“Nós poderíamos ser muito melhores se não quiséssemos ser tão bons.” (Sigmund Freud)
Por André Islabão
O conhecimento científico nunca será completo nem eterno, e as “verdades” da ciência duram somente o tempo suficiente para que uma teoria nova e melhor seja desenvolvida e tome o lugar da anterior. Assim, para a evolução da ciência é fundamental que coexistam pessoas com visões diversas que sejam respeitadas e que participem de um debate científico aberto baseado na ética e nas evidências disponíveis até aquele momento. Qualquer tentativa de censurar as visões que destoem da narrativa oficial é, de certa maneira, uma obstrução à própria ciência.
Por outro lado, essas limitações da ciência também fazem com que os médicos enfrentem dificuldades ao tomarem suas decisões clínicas. E não é razoável esperar até que tenhamos certeza absoluta para agir na tentativa de ajudar o paciente à nossa frente. Na imensa maioria das vezes devemos tomar decisões com base em evidências incompletas ou conflitantes na tentativa de assegurar, tanto quanto possível, um melhor desfecho clínico para os pacientes. A questão que surge é saber em que medida tais incertezas devem ser compartilhadas com os pacientes e a melhor forma de fazê-lo, a fim de que a presença inevitável de incertezas não seja confundida com uma completa ausência de conhecimento.
A pandemia recente trouxe à tona – de maneira dolorosa – a questão da tomada de decisões necessárias e urgentes com base em dados científicos escassos ou ausentes. Isso gerou graves problemas de comunicação entre as autoridades e a população, o que parece ter reduzido a confiança de muita gente na ciência e na própria medicina, o que pode ter impactos negativos e duradouros sobre a saúde das pessoas e a credibilidade dessas instituições.
Preocupados com isso, os colegas do American College of Physicians publicaram recentemente um belo artigo[1] onde abordam essas questões. Os autores utilizam exemplos históricos como a teoria antisséptica de Ignaz Semmelweis e a terapia de reposição hormonal na menopausa como exemplos de desenvolvimentos científicos com avanços e retrocessos, onde o tempo e o debate aberto de ideias conflitantes foram fundamentais para se chegar à situação atual onde as nuances que envolvem essas questões são mais bem compreendidas. Reconhecendo que um processo semelhante se aplicasse igualmente bem ao desenvolvimento científico na pandemia, os autores salientam alguns pontos que sempre deveriam nortear o discurso acadêmico.
Como as incertezas são inerentes ao processo de desenvolvimento científico, é fundamental que exista um tanto de humildade epistêmica por parte de todos os atores envolvidos, o que significa reconhecer que aquilo que consideramos como verdade absoluta e inabalável atualmente pode ser desacreditado à luz de novas descobertas, da mesma maneira que as visões contrárias ao conhecimento atual podem se tornar a conduta clínica padrão logo ali adiante.
A fase inicial da pandemia se caracterizou pela divulgação de estudos de má qualidade associada ao anseio para descobrir imediatamente uma verdade que estava ainda bastante distante de todos nós. Na pressa de transparecer uma certeza que não existia naquele momento, as autoridades – muitas vezes dentro da própria medicina – extrapolaram arrogância ao tentar justificar a adoção de medidas de alto impacto na vida das comunidades e cuja base científica era absolutamente escassa ou, pelo menos, bastante duvidosa, muitas delas sendo desacreditadas alguns meses mais tarde. Independentemente das eventuais boas intenções das partes envolvidas, é possível que a adoção dessas mesmas medidas com um pouco mais de honestidade em relação às incertezas trouxesse mais benefícios para todos, principalmente no longo prazo, ao preservar a credibilidade da ciência e da própria medicina.
Para os autores, é imperativo que se promova o espírito científico desde cedo na formação dos médicos e futuros pesquisadores. Isso inclui nutrir valores fundamentais como integridade, honestidade, imparcialidade e transparência entre todos os atores envolvidos na produção e análise do conhecimento científico. Isso pode parecer óbvio, mas é cada vez maior o número de críticas ao sistema de produção científica na área da medicina. E, infelizmente, tais críticas são cada vez mais pertinentes.
É fundamental que se recupere a credibilidade no processo de produção científica, mas para isso é necessário que os valores básicos da empreitada científica sejam defendidos em todas as etapas. Assim, os pesquisadores devem ter independência e objetividade suficientes para delinear, conduzir e analisar os estudos. Deve-se defender a transparência absoluta dos dados de forma que eles possam ser acessados e avaliados por outros pesquisadores. E deve-se manter uma mentalidade aberta quanto às críticas, reconhecendo seu efeito benéfico sobre a evolução de conhecimento científico.
A defesa dos valores científicos mais básicos citados anteriormente é importante não apenas para pesquisadores e profissionais, sendo ainda mais fundamental em nível institucional. Com cerca de 75% dos estudos clínicos em medicina sendo conduzidos pela própria indústria[2], fica fácil compreender o tamanho do problema que temos pela frente. Isso pode incluir delineamentos tendenciosos, dados sigilosos e publicação seletiva, entre tantos outros problemas potencialmente causados pelo financiamento da ciência pela própria indústria.
Dentro do ambiente acadêmico também é necessário nutrir o ceticismo em relação à ciência e defender a livre expressão daqueles profissionais com visões diversas. Durante a pandemia, não foram poucos os casos de profissionais que foram lançados ao ostracismo ou que perderam seu lugar na academia simplesmente por defender um posicionamento epistêmico destoante da narrativa oficial. É evidente que o cerceamento do pensamento acadêmico em nada ajuda ao desenvolvimento da ciência.
Segundo os autores, é fundamental educar a população sobre as incertezas inerentes ao conhecimento científico, mantendo-se sempre em mente o seu caráter limitado e mutante. Deve-se também evitar posicionamentos dogmáticos que possam transparecer um grau de certeza incompatível com a realidade, bem como se deveria evitar que declarações sensacionalistas feitas na mídia ou em redes sociais sejam levadas ao pé da letra.
A fim de melhorar a compreensão da população sobre as informações relacionadas à saúde, os autores fazem uma distinção útil entre os termos “desinformação” (disinformation) e “misinformação” (misinformation), os quais não deveriam ser usados como sinônimos. A desinformação seria aquela informação que o locutor sabe que está errada, mas que é utilizada assim mesmo para enganar as pessoas e deliberadamente causar dano ou obter algum benefício pessoal. Por outro lado, a misinformação se refere a informações imprecisas que são transmitidas sem a intenção deliberada de causar dano. O combate à misinformação é mais simples e inclui dar preferência a fontes confiáveis de informação. Já o combate à desinformação é mais complicado por envolver aspectos éticos e legais ligados à profissão. Além disso, considerando-se a história de Semmelweis e da TRH, deve-se ter em mente que a fronteira entre verdade e falsidade em medicina é imprecisa e que o combate a todo tipo de informação destoante da narrativa oficial pode comprometer a própria evolução da ciência médica. É nesse ambiente escorregadio que o bom senso e o comportamento ético são ainda mais fundamentais.
Os autores lembram que princípios como o ceticismo robusto, o debate aberto, o respeito pelas visões destoantes e a compreensão das limitações do conhecimento científico são fundamentais para a evolução da ciência e da própria medicina. E, se tais princípios são importantes no dia a dia da medicina, eles passam a ser absolutamente fundamentais nas situações de crise, como no caso das pandemias – situações complexas e cheias de nuances para as quais as respostas simplistas não costumam ser a melhor opção.
[1] https://www.acpjournals.org/doi/10.7326/M24-0648?utm_source=cmpnr&utm_campaign=lfa_240730_2&utm_content=2&cmp=1&utm_medium=email
[2] https://jamanetwork.com/journals/jama/fullarticle/196846
André Islabão: Sou médico internista formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) com três anos de residência em Clínica Médica pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Depois de vários anos dedicado ao atendimento de pacientes hospitalizados, decidi reduzir o ritmo e me concentrar no atendimento ambulatorial, domiciliar e em consultório próprio.
O tempo disponibilizado possibilitou que me dedicasse a outras atividades igualmente importantes, como a vida em família, a música, a tradução de livros médicos, o estudo de saberes diversos e o acompanhamento de pessoas em clínicas geriátricas, onde realizo um trabalho informal de musicoterapia tocando piano regularmente e levando um pouco de alegria aos moradores idosos.
Para mim, a medicina é tanto arte quanto ciência. A fim de humanizá-la e de reduzir alguns excessos, acredito na filosofia slow, em uma relação médico-paciente longeva, na transdisciplinaridade do conhecimento e na análise crítica da ciência. Meu novo ritmo ainda me possibilita compartilhar ideias próprias em meu blog (www.andreislabao.com.br) e em quatro livros publicados: Entre a estatística e a medicina da alma – ensaios não controlados do Dr. Pirro; O risco de cair é voar – mors certa hora incerta; Slow Medicine: sem pressa para cuidar bem (em parceria com a Ana Coradazzi); e A Arte de Espantar Dinossauros, pela Editora Ballejo.
Excelente artigo! /bastante esclarecedor. O que importa é a experiência de cada um. Não nos deixemos influenciar por misinformation, nem por disinformation.
Muito obrigado, Nilton!
Esse assunto é árido. Moro nos EUA e percebo como a ética inexiste. Tanto na prática médica quanto na big farma.
Estou me submetendo a uma pesquisa científica para tratamento de depressão. Nesse momento, me parece que os novos cientistas tem saído do lugar comum americano, visando a melhora do paciente ao invés do lucro. À conferir . Belo artigo!