tudo. São inúmeras as doenças intratáveis, as condições irreversíveis, os males incuráveis. Deixar-se levar pela ansiedade de oferecer um tratamento qualquer pode causar danos maiores que as doenças que se pretende tratar. Estaremos migrando da medicina baseada em evidências para as evidências baseadas em ansiedade, e isso é inadmissível. A questão se torna ainda mais complicada quando essa mesma ansiedade é tão intensa que não apenas ignora a ausência de dados concretos para um determinado tratamento, mas também despreza as evidências de sua ineficácia. Nunca é demais relembrar que um tratamento ineficaz, mesmo que não cause danos físicos diretos ao paciente, gera custos, provoca expectativas irreais e desvia o foco de estratégias que poderiam ser mais úteis. Isso vale para absolutamente todos os cenários médicos: de exames preventivos a tratamentos oncológicos, dos programas de vacinas ao uso de antibióticos, de cirurgias eletivas ao atendimento de urgências graves, das estratégias de parto aos cuidados de fim de vida. Faz parte das atribuições de um médico que respeita a Ética ser a voz sensata no meio do caos, ser o porto seguro quando os mares estão revoltos. Sua autonomia serve, inclusive, para permitir que cumpra esse papel.

Mas há ainda uma questão mais profunda, relacionada à natureza humana em si: alegar a defesa da autonomia pode livrar o médico da incômoda posição de se dizer impotente para solucionar o problema. Nós médicos costumamos ter uma resistência (ou incapacidade) bastante significativa para reconhecer nossos próprios limites. Diante de problemas para os quais não conhecemos solução, buscamos desesperadamente opções com pouco embasamento científico, tratamentos estudados em contextos completamente diferentes, estratégias pouco condizentes com a situação real do paciente. Muitas vezes – provavelmente na maioria delas – não estamos buscando a melhor opção para o paciente, e sim um disfarce convincente para as limitações da profissão médica. É por isso que nossos pacientes com câncer avançado e já em fase final de vida ainda recebem esquemas agressivos de quimioterapia, e nossos idosos com demência avançada e dominados por suas comorbidades terminam seus dias atrelados a aparelhos nas UTIs. Quando não sabemos o que fazer, fazemos qualquer coisa, e chamamos isso de autonomia. Em última instância, é nossa arrogância disfarçada de outro nome.

Autonomia não é liberdade sem limites. Ela não traz em si a ideia de que cada um tem o direito irrestrito de fazer o que lhe parecer melhor. A autonomia do médico, em especial, não está acima de tudo: a segurança do paciente está acima dela, e essa segurança vem atrelada ao conhecimento científico. Quanto menor a evidência científica, menor sua autonomia enquanto médico, e maior sua responsabilidade em manejar a situação com cautela. Mas, principalmente, a autonomia só é exercida em toda sua amplitude quando carrega em si a humildade e a compaixão. Sem elas, a autonomia reduz-se a uma fração do que realmente é: passa a ser apenas um ato prepotente, como tantos que vemos por aí.


Ana Lucia Coradazzi: Sou médica, graduada pela Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Concluí a residência médica em Hematologia e Hemoterapia na UNESP e, posteriormente, a residência em Cancerologia Clínica no Hospital Amaral Carvalho, em Jaú/SP. Foram o imenso desconforto e a sensação de impotência ao lidar com pacientes em sua fase final de vida que me levaram a cursar uma pós-graduação em Medicina Paliativa pelo Instituto Pallium, em Buenos Aires, o que mudou de forma irreversível os rumos da minha vida. Criei a Unidade de Controle da Dor e Cuidados Paliativos do Hospital Amaral Carvalho, onde permaneci como coordenadora até outubro de 2015. Atuei como médica do Centro Avançado em Terapias de Suporte e Medicina Integrativa (CATSMI) do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, até 2019. Atualmente sou responsável pela equipe de Oncologia Clínica da Faculdade de Medicina da UNESP, em Botucatu. Sou autora dos livros No Final do Corredor e O Médico e o Rio, e editora do blog  www.nofinaldocorredor.com, [1] nos quais escrevo sobre o quanto nosso envolvimento nas histórias de vida dos pacientes pode ser transformadora, principalmente para nós mesmos.
Moro em Jaú, no interior de São Paulo, com meu marido Fábio e as duas luzes da minha vida, Mariana e Lorena, além da minha coelha de estimação, Julieika. Junto deles, busco o equilíbrio de que tantos dos meus pacientes falam, encontrando na corrida e na prática do yoga a paz que preciso para manter a mente saudável.

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