A expressão da espiritualidade no decorrer dos tempos

setembro 23, 2020
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Por: Jaqueline Doring e Vera Bifulco

“Todo espaço de certeza é um espaço de morte, pois anula a possibilidade de transformação.” – Anônimo

Existem várias definições para tentar expressar o que a espiritualidade vem a ser; todas, sem exceção, são falhas, pois tentam generalizar o individual. A espiritualidade encontra-se no âmago de cada ser vivente, é algo visceral. Portanto, manifesta-se dentro de um caráter individualista, próprio, ímpar e singular de cada um. Pode ou não estar inserida em uma religião escolhida, mas existe independentemente desta.  É o sagrado que habita o ser em uma dimensão não racional, uma eterna busca em que muitas serão as perguntas e, talvez, poucas as respostas, porque pertence ao sentir, ao estar com a atenção plena no momento vivido, em uma sensação de pertencimento com o todo.  

Sensibilizar-se por meio dos mitos e símbolos

A busca pela compreensão da existência é importante, mas fadada a ser incompleta, sempre. Nunca chegaremos ao final. Mesmo assim, é importante persistir buscando, pois o segredo está exatamente na busca.

O mito de Psique, retransmitido pelo romano Apuleio no século IV d.C., em certo aspecto, simboliza a alma humana, que por meio da personificação do Amor atinge um estado interno elevado, a ponto de purificar-se e de merecer viver no palácio dos Deuses, que seria uma completa compreensão dos mundos, a sabedoria.

Podemos inferir, com algum conforto, que Espiritualidade é a manifestação do amor. Ela não necessariamente surge em momentos de sofrimento e pode desvelar-se em átimos de deslumbramentos de amor. Utilizarmos nossa prática diária para tornarmo-nos sensíveis à beleza que há em todas as manifestações, constatando algo de mais profundo, de não arbitrário e dotado de sentido, constitui um caminho para a espiritualidade. Consiste no fato de despertarmos para além dos nossos quatro sentidos vis. Na civilização egípcia, não havia nada que fosse banal, o sagrado estava em tudo. E tornar algo sagrado significa dotá-lo de sentido.

Então, desde a maneira como iniciamos nosso dia, a forma como cumprimentamos alguém ou agimos diante dos fatos, nossa relação com os demais, nossa capacidade de sermos criativos, de alegrarmo-nos, tudo pode ser relacionado a esse espírito que estamos tentando traduzir, e pode-se inferir que tem relação com o quanto de amor estamos vivendo. Basta lembrarmos, em uma pequena instância, do quão bom é estarmos apaixonados, o quanto tudo na vida passa a ter mais entusiasmo, e esse amor expande-se exponencialmente a tudo e a todos. Essa expansão que faz com que estabeleçamos uma relação, uma correspondência com os mais diversos eventos, é uma forma de simbolizar.  

Portanto, se buscamos nos formar como pessoas, precisamos também aprender a respeito dos símbolos, pois a visão simbólica é o requinte da mente humana, e essa noção constitui um dos reflexos do Amor. Ainda, há de refletir que o mais elevado entusiasmo é uma condição do espírito, um movimento por um impulso em fazer o Bem.

Percepção – Matemática do Universo

“Saibamos ou não, todas as coisas recebem sua existência daquele que as percebe.”  – Upanishad

Trata-se de perceber tudo à nossa volta. Seja na sua profissão, seja nas relações, seja em embasar seus pensamentos e suas atitudes em elementos nobres, virtuosos – tudo isso consiste em sacralizar a vida. Fala-se da entrega, do esforço, do colocar em cada coisa o nosso melhor. Pode-se começar alinhando a coluna, melhorando a postura e o tom de voz, apreciando os alimentos, os propósitos e as intenções.

O princípio nono da filosofia Slow Medicine fala exatamente da paixão e compaixão, resgatar a paixão pela atenção a tudo que nos cerca, desde o auto cuidado à busca incessante de humanização nos cuidados a saúde.

Nossa sociedade está carente de símbolos e de referenciais. Precisamos de bons professores, por isso também a nossa necessidade de convivência. Existe uma inteligência na arte de relacionar-se (seja qual for a forma), de dominar as nossas emoções e assim, conhecer-se cada vez mais. Faz-se necessário construir uma disciplina psíquica de voltar-se ao crescimento mediante a superação das adversidades. Se não houvesse obstáculos, o que levaria o homem a crescer? Nada traz mais satisfação do que realizar aquilo que nos compete. O problema está, na maioria das vezes, em não sabermos sequer o que nos é próprio. Por isso, ao buscarmos um relacionamento baseado no centro, ordenado em uma base moral sólida e compassiva, podemos alinhar os fios condutores do homem como parte de nossa formação espiritual. Essas leis sutis que regem as condutas do homem, ordenando por meio de uma disciplina física e psicológica, regem os processos normativos na natureza.

A conexão com o sagrado é puramente espiritual. Essa conexão que se faz é sempre entre duas partes, que podem ser duas pessoas, ou uma pessoa e a natureza ou uma divindade, mas pressupõe sempre a existência do outro.  Ela é também estética, pois fala do belo, de uma forma não verbal, de uma estética própria que pertence a cada um dentro de sua imaginação soberana. O belo que se absorve e que transcende, e não necessariamente precisa ser entendido senão sentido, consiste no ser arrebatado pela beleza do sagrado.

Há um mecanismo oculto no universo, para o qual a ciência tem apenas boas hipóteses, mas nenhuma certeza. O macrocosmo (universo) faz parte da mesma natureza do microcosmo atômico. Forças poderosas de atração e repulsão. Se não houvesse atração, tudo se dispersaria em partículas; se não houvesse repulsão, tudo se comprimiria em um único ponto. A beleza na natureza reside no equilíbrio constante. Romper esse equilíbrio do mundo atômico com a fissão nuclear pode libertar forças potentes, capazes de benefícios, mas também de destruição.

Perceber o entorno e estar aberto à compreensão é estar disposto a entender a língua da vida. Ao observarmos a inteligência por trás das leis universais, como, por exemplo, a relação da vesica piscis e da raiz quadrada de 3 com o hexágono, que é a simetria da ordem para a medida da terra, a medida do tempo e também a formação básica dos cristais minerais (em particular, a cadeia de elementos do carbono, que permite a formação de todas as substâncias orgânicas), pode nos ocorrer o sentimento de deslumbramento. E mais: se constatarmos poeticamente que o raio é a “raiz do céu”, pois transforma o carbono e o nitrogênio em compostos assimiláveis para as plantas, veremos a organização espetacular que existe e que torna a chance de um universo caótico muito reduzida.

Nessa linha de pensamento, a proporção áurea é a divisão perfeita da unidade. Marca o início de uma sequencia infinita e que esta expandindo, a qual nos afasta cada vez mais desse um inicial, mas que se aproxima gradualmente da razão perfeita. A divisão pela proporção áurea gera um padrão de evolução onde o objetivo consiste no reflexo da perfeita unidade original.

Extrapolando as compreensões, se considerarmos este princípio de construção geométrico, poderemos inferir que a proporção áurea é uma evidência proporcional de uma possível evolução consciente, bem como de uma evolução da consciência.

Verificamos esse padrão na distribuição das sementes do girassol, no chifre do carneiro, no ouvido interno,  na espiral da formosa concha do Nautilus pompilius. Para os pitagóricos, esta forma revelava a dinâmica da formação rítmica do cosmos e, por meio de seu harmônico princípio, representava o amor universal.

Ainda, constamos a famosa série Fibonacci, que aparece com frequência nos fenômenos naturais, na proporção entre machos e fêmeas em uma colmeia, bem como  no número das ramificações do tronco de uma planta. A criação não pode existir sem a percepção, e a percepção é relação,ser é relacionar-se. Nessa compreensão, encontra-se a chave para o autoconhecimento.

Os exemplos arquetípicos da relação podem ser observados nas leis da proporção que existe nos números puros e nas formas geométricas.  Na psique, essa proporção dá-se ao viver o amor em todas as suas manifestações, ao unir o centro de um com o centro do outro e iniciar o processo criativo da formação.

Dizem que um pouco de ciência afasta o homem da espiritualidade, mas um mais de ciência aproxima-o de novo da divindade. Frente ao poder da natureza, o homem apequena-se, mas, ciente da natureza que há dentro de si, ele transcende na divindade.

O cuidado como instinto básico essencial

Pela tentativa de compreensão do Universo, reduz-se o tamanho que dedicamos a nós mesmos, e amplia-se o olhar para o outro. Essa visão altruísta expressa-se na capacidade de enxergar o que o outro poderá ser, de auxiliá-lo para que supere os obstáculos e não desista diante dos temperamentos e tendências Nesse trabalho de querer conhecer verdadeiramente quem está diante de nós, tornamo-nos mais aptos para cuidar também de quem adoece.

O cuidado com a individualização no atendimento, princípio segundo da Slow Medicine, onde cada ser é único e não existem duas digitais iguais. O cuidado individualizado requer desvelar a história biológica da doença concomitantemente com a história biográfica do doente.

Da mesma forma, uma medicina mais espiritualizada entende que a dor e o sofrimento são inerentes à existência e devem ser abordados na sua profundidade, obedecendo às escolhas do paciente.  

No passado, frente aos ínfimos recursos da medicina, em muitos momentos, restava somente a fé. Atualmente, vemos uma evolução tecnológica e uma ciência com vastos recursos, mas que não respondem a todas as questões. A angústia do homem não diminuiu, e ele se volta novamente para a busca profunda de sentido e transcendência.

Há de se fazer um alerta para a necessidade de uma nova consciência médica, em que a tecnologia deve ser associada a uma relação médico-paciente lastreada em amor, dedicação e abertura para a espiritualidade, colocando o paciente em primeiro lugar, com toda a sua bagagem de vida. Lembrando a famosa frase de Confúcio, “se queres servir aos Deuses, sirva primeiro aos homens”. Sendo assim, ao falarmos de espiritualidade, podemos partir, primeiramente, da boa vontade em servir aos seres humanos.

Esse alerta encontra respaldo em vários princípios que regem a Slow Medicine,  como o Tempo. Tempo para ouvir, entender e refletir junto ao paciente. Individualização, no cuidado particularizado. Somos seres únicos; o paciente deve sempre ser o foco de atenção, e seu ponto de vista e valores, respeitados.

Fazer uso parcimonioso da tecnologia, décimo princípio da Slow Medicine. Nada substitui a clínica, o “olho no olho”, a presença não só física, mas espiritual do médico a nossa frente, que nos vê e nos ausculta. O qual com seu humanismo e sensibilidade faz acender a chama misteriosa da alegria. Essa chama não se acende com poções químicas, ela precisa da voz, da escuta, do olhar, do toque, do sorriso. Médicos e toda a equipe de saúde são ao mesmo tempo técnicos e mágicos, a quem é dada a missão de consertar os instrumentos (nossos corpos) e despertar neles a vontade de viver (acender ao espírito), emitir sons.

Como médicos, não podemos oferecer sempre a cura. Como humanos cuidando de outros humanos, podemos oferecer a acolhida, o consolo; podemos dividir as dúvidas que permeiam nossos mais íntimos recursos e sentar frente a frente com nosso paciente. Em uma relação de amor e confiança – elo indissolúvel que nutre e dá vida, mesmo que a cura não seja mais possível –, permite-se que se morra de “alma curada”, o que fará a grande diferença nas últimas horas. Amar alguém, como dizia Gabriel Marcel, é dizer: você não morrerá nunca. Essas palavras somente podem acontecer se afirmarmos com nossa atitude: você sempre me terá ao seu lado.

Não nos preparamos para morrer, e talvez aí se esconda a grande falha humana. Preparar-se para morrer é tão somente pensar na nossa condição de seres finitos. Temos um tempo útil na vida, o qual sabemos que terminará um dia, mas o ignoramos quando a atitude lógica seria trilhar o pensamento: “como estou vivendo, quais os valores que permeiam minhas escolhas, quais meus propósitos de vida, como, afinal, estou vivendo cada dia que me foi proporcionado”? A experiência da proximidade da morte pode trazer uma compreensão apaixonada e esperançosa, integrando-se na perspectiva da vida.

“Caminhante, não há caminho,

O caminho se faz ao caminhar.”

Antonio Machado

A espiritualidade pode ser um instrumento transformador: transformar conhecimento em sabedoria. Não temos a ilusão de conhecer todos os caminhos, mas sabemos que caminhar é preciso, independentemente do solo e do caminhante. Não existe involução. O conhecimento, mesmo ínfimo, é um caminho sem volta. E, quando nos colocamos como aprendizes da vida, aceitando o tempo de tudo na natureza, vivemos o agora.  Por qual motivo queremos longevidade senão para encontrar o sentido disso tudo? Talvez nosso caminho espiritual seja viver no presente a sublime arte das expressões do amor. 

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Vera Anita Bifulco: psicóloga, psicooncologista, mestre em Cuidados Paliativos pelo Cedess/ Unifesp. Teve a oportunidade de conviver e trabalhar com o Professor Marco Tullio de Assis Figueiredo no ambulatório de Cuidados Paliativos, fato marcante em sua trajetória profissional. É co-autora de três livros, “Câncer Uma Visão Multiprofissional” I e II, Cuidados Paliativos, Conversas Sobre a Vida e a Morte na Saúde” e “Cuidados Paliativos – um olhar sobre as práticas e as necessidades atuais. Entendo a Espiritualidade como uma maneira de ver, sentir e viver um aspecto não material da vida que pressupõe uma transcendência, um significado e um propósito maior para nossa existência.

Jaqueline Doring Rodrigues: médica geriatra com especialização em Cuidados Paliativos. Trabalha no Hospice Erasto Gaertner em Curitiba, Paraná. Acredita que a primeira das Ciências é o cuidado da alma e a segunda, o cuidado do corpo e que no decifrar a doença como linguagem da alma estamos diante à verdadeira cura.

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Otávio Vanni
Otávio Vanni
3 anos atrás

São reflexões tão profundas…muito bom o texto! Obrigado

Jaqueline Doring Rodrigues
Jaqueline Doring Rodrigues
3 anos atrás

Ficamos felizes que o texto pode exprimir essas reflexões, Otávio. Obrigada por dividir conosco.

Alcione A Ruckert
Alcione A Ruckert
1 ano atrás

Que feliz surpresa encontrar estas palavras em considerações tão profundas , sensíveis e acertadas! Plenas de sentido! Mto mto obrigada! 

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