Por: José Renato Amaral
“…e, como a formosura tenha por especial prerrogativa, e por graça singular, o poder de ganhar as vontades e atrair os ânimos, logo todos se renderam ao desejo de servir e animar a bela moura.”
(Dom Quixote)
Em abril passado, o Conselho Federal de Medicina publicou uma resolução (nº2.333/2023) que veda aos médicos “a prescrição médica de terapias hormonais com esteroides androgênicos e anabolizantes (EAA) com finalidade estética, para ganho de massa muscular e/ou melhora do desempenho esportivo, seja para atletas amadores ou profissionais.” Tal resolução veio em resposta a uma manifestação conjunta publicada por diversas associações de especialidades médicas, que alegam, para além dos potenciais efeitos adversos do uso de tais tratamentos, a preocupação com o marketing excessivo que os promove: “Uma das graves consequências desse inadequado desvio na formação e atuação profissional de médicos, incentivados por essa exposição frequente e intensa, é o distanciamento daquilo que é ministrado em programas de residência médica e de pós-graduações reconhecidamente sérias, éticas e científicas, em detrimento da sua alocação na prevenção e tratamento de doenças, a verdadeira e principal missão da Medicina.” (Carta Conjunta das Sociedades Médicas ao CFM, 2023).
Evidentemente, quem é contra o uso de terapias hormonais com fins estéticos ou de desempenho, comemorou a decisão, e quem as apoia, ficou descontente, e várias publicações festejando ou maldizendo a tal resolução pipocaram nas “redes sociais”.
O interessante é que o assunto, como quase tudo nos dias de hoje, ganhou (desde o início, aliás, como podem atestar os próprios documentos citados), um tratamento muito mais ideológico que científico e, consequentemente, desbancou para a polarização.
Um problema fundamental dessa abordagem é rotular como “ruim” algumas estratégias terapêuticas que podem ser bem indicadas em determinados casos, como na sarcopenia, que é uma condição relativamente frequente. Mas o que eu realmente acho que merece reflexão são os dois fatos implícitos nessa discussão: tanto o uso de práticas médicas (tratamentos clínicos ou cirúrgicos) para fins estéticos como a massificação do marketing da Medicina há tempos já se tornaram corriqueiros, assim como, por exemplo, o uso de smartphones (este também com fins nem sempre edificantes).
Ora, essas práticas só existem porque há uma demanda da sociedade para isso. E nessas horas, convém lembrar que a Medicina não pertence apenas aos médicos, mas sim a toda sociedade. Certamente, médicos são mais capazes que os leigos na compreensão dos riscos e benefícios associados ao emprego da Medicina, mas quem dita os rumos dessa ciência (bem como de todas as outras) é a sociedade civil. Para ficar num exemplo contemporâneo: quando eu era criança, ninguém discutia o valor da vacinação em massa; comemoravam-se a erradicação da varíola e a então iminente erradicação da poliomielite (e a futura extinção do sarampo). A vitória sobre essas doenças era uma conquista tanto da Medicina como da sociedade, e àquela altura já se sabia que a vacinação não era isenta de riscos; na verdade, num mundo em que praticamente já não havia varíola, o risco de se adoecer pela sua vacina era muitíssimo maior que contrair a doença propriamente dita (o que vale para qualquer vacinação bem-sucedida). Bem, como sabemos, atualmente a sociedade já não aceita de modo unânime a cláusula do contrato da vacinação em massa que inclui o sacrifício do risco individual em favor do benefício coletivo; podemos discutir se isso é bom ou ruim, mas a situação está posta. Evidentemente, a internet e a disseminação da informação catalisam esse processo.
Embora eu trabalhe para “a prevenção e tratamento de doenças, a verdadeira e principal missão da Medicina”, parafraseando a carta conjunta das associações médicas, não dá para deixar de reconhecer que, há tempos, a Medicina não é só isso: o avanço no combate ao sofrimento e no retardamento da morte tem sido tão exitoso que o conhecimento e o instrumental médico passaram a ser usados para outras funções, como a estética, porque isso é possível e porque a sociedade assim quer. Nessa esteira, vem o marketing, com novas propostas de “aprimoramento humano”, como os tratamentos para melhora do desempenho.
Com o advento das redes sociais e a subsequente elevação do culto do narcisismo e do exibicionismo ao estatuto de “novo normal”, não há surpresas no aumento da demanda por serviços de aperfeiçoamento estético. O próprio envelhecimento populacional de que nós, geriatras, tanto falamos, concorre para isso, afinal, o arrefecimento da formosura, com o passar dos anos, já não é mais aceito com a mesma resignação de outrora. Há um lado bom nisso, porque a preocupação com a beleza, além de ser um bom sinal de comprometimento com a vida, traz consigo, em geral, uma série de medidas saudáveis, como a prática regular de atividade física e a evitação de maus hábitos.
É claro que a perseguição incansável da beleza pode levar (além de muitos resultados esteticamente desastrosos) à inevitável frustração com a realidade (sempre ela a nos atrapalhar), porque estamos bem longe de alcançarmos a eterna juventude, e a juventude é, esteticamente, inegavelmente mais bela que a maturidade (minha idade atual já me confere isenção para esta afirmação).
Por outro lado, ninguém (até onde eu saiba) defende, por exemplo, que a cirurgia plástica só deva ser feita em casos de reconstrução ou para correção de danos estéticos indiscutíveis. Há tempos muita gente se submete a operações (que não são isentas de riscos) para melhorar o que já está bom. Há um grande mercado em torno disso, há um forte apelo comercial, e os cirurgiões plásticos de boa formação e conduta séria, ao que me parece, conseguem lidar muito bem com isso, inclusive os que não se dedicam “à prevenção e ao tratamento de doenças”. Como o tratamento estético baseado em intervenções farmacológicas já é uma realidade, a meu ver seria melhor regulamentá-lo que o banir, a exemplo de como procedem as especialidades cirúrgicas que já atuam nesse sentido. Novamente, sinto-me impelido a esclarecer, para não ser mal interpretado, que não me empolgo muito com a luta inglória contra o tempo e seus sinais, mas ela existe, e é melhor que seus adeptos a levem a cabo em segurança.
No “Dom Quixote”, de onde tirei a epígrafe deste texto, Cervantes discute sobre a formosura (que é a palavra que ele mais usa para designar a beleza das pessoas) em vários trechos, esse que selecionei é um dos que mais gosto pela concisão em expressar o poder da beleza. Mas o Quixote discorre muito também sobre a natureza da beleza humana, a beleza do corpo (formosura), efêmera e autoevidente, e a beleza do espírito, perene e revelada pelas virtudes de quem a possui (afinal ele é um cavaleiro exemplar, embora num mundo em que isso já nem mais tem valor). São ideias que remontam aos tempos clássicos – basta pensarmos na arte antiga: os deuses belos são sempre figurados como jovens, enquanto os sábios (ou poderosos), exibem as marcas da velhice.
O senso estético da Antiguidade greco-romana, em linha com o pensamento platônico, associa o belo ao que é bom, numa correspondência recíproca. Nesse sentido, a sabedoria e a virtude também são manifestações da beleza, por serem boas. Daí a beleza da velhice sempre ter sido associada a essas características ideais. Podemos achar o platonismo discutível ou obsoleto, mas a defesa de que a Medicina deva servir apenas ao alívio do sofrimento humano parece-me precisamente uma manifestação do platonismo, pois procura restringir a prática médica ao seu modelo ideal.
Na prática, o mundo real é bem menos perfeito que o das ideias: a maioria das pessoas não ganha a sabedoria e a virtude com a velhice (assim como a maioria dos jovens também não é agraciada com a beleza suprema), e a Medicina é mais um produto da nossa sociedade que do mundo das boas ideias, e, portanto, tem seu lado bom e seus problemas também, e gostamos de discuti-los neste espaço. Claro que os médicos sérios devem zelar pelos princípios de seu ofício, mas não podemos ser insensíveis ao mundo que nos cerca.
É da essência do humano o desejo de poder, e beleza e juventude são excelentes armas. O anseio pela eterna juventude, aquela fase da vida em que beleza e desempenho produzem efeitos formidáveis, seguramente não é uma manifestação de sapiência, mas ignorar esse desejo humano ancestral também não o é. De resto, educar a humanidade para o cultivo da virtude e da sabedoria tem sido tentado de diversas maneiras desde que o mundo é mundo, com resultados bastante discutíveis, como sabemos. Acharmos que a vida real seja muito diferente disso é quase como confundir moinhos de vento com gigantes.
José Renato Amaral é médico (clínico e geriatra) e professor do Serviço de Geriatria do Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Nota do Editor:
A Slow Medicine tende à ponderação e ao equilíbrio, tanto em sua postura em relação à vida como às práticas médicas em geral. O texto do Dr. José Renato prima pela erudição: nos faz passar os olhos pela filosofia grega, pela literatura clássica, através da citação muito bem colocada de Don Quixote, chegando à contemporaneidade das redes sociais. Moderação é o que atravessa o texto do início ao fim, propondo o equilíbrio necessário em um assunto tão espinhoso. Como afirma o Manifesto da Slow Medicine, uma medicina Respeitosa “… acolhe e leva em consideração os valores, as preferências e as orientações do outro em cada momento de sua vida; encoraja uma comunicação honesta, cuidadosa e completa com os pacientes. Os profissionais de saúde agem com atenção, equilíbrio e educação.”
A imagem que ilustra o texto é Narciso, do pintor italiano Michelangelo Caravaggio
Lúcido e coerente ponto de vista. O texto apresentou uma abordagem admirável ao discutir o uso estético de anabolizantes, ao equilibrar informações históricas e filosóficas, evitando julgamentos extremos. Ao respeitar diversos pontos de vista e enfatizar a importância da ponderação no tratamento individual, ele proporciona uma reflexão sólida e consciente sobre o assunto. Parabéns ao Dr José Renato
Excelente texto!! Sensato!
Parabéns
Texto delicioso de ler. Lúcido. Envolvente.