Por Antonio Bonaldi, para a Wall Street International Magazine (publicado em 12/08/2020)
Tradução livre de Andrea Bottoni
O que se entende por ecologia da saúde? A resposta é muito simples. A ecologia é a ciência que estuda as relações entre os organismos e o meio ambiente em que eles vivem e, como veremos mais para frente, a saúde está fortemente envolvida neste elo. Na verdade, não apenas a saúde, mas a sobrevivência de nossa espécie depende da relação entre o homem e a natureza.
No entanto, gosto de responder a essa pergunta com as mesmas palavras que Gregory Bateson (um dos pais fundadores do pensamento sistêmico e autor do famoso livro Ecologia da Mente) usou quando questionado sobre o que ele quis dizer com ecologia da mente. “Mais ou menos” – respondeu Bateson – quero dizer os vários tipos de coisas que acontecem, que se interconectam e, efetivamente, constituem uma rede, uma espécie de emaranhado complicado, vivo, que luta e que colabora, semelhante ao que se encontra nos bosques de montanha, formado pelas árvores, várias plantas e animais que ali vivem – uma ecologia, precisamente”1.
Boas intenções nos fazem sentir melhor, mas são facilmente esquecidas
Nada será igual novamente! Dissemos repetidamente durante os momentos mais trágicos da pandemia. Mas sabemos bem que o homem, em situações de emergência, é particularmente propenso a boas intenções e generoso com ideias inovadoras sobre como lidar com a saúde, a economia, o desenvolvimento, a ciência, a cultura, o meio ambiente, etc. Pena que, quando a tempestade passa e a vida volta ao seu ritmo normal, ele tende a esquecer facilmente as promessas solenes feitas em tempos difíceis. Promessas, você sabe, são como mentiras: elas têm pernas curtas.
As breves considerações a seguir baseiam-se no que aconteceu durante a pandemia para nos lembrar de cinco conceitos que muitos de nós tomamos conhecimento e dos quais estamos aos poucos esquecendo.
1. Saúde é a coisa mais preciosa que temos
Saúde é como o ar: você só percebe quanto vale quando falta!
Geralmente, quando estamos bem, pensamos pouco na nossa saúde. No máximo a gente faz um check-up periódico, quase para satisfazer a nossa consciência, mas isso não adianta muito, na verdade pode ser mais prejudicial do que útil. Por outro lado, se estou bem, com tantas coisas para fazer, por que devo me preocupar com minha saúde?
Durante a pandemia, diante do risco de perdê-la, percebemos que a saúde é o que temos de mais precioso e que estamos dispostos a sacrificar tudo por ela. De repente, abrimos mão da liberdade, aceitamos sacrifícios econômicos impensáveis em tempos normais, colocamos trabalho, educação, cultura em segundo plano e sacrificamos até mesmo as pessoas mais queridas. Não vamos esquecer!
2. Saúde não diz respeito à medicina: saúde é vida
Durante a pandemia, vimos como é importante ter um serviço de saúde público bem organizado, eficiente, coordenado e universal. Percebemos também, no entanto, algumas falhas na organização dos serviços de saúde e percebemos os limites da medicina, cuja tarefa certamente não pode se limitar a tratar doenças depois que elas aparecem. Por exemplo, no que diz respeito à COVID-19, os muitos especialistas que se alternaram nos vários programas de entrevistas nos fizeram entender duas coisas: não sabemos como o vírus se comporta e, sobretudo, não temos a “cura”. Basta lembrar as disputas entre vários especialistas sobre como controlar as infecções ou a corrida frenética para encontrar algum remédio eficaz que ia além do controle dos sintomas. Em poucas semanas foram registrados mais de mil ensaios clínicos, mas na maioria dos casos tinham amostras pequenas ou não eram bem elaborados2.
Com isso eu não quero diminuir a importância da ciência, da pesquisa, da medicina e principalmente dos méritos dos profissionais de saúde que nos dias trágicos da pandemia até sacrificaram suas vidas para tratar de pacientes. Longe disso. Só quero lembrar que não somos onipotentes, que devemos tomar consciência da nossa fragilidade, que devemos conviver e decidir aceitando uma quantidade inelutável de incertezas e, sobretudo, que para saúde não é apenas uma “questão médica”.
Na verdade, não mais do que 15-25% do nosso estado de saúde depende dos serviços de saúde, o resto está ligado a fatores genéticos, estilo de vida e, sobretudo, ao ambiente físico e social em que vivemos3.
Durante a pandemia, vimos que para controlar o vírus não basta saber como funciona e como se cura (sabemos?). Precisamos atuar em forte sinergia com muitas outras áreas do conhecimento científico, economia, tecnologia e ciências sociais.
Isso se aplica apenas em tempos de pandemia? Não. Isso sempre se aplica. A saúde depende de muitas variáveis, às quais muitas vezes prestamos pouca atenção. Depende de como construímos casas, como projetamos cidades, como cultivamos a terra. Depende da organização do trabalho, transporte, educação, renda, ambiente físico e social em que vivemos e muito mais. Na prática, nenhuma disciplina e nenhum setor da organização social podem ser considerados alheio à saúde. A saúde é assunto de todos!
3. Vivemos em um mundo hiperconectado, com muita complexidade
Durante a pandemia percebemos como somos todos interdependentes e como é difícil desfazer o emaranhado de conexões que une intimamente as pessoas e que constantemente remodela e redesenha as relações entre o homem, a natureza, a economia, os transportes, a finança, a educação, a cultura…
Devemos observar que vivemos num mundo hiperconectado que nos oferece muitas oportunidades, mas que também pode representar uma ameaça e, sobretudo, que obedece a leis outras que as próprias do pensamento mecanicista que nos acompanhou nos últimos três séculos. A abordagem linear é importante, mas deve ser combinada com uma nova forma de pensar, visto que a realidade é multidimensional e os complexos sistemas biológicos e sociais em que vivemos não são redutíveis aos seus elementos constituintes e não respondem à lógica linear de causa e efeito.
Por exemplo, dada a alta presença de relações não lineares, em sistemas complexos o efeito de um estímulo não é proporcional à força que o gerou. Pequenas variações em uma parte do sistema podem se amplificar, podendo provocar efeitos catastróficos e imprevisíveis em setores aparentemente não relacionados. Foi exatamente o que aconteceu com a pandemia, quando uma partícula muito pequena, localizada no limite da vida (pouco mais de duas fitas de RNA envoltas em uma casca de proteínas), foi capaz de derrubar todo o planeta e a vida em um curto espaço de tempo de bilhões de pessoas, de repente desmantelando nossas seguranças e com eles a ambição de ser os “senhores” da terra.
4. O homem e a natureza constituem uma totalidade indivisível
O salto de espécies desse vírus e as consequências desastrosas para o homem evidenciaram o quão perigoso é desconsiderar o meio ambiente e destruir ecossistemas naturais.
A revolução ecológica, de que tanto falamos, fez-nos compreender que o homem e a natureza não são duas entidades distintas. A natureza não é uma fonte inesgotável de energia e matérias-primas a serem exploradas à vontade. Homem e natureza constituem um ecossistema integrado que se organiza e evolui por meio de um processo contínuo de integração que Maturana e Varela denominaram: acoplamento estrutural4. Este expressa a força criativa da evolução, que por meio de pequenas mudanças molda e harmoniza não só os seres vivos (como nos lembra Darwin), mas também o ecossistema no qual estão imersos.
Em outras palavras, o ambiente natural é a fonte da vida e deve ser protegido em particular de uma das maiores ameaças que se avizinham sobre ele: o calor excessivo e as consequentes alterações climáticas, das quais já experimentamos alguns dos efeitos deletérios. Nosso planeta é habitável porque é continuamente resfriado pelos processos metabólicos de plantas, algas e bactérias que absorvem CO2 e produzem oxigênio. Sem eles, em pouco tempo a atmosfera da Terra ficaria saturada de CO2 e quente demais para abrigar vida. Além disso, segundo os especialistas, mais alguns graus centígrados (talvez 5) tornariam o processo de aquecimento da Terra irreversível e em pouco tempo todas as formas de vida desapareceriam5. Todos devemos estar cientes disso e tomar as medidas preventivas adequadas antes que seja tarde demais.
5. A proteção do meio ambiente é problema de todos
Durante a pandemia, vimos que nenhuma disciplina por si só contém as chaves para enfrentar com êxito um problema complexo, como proteger a saúde das pessoas e do planeta. Para alcançar este objetivo, devemos compartilhar conhecimentos e promover a cooperação entre profissionais de diferentes áreas: ciências físicas e biológicas, economia, gestão, comunicação, psicologia, antropologia, sociologia, entre outras.
Esta pandemia pode ser uma oportunidade única na vida de revisar nosso modelo de desenvolvimento, redesenhar a vida e a mobilidade urbana, usar energia renovável, limitar o consumismo, promover uma alimentação mais respeitosa ao meio ambiente e muito mais. Claro que não se trata de um convite bucólico para voltar a viver nas cabanas à luz de velas, alimentar-se de frutos silvestres, cavalgar, tomar banho na nascente e abrir mão dos “confortos” e benefícios que acompanham o progresso. Certamente é possível buscar o desenvolvimento econômico e social sem renunciar aos benefícios que isso acarreta, mas devemos nos acostumar a avaliar as consequências de nossas decisões sobre a saúde individual e coletiva e a adotar comportamentos coerentes com o objetivo de manter um ambiente limpo e em sintonia com os ritmos fisiológicos da natureza.
Nesta dramática circunstância, vimos que de um dia para o outro 60 milhões de italianos permaneceram trancados em suas casas, desistindo de tudo. Coisa inimaginável, se não fosse verdade! Bem, pense se essas mesmas pessoas decidissem não comprar mais garrafinhas plásticas de água mineral. Seria uma coisa pequena em comparação com o que eles têm sido capazes de fazer, mas teria um grande impacto no meio ambiente e daria início a um processo de mudança irreversível. A força dos sistemas está na capacidade de promover mudanças de baixo para cima que desencadeiam ondas de choque impossíveis de resistir.
Infelizmente nos dias de hoje já estamos observando que as boas intenções em relação à proteção do meio ambiente estão diminuindo. Pense, por exemplo, no uso abusivo de detergentes e desinfetantes na tola perspectiva de viver em um ambiente asséptico ou nos bilhões de luvas e máscaras (frequentemente usadas de maneira inadequada) que são despejadas no meio ambiente sem cuidado.
Juntos podemos fazer muitas coisas, mas antes de tudo devemos nos conscientizar da interdependência entre o homem e a natureza e da grave ameaça ecológica que paira sobre a nossa saúde e a das gerações futuras. Para tanto, devemos consistentemente mudar nosso comportamento, somar esforços e aproveitar os enormes investimentos disponíveis para repensar as prioridades em termos de políticas ambientais, levando em consideração, em particular, o que é sugerido pelos 17 objetivos de desenvolvimento sustentável propostos pela ONU6.
Referências
1 Bateson G., Una sacra unità. Adelphi 1997.
2 Glasziou P., Waste in COVID-19 research. BMJ 2020; 369: m1847.
3 Donkin A. et al., Global action on the social determinants of health. BMJ Glob Health 2017; 3:e000603.
4 Maturana H. R., Varela F., Autopoiesi e cognizione. Marsilio Editori 1985.
5 Lovelock J., Novacene. Bollati Boringhieri 2019.
6 ONU: 17 Obiettivi per lo sviluppo sostenibile.
Antonio Bonaldi: médico, especialista em saúde pública. Por mais de 20 anos foi diretor de serviços de saúde públicos na Itália. Ele é coautor do livro Slow Medicine – Le parole della Medicina che cambia, cuja tradução é Slow Medicine – As palavras da medicina que muda (Il Pensiero Scientifico Editore, 2017). Atualmente é presidente do Movimento Slow Medicine Itália e é docente na Universidade de Verona – Itália.
Andrea Bottoni: italiano, nascido em Roma; Médico pela Universidade de Roma “La Sapienza”, com Residência Médica em Nutrologia na mesma Instituição; Especialista em Medicina Desportiva, Mestre em Nutrição e Doutor em Ciências pela UNIFESP; MBA Executivo em Gestão de Saúde pelo Insper; MBA em Gestão Universitária pelo Centro Universitário São Camilo; Especialista em Mindfulness, Instrutor de Mindful Eating Aplicado à Promoção da Saúde e Instrutor de Mindfulness Aplicado à Promoção da Saúde pela UNIFESP; Coach de Saúde e Bem-Estar; Coach Ontológico; Título de Especialista em Nutrologia, em Medicina do Esporte e em Medicina Preventiva e Social; vive no Brasil, em São Paulo, felizmente casado com Adriana, também médica.