“Matéria publicada no jornal o Estado de São Paulo no dia 17 de abril de 2020, comenta um texto produzido pelos professores titulares da FMUSP, listados ao final deste texto, com informações oportunas sobre a pesquisa clínica numa situação de pandemia. Pela importância da instituição, nos mais variados aspectos, sejam eles históricos, pela formação de milhares de médicos, por sua produção científica e acadêmica e pelo atendimento de milhões de cidadãos, não apenas da cidade de São Paulo, mas do Estado de São Paulo e do país inteiro, tais considerações, de grande preciosidade, devem chegar ao maior número de possível de pessoas. Neste momento que vivemos uma pletora de informações, “o pandemônio da pandemia”, conforme palavras do Professor Wilson Jacob Filho, diretor do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas da FMUSP, optamos por divulgar o texto na íntegra, respeitando os créditos a seus subscritores e procurando contribuir para o debate que atravessa de ponta à ponta a nação, com informações de fontes éticas e idôneas.”
“A relação entre causas e efeitos é o desafio da espécie humana desde que ela surgiu. Se conhecemos a causa podemos evitar o efeito (efeitos maléficos) ou provocar o efeito (efeitos desejáveis). Tratamentos médicos têm esse desafio: o tratamento deve ser a causa da cura.
A associação de dois eventos pode não significar uma relação de causa-e-efeito. O exemplo clássico, ensinado nos primeiros anos da Faculdade, é o da cama: Mais de 95% das pessoas morrem numa cama, mas isso não significa que se todos nunca nos deitarmos na cama seremos imortais. Há uma associação, mas a cama não é, obviamente, a causa da morte.
A ciência não é opinião e consiste exatamente em estabelecer relação de causa-e-efeito. Muitas observações podem ser feitas sobre exames e medicamentos em relação à COVID19, mas estabelecer uma relação correta requer método científico e ética.
O método científico tem alguns recursos para isso: quando o método é experimental em laboratório, existe a contraprova. Usa-se um método, observa-se o resultado, depois retira-se o método e observa-se se o resultado foi diferente. Mas isso não é possível em pesquisa clínica com pacientes.
A pesquisa clínica usa outras ferramentas; consiste em coletar dados e analisá-los para tomar uma decisão, quer seja um medicamento ou outra intervenção terapêutica. A principal ferramenta se baseia nos estudos controlados. Nesses estudos, há um grupo para o qual é dado o tratamento e outro para o qual não é dado (chamadode grupo controle). O desafio é garantir que os dois grupos sejam parecidos em diagnóstico e gravidade e que tenham recebido o mesmo tratamento, com exceção daquele que está sendo estudado.
Isso é difícil, mas se consegue com recursos de estatística. O resultado é analisado por estatística para saber se há efeitos indesejáveis e eficácia no tratamento.
Para que a estatística nos dê uma probabilidade alta de um resultado corresponder à verdade, é preciso um número grande de pacientes. Quanto maior o número, maior a confiança no resultado. Por isso, esses estudos são feitos com centenas ou milhares de pacientes. Para obter número grande de casos, num estudo, a ciência tem dois métodos: realiza o estudo durante anos ou reúne vários hospitais, somando os casos.
O desafio da pandemia é exatamente esse. Reunir vários centros para uma pesquisa rápida é difícil, pois cada centro médico do mundo está focado em tratar seus pacientes graves e achar soluções rápidas. Se um centro médico quiser fazer uma pesquisa com grande número de casos levará mais tempo do que a pandemia e poderá interromper o estudo, por falta de casos, quando ela passar.
Por isso, todas as pesquisas de que dispomos até agora no tratamento da COVID19 foram feitas com número pequeno de casos e de baixa confiança estatística.
Esse instrumento de análise não dá certezas, mas apenas probabilidades. Ele nos diz se é provável que o tratamento seja eficaz ou se não é provável. E mais: nos diz se é muito provável ou pouco provável. Isso depende do número de casos, mas também do cuidado com que os grupos de pacientes foram separados.
Sabemos que raramente existe um tratamento especifico para as infecções virais, principalmente as doenças virais que acometem o sistema respiratório. Desta
forma, diante do índice alto de contagio e de casos de infecção grave e morte, o desespero, não só da equipe da saúde mas de toda a população, impede a racionalidade e atropela a ciência e os estudos clínicos. Nenhum médico gosta de perder pacientes, e ninguém gosta de perder familiares ou amigos; logo, parece obvio que não podemos medir esforços para tratar esses casos com o que estiver ao nosso alcance.
Entretanto, nesta pandemia ainda não existem estudos que permitam dizer que um tratamento seja muito provavelmente eficaz. Existem algumas pesquisas que apontam para um resultado positivo, mas com pouca probabilidade de estarem certas. É claro que qualquer nova ideia deve ser considerada, mas não há verdade científica sem estudos grandes e bem feitos.
Assim sendo, a indicação de um tratamento também depende muito destes riscos. Existem outros aspectos importantes a serem considerados na pesquisa; por exemplo, o momento que a medicação foi utilizada no estudo. Às vezes, a medicação pode ter efeito só no início da doença ou, ao contrário, o efeito pode ser mais eficaz quando a doença está em plena manifestação. Assim, os resultados podem se mostrar positivos em um determinado estudo, mas não se aplicarem a todos os pacientes na prática clínica, uma vez que o estudo pode ter selecionado pacientes com menor gravidade ou perfis diferentes de pacientes.
A indicação de um tratamento também depende dos efeitos colaterais. A pergunta que os médicos sempre ouvem é: por que não tentar? A resposta é: depende.
Se alguém quiser tomar medidas tais como usar cores diferentes nas camas ou fazer correntes de pensamento, isso pode funcionar ou não, mas a ciência não se opõe; porque essas medidas não causariam nenhum mal. Porém, quando se trata de remédios que têm efeitos colaterais, é preciso mais cautela. Esse é o dilema da medicina. É preciso ter um grau razoável de certeza, ou o remédio pode ser pior do que a doença.
Quando termina a pesquisa, o cientista tem que comunicar ao mundo o que descobriu. Isso é feito através de revistas médicas especializadas neste assunto. Por quê?
Porque essas revistas médicas avaliam se a pesquisa foi conduzida de acordo com métodos confiáveis. Faz uma revisão por pares. Pares são pessoas semelhantes ao pesquisador, que trabalham na mesma linha de pesquisa e que declaram não ter conflitos de interesse econômicos ou de outra ordem com o estudo em questão. Eles avaliam o método e a estatística e, se acharem que está bem feito e pode contribuir para o conhecimento, publicam para que toda a comunidade médica possa ler. Veículos como mídia social e imprensa não usam esse crivo.
Cada médico é livre para prescrever ao seu paciente. Pode usar medicamentos que ainda não tenham comprovação científica de eficácia. Isso se chama uso off-label. Nesse caso, porém, deve explicar que não é cientificamente comprovado, e o paciente ou a família (quando for o caso) deve autorizar, preferencialmente por escrito. Se prescrever um tratamento que não tem eficácia comprovada sem avisar o paciente ou dizendo que é cientificamente comprovado, é erro médico.
A Faculdade de Medicina da USP está conduzindo várias pesquisas sobre a COVID19. E também tem sido chamada para opinar sobre pesquisas que mostram resultados de novos tratamentos. Os tempos são difíceis. A maioria das pesquisas foi feita com número pequeno de casos. Por isso, algumas mostram bons resultados com um medicamento e outras mostram que o mesmo é ineficaz. Muitos pesquisadores preferem divulgar pela via mais rápida, que são as redes sociais, mas esse caminho não é o correto e não permite que os demais possam conhecer detalhes da pesquisa para avaliarem se foi bem conduzida. Algumas mostrarão no futuro, que estavam certas.
Muitas terão o destino do esquecimento por estarem incorretas. Há muita gente, no mundo todo, procurando soluções para salvar vidas. E também há alguns procurando apenas fama ou outros que possuem interesse econômico ou mesmo político. A maneira de diferenciar é conhecer a pesquisa em profundidade e avaliar se foi feita de maneira correta. Só quem tem experiência em pesquisa pode fazer isso. O resto é pirotecnia.”
Colegiado dos Professores Titulares da Faculdade de Medicina da USP
(Universidade de São Paulo)
(O grupo é composto por pesquisadores renomados, que estão na linha de frente das pesquisas sobre a doença, como o infectologista Esper Kallas, que lidera a comissão de crise do Hospital das Clínicas, o hematologista Vanderson Rocha, diretor presidente da Fundação Pró-Sangue, que está coordenando os trabalhos com plasma do convalescente, e o epidemiologista Paulo Lotufo. Também compõem o colegiado os professores Pedro Puech, Irene Noronha, Rosa Maria Pereira e Tarcísio Eloy Pessoa. – Fonte: Jornal o Estado de São Paulo – por Giovana Girardi, 17 de abril de 2020 | 15h15)