Por José Carlos Campos Velho:
“O que se opõe ao descuido e ao descaso é o cuidado. Cuidar é mais que um ato; é uma atitude. Portanto, abrange mais que um momento de atenção. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro.”
Olhando para as últimas décadas, observamos uma tendência de comportamento, impulsionada pela tecnologia, de aceleração de quase todas as áreas da atividade humana. A Medicina não deixaria de ser uma delas. O tempo é mercadoria escassa na prática cotidiana, cada vez mais substituído por exames, remédios, intervenções. A conexão entre profissionais de saúde, pacientes e cidadãos vai se esboroando entre consultas apressadas e um desconhecimento cada vez maior do objeto de todo cuidado médico, o paciente. Fragmentado entre inúmeros especialistas, instituições e expectativas, hordas de pacientes se movimentam nos meandros do complexo médico-industrial, em busca de soluções para suas dúvidas e seus sofrimentos. A respostas são mais exames, mais especialistas, a busca insana de informações na mídia e nas redes sociais, onde a probabilidade de se defrontar com informação ruim e destoante é cada vez maior. Estamos todos meio perdidos, em um momento em que os avanços da medicina poderiam oferecer exatamente o contrário: tranquilidade, segurança, melhora, alívio, cura. Afinal, o que está acontecendo? Talvez a resposta esteja na atitude contrária: desacelerar.
No contrafluxo da medicina contemporânea, o Movimento Slow Medicine, que se enraíza no Movimento Slow Food, deflagrado em 1986, em uma manifestação liderada pelo ativista italiano Carlo Petrini contra a inauguração de um restaurante de Fast Food na Piazza di Spagna, em Roma, vem propondo novos paradigmas para atenção médica. Alberto Dolara, cardiologista italiano, publicou, em 2002, um artigo em uma revista de Cardiologia, chamado “Un invito ad una Slow Medicine”, sugerindo que talvez os princípios da Slow Food, que propunham um alimento Bom, Limpo e Justo em seu Manifesto, pudessem ser adotados em algumas situações frequentes da prática médica. O ponto cardinal do artigo é a sugestão da desaceleração do processo de tomada de decisões em saúde.
Em 2011 foi fundada a Associação Italiana de Slow Medicine em Turim, na Itália. Em seu primeiro congresso, foi elaborado o manifesto multilíngue da Slow Medicine, que propõe uma medicina Sóbria, Respeitosa e Justa. Sóbria, onde fazer mais não significa fazer melhor; Respeitosa, levando sempre em consideração os valores, desejos e expectativas dos pacientes e Justa, que propõe uma assistência à saúde democrática e igualitária, a todos acessível.
Nos EUA, vários escritores , desde 2008, entre eles médicos e jornalistas – Dennis McCullough, Ladd Bauer, Katy Butler, Victoria Sweet, Pieter Cohen e Michael Hochmann escreveram livros e artigos questionando o estado das coisas e propondo alternativas. Yung Lie, advogado holandês, junto com o médico Dick Kister criaram os magistrais 10 princípios da Slow Medicine, parâmetros para a aplicação prática, profundamente enraizados no cotidiano do trabalho dos profissionais de saúde, que aproximavam cada vez mais a Slow Medicine do Mundo Real.
No Brasil, embora já houvessem movimentações anteriores, o lançamento do site www.slowmedicine.com,br em Abril de 2016 incrustra-se como pedra fundamental para a divulgação do Movimento Slow Medicine em língua portuguesa. Desde lá, o Movimento vem crescendo, de maneira contínua e sustentada, com ampla capilarização de seus conceitos nas redes sociais. Um momento especial foi o lançamento do Movimento Slow Medicine Brasil em palestra do cardiologista Marco Bobbio na egrégia Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, em outubro de 2016.
Hoje o Movimento Slow Medicine configura-se enquanto uma ideia disruptiva, que questiona o status quo da Medicina contemporânea em suas raízes, perguntando-se sobre questões como sobreuso ( e subuso) de recursos, escolhas sensatas, cuidados paliativos, medicina narrativa, prontuário afetivo, sobrediagnóstico e sobretratamento, desprescrição, “desdiagnóstico”, o papel das humanidades na formação continuada dos profissionais de saúde, ou seja , questões candentes na prática atual, que podem significar uma verdadeira lufada de vento fresco e de águas límpidas nas areias movediças que às vezes a Medicina atual parece se afogar progressivamente.
Porém, tínhamos uma lacuna. Não dispúnhamos de uma literatura genuinamente brasileira que pudesse trazer estes conceitos à tona, esta discussão extremamente frutífera e as reflexões desafiadoras para que os profissionais de saúde e o cidadão comum mantivessem contato e pudessem compreender estes preceitos, “uma filosofia e um conjunto de princípios”, que lhes permitissem enxergar no emaranhado de informações – a selva da mídia contemporânea – um caminho mais simples e seguro de palmilhar a busca de uma vida saudável e uma convivência harmônica com a Medicina, enquanto arte e ciência. Baseada em Pilares como o Tempo, o Compartilhamento de Decisões, a Relação Clínica e o Uso Parcimonioso da Tecnologia, podemos ter uma relação mais saudável com a prática médica.
O livro “Slow medicine: Sem pressa para cuidar bem”, recentemente lançado em São Paulo, vem a preencher esta lacuna. Os escritores não poderiam ser melhores escolhidos – na verdade, eles não foram escolhidos – eles estavam fadados a escrever o livro. Talentosos, criativos, acessíveis, Ana Lucia Coradazzi e André Islabão, há longa data colaboradores do Movimento Slow Medicine e já com projetos literários pessoais consagrados, abraçaram a tarefa de clarificar os conceitos da Slow Medicine de maneira quase messiânica. Em uma obra escrita a quatro mãos, em uma harmonia raramente vista na literatura médica brasileira, baseados em casos reais, eles foram perfilando os princípios da Slow Medicine capítulo a capítulo, num entusiasmo crescente e envolvente, deixando o leitor atônito com a riqueza de informações e o verdadeiro mundo que se vislumbra atrás de cada página, gerando a vontade de conhecer mais. Sim! Há um caminho possível. Enriquecida pelo prefácio de Marco Bobbio e com os comentários de Luis Claudio Correia, é uma obra que está esperando por sua leitura. Na verdade, não posso imaginar o que você está fazendo que ainda não foi comprar o seu exemplar. Você estará fazendo algo de bom para si. Melhor, sejamos ambiciosos: você estará fazendo algo de bom para o mundo.
O livro pode ser adquirido na Summus Editorial e na Amazon. Não perca mais tempo. Dá para começar a ler ainda hoje.
Muito bom… Vou procurar o livro. Obrigado