A contramola da medicina

janeiro 22, 2023
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9 min de leitura

Por André Islabão

“Quem tem consciência para ter coragem.

Quem tem a força de saber que existe.

E no centro da própria engrenagem

Inventa a contramola que resiste.”

João Apolinário

Na década de 1970, os Secos e Molhados fizeram um enorme sucesso com sua estética provocadora, sua musicalidade eclética e sua rica poesia. A música de onde foi extraído o trecho da epígrafe é de uma das canções mais conhecidas e emblemáticas da banda. A poesia foi escrita por João Apolinário, poeta português e pai de um dos integrantes do grupo, João Ricardo, o qual costumava musicar as belas poesias do pai. Primavera nos dentes é uma poesia ao mesmo tempo delicada e forte escrita como forma de resistência ao regime ditatorial que grassava na época em que foi composta em Portugal. Curiosamente, a música acabou sendo importante no contexto de resistência à ditadura brasileira nos anos de exílio do poeta no Brasil.

O que nos interessa aqui são duas ideias principais. A primeira é a feliz percepção de que obras poéticas podem tanto representar como servir de inspiração para ações práticas. A outra ideia é a da necessidade, em muitas situações, de algo como uma contramola, de algum tipo de dispositivo que ofereça a resistência necessária para que uma determinada engrenagem não desenvolva uma velocidade demasiadamente alta a ponto de sair dos trilhos ou de se autodestruir. Esta segunda ideia pode ser bastante pertinente no ambiente atual da medicina e da saúde.

Dentro da engrenagem tecnocientífica da medicina atual, existem determinados atores que defendem a implementação de um cuidado de saúde cada vez mais tecnológico, apressado, virtualizado e impessoal, além de uma ciência médica cada vez mais rápida e de resultados previsíveis. O problema é que esta medicina fasthi-tech e desumanizada pode não ser o melhor caminho nem para as pessoas atendidas pelo sistema e nem mesmo para os profissionais que nele atuam. Assim, reduzir a velocidade maluca dessa medicina hiperbólica pode ser altamente desejável pelo fato de nos permitir uma transição mais suave e por gerar o tempo necessário para as reflexões que surgem ao longo do caminho e que podem, algumas vezes, nos fazer evitar ou abandonar certas novidades.

Em um sistema complexo como a engrenagem da medicina, é fundamental a existência de elementos que funcionem como uma contramola, oferecendo uma resistência desejável não para que a medicina pare no tempo ou volte de maneira nostálgica a algum passado menos brilhante, mas para que nossa evolução seja feita com parcimônia, segurança e tendo a saúde das pessoas e a própria continuidade de uma atividade médica de qualidade como objetivos principais. É evidente que não seria correto falar em ditadura dentro da medicina, mas existe com certeza um poder hegemônico altamente concentrado em grandes corporações que tenta diariamente retirar poder de médicos e pacientes e contra o qual é necessário, sim, oferecer alguma resistência.

Sem oferecermos alguma resistência, logo a “medicina” (observe a importância das aspas aqui!) poderá ser exercida ou intermediada por um punhado de máquinas e algoritmos oferecidos por empresas de tecnologia e operadoras de saúde que tentam economizar a mão de obra médica. As consultas de carne e osso (mesmo aquelas fundamentais!) serão substituídas por teleconsultas frias e distantes e o exame clínico do paciente será completamente substituído por exames complementares ou por uma infinidade de dados biométricos capturados por dispositivos vestíveis (wearables), transmitidos em tempo real para máquinas e empresas que administrarão esses dados, sem necessariamente ter o benefício das pessoas como objetivo principal. Além disso, se permitirmos que a ciência médica continue sendo colonizada e conduzida pela indústria, a quem permitimos realizar com relativa liberdade os testes de seus próprios medicamentos, recursos diagnósticos e dispositivos tecnológicos, logo estaremos medicalizando e farmaceuticalizando cada pequeno aspecto da vida humana.

Não se deve pensar que tal realidade distópica seja totalmente absurda ou que ela não seja do interesse das grandes corporações. De forma alguma. É que às vezes as transformações são graduais e podem passar despercebidas. Também não se deve pensar que a função da contramola nesse sistema seja a de evitar por completo todas as mudanças que a atividade médica deve sofrer nas próximas décadas e que podem, algumas delas, ser muito bem-vindas. O que a contramola pode nos proporcionar é que, por exemplo, não sejamos engolidos pela revolução da telemedicina, com os consultórios médicos fechando em massa e as operadoras de saúde gradualmente dispensando médicos de carne e osso e os substituindo por máquinas ou por um punhado de profissionais que aceitem as novas condições de exploração do trabalho médico. Neste caso, oferecer resistência pode nos proporcionar uma transição gradual e limitada, com tempo suficiente para a adaptação de profissionais e pacientes e com a telemedicina servindo principalmente àquelas pessoas e profissionais de saúde que se encontram distantes dos recursos diagnósticos e terapêuticos, mas mantendo a opção de consultas presenciais para todas aquelas pessoas que delas necessitam, como, por exemplo, aqueles que não dominam ou não têm acesso às tecnologias mais modernas, aquelas pessoas com casos clínicos mais complexos e aquelas que simplesmente não abrem mão do toque afetuoso de seu médico de confiança.

Existe também a necessidade de uma proteção contra a neomania, aquela ideia errada de que tudo que é mais novo é necessariamente melhor. A resistência oferecida pela contramola neste caso pode permitir, por exemplo, que novas tecnologias só sejam incorporadas à prática médica e substituam as tecnologias anteriores após terem demonstrado de forma clara em estudos sérios e independentes (e não por estudos conduzidos pela própria indústria que fabrica as tecnologias) a sua superioridade em relação a custos e benefícios clínicos. Da mesma forma, nossa função de contramola em relação à ciência médica não visa impedir os avanços benéficos de novas tecnologias e medicamentos. Longe disso, o que se pode conquistar ao oferecer alguma resistência é que tais tecnologias e medicamentos sejam avaliados sem pressa e de maneira imparcial pelas agências reguladoras, com os estudos sendo analisados e confirmados por pesquisadores independentes antes de serem amplamente adotados pelos sistemas de saúde.

Na engrenagem atual da medicina, a função de contramola é exercida por todas as pessoas que procuram fazer críticas construtivas, demonstrar possíveis falhas nos modelos atuais e, sempre que possível, apontar novos e melhores caminhos. É por isso que a crítica construtiva e responsável em todos os momentos deve ser bem-vinda, pois ela atua como força seletiva para que a boa ciência possa ser reconhecida e continuamente melhorada. Essa contramola que insiste em resistir é também representada por diversas organizações sem fins lucrativos como a Colaboração Cochrane, a Choosing Wisely, a RIAT (Restoring Invisible & Abandoned Trials), a Transparimed, a NoGracias, a própria Slow Medicine e tantas outras que, de forma quase heroica, dedicam parte de seu tempo a resistir e demonstrar que nem toda novidade é necessariamente melhor, da mesma forma que nem tudo que é velho e passou pelo teste do tempo precisa ser demolido para dar lugar a incertas modernidades. 

A quem esta reflexão possa parecer exagerada, é preciso lembrar que uma boa dose de precaução é necessária não porque este cenário distópico descrito seja o mais provável de acontecer, mas simplesmente por ele ser uma possibilidade real e preocupante. Como diz a canção, é preciso primeiramente termos consciência dos problemas para depois criarmos a coragem necessária para falar daquilo que muitos já perceberam. Que as boas novidades cheguem em seu tempo certo, sem pressa e sem exageros. Que tenhamos sabedoria para reconhecer e rechaçar aquelas outras novidades que possam representar algum tipo de ameaça para a saúde das pessoas e para a própria atividade médica. Que os médicos reconheçam a sua força quando se unem para defender o seu trabalho, a boa ciência e a saúde das pessoas. E que esta reflexão em tom de alerta não fique também ela presa entre os dentes, mas ganhe o mundo na forma de um grito de resistência sempre pronto a arrebatar outros corações e mentes em defesa da saúde das pessoas, da ciência de verdade e da boa medicina.


André Islabão: Sou médico internista formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) com três anos de residência em Clínica Médica pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Depois de vários anos dedicado ao atendimento de pacientes hospitalizados, decidi reduzir o ritmo e me concentrar no atendimento ambulatorial, domiciliar e em consultório próprio. 

O tempo disponibilizado possibilitou que me dedicasse a outras atividades igualmente importantes, como a vida em família, a música, a tradução de livros médicos, o estudo de saberes diversos e o acompanhamento de pessoas em clínicas geriátricas, onde realizo um trabalho informal de musicoterapia tocando piano regularmente e levando um pouco de alegria aos moradores idosos. 

Para mim, a medicina é tanto arte quanto ciência. A fim de humanizá-la e de reduzir alguns excessos, acredito na filosofia slow, em uma relação médico-paciente longeva, na transdisciplinaridade do conhecimento e na análise crítica da ciência. Meu novo ritmo ainda me possibilita compartilhar ideias próprias em meu blog (www.andreislabao.com.br) e em dois livros publicados: Entre a estatística e a medicina da alma – ensaios não controlados do Dr. Pirro e O risco de cair é voar – mors certa hora incerta

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