A liga por uma liderança mais slow

abril 15, 2025
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10 min de leitura

Por Ana Carolina Eiris Pimentel

“ Mas, agora a coragem que temos no coração

Parece medo da morte mas não era então

Tenho medo de lhe dizer o que eu quero tanto

Tenho medo e eu sei porque

Estamos esperando…”

(Soldados – Renato Russo)

            Perante uma bancada sobreposta a 12 leitos, lá estava o temor de qualquer setor de terapia intensiva: a parada cardiorespiratória (PCR).  Sob gritos de puxar carrinho, começam as compressões e ciclos por uma vida. Médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem e fisioterapeutas estavam todos atentos e participando dos exaustivos rounds: Já contou o tempo? Quanto foi? Melhora essa compressão! Voltou? Sente o pulso… está com pulso?!

            O pulso ainda pulsa, e o leito 8 em parada, mas à nossa volta ainda existiam 11 leitos para se atentar. Nessa ocasião eu era residente e estava responsável pela gerência de enfermagem naquele mês. Não entrei na assistência direta e fiquei auxiliando por fora para dar suporte a toda a equipe. Quando o  paciente voltou à vida e o clima se aquietou, o cenário exibiu o caos: carrinho aberto, seringas e ampolas espalhadas, lençóis em exposição e o tic-tac do tempo em contagem. Nesse momento, Betinha, enfermeira da rotina do setor por quem tenho extremo carinho e admiração, olhou para mim e disse: “Aninha, vamos arrumar tudo, pois se tiver outra intercorrência está tudo pronto novamente.”

Nesse exato momento, o meu olhar para a liderança mudou completamente. Quanto nos cobramos para estarmos presentes em tudo, o tempo todo? Quem de nós nunca se cobrou por não conseguir atuar em uma intercorrência? Quem nunca se martirizou porque poderia ter agido melhor, ou mais rápido? Será que alguém já se perguntou se quanto menos pessoas durante uma PCR, melhor seria a condução deste protocolo? 

Eu me senti no filme da Liga da Justiça, na cena em que o  Flash, quase que intuitivamente, “congela” o Superman no tempo e se mostra feliz e aliviado por achar que conseguiu prender o super-herói. Mas ele não imaginava que Superman poderia adentrar na sua agilidade. Ele direcionou seu olhar para Flash, cortando seu espaço-tempo, e demonstrou que embora a rapidez possa ser muito eficaz, a pressa quase nunca o é. Com isso, Flash cai e perde seu poder momentaneamente.

Essa analogia me fez refletir sobre como conduzir as pessoas perante tantos acontecimentos que podem ocorrer num período curto de tempo. Como explicar e mostrar a elas que, mesmo numa necessidade iminente, não podemos esquecer que existe todo um setor a ser mantido? Que outras pessoas necessitam de vigilância e cuidados, e que a roda deve sempre continuar a girar? Que a sabedoria está em administrar o tempo, e não em dominá-lo?

A gestão de conflitos, para mim, sempre foi um desafio a ser manejado. Durante a residência me via envolvida em embates que me incomodavam. Como lidar com alguém que tem mais idade que eu, e não apenas isso, mais tempo de experiência profissional? Como solicitar uma ação ou sinalizar um erro? Como mostrar que também tenho algo a ensinar (todos temos!)?

Aqui vou confessar a vocês um “truque” que aprendi ao longo das experiências que tive, em como conquistar a parceria do técnico de enfermagem. Para quem não sabe, a equipe de enfermagem é composta por enfermeiros e técnicos de enfermagem, e sua quantidade nos setores em saúde varia de acordo com o grau de complexidade dos pacientes de acordo com uma estimativa de horas trabalhadas pela equipe por cada leito, ou seja, o quanto cada paciente depende dos cuidados de enfermagem. Essa relação profissional se dá através de um vínculo de liderança do enfermeiro perante o técnico, no qual ele responde por suas ações e o direciona nos cuidados.

Isso desafia as relações interpessoais no serviço: lidar com o outro frente a um delineamento de tarefas que são muito semelhantes é uma linha muito tênue de identificação nos conflitos. A responsabilização sobre o seu estilo de cuidado pode ajudar a demonstrar melhor um trabalho em conjunto, mas a cautela consiste em tomar cuidado para que isso não se confunda com o autoritarismo. 

O banho no leito, por exemplo, é um cuidado, culturalmente, direcionado ao técnico de enfermagem, mas o enfermeiro não só pode como deve atuar por ali, principalmente em pacientes com instabilidade hemodinâmica. Particularmente gosto de estar presente nos banhos, é um momento único e de resolutividade, é onde você já o examina, você conhece aquele corpo, conversa com o paciente e tem a incrível oportunidade de ganhar mais conhecimento para o seu plantão – porque as respostas estão ali, naquele corpo.

Toda vez que conheço um técnico pela primeira vez, assumo os cuidados junto dele e, ao virarmos o corpo do paciente para limpar o seu dorso, é quase automático que os técnicos o movam de forma que as costas fiquem voltadas para eles mesmos, assumindo para si a tarefa de limpar o dorso, trocar as fraldas e as roupas de cama. É nesse momento que costumo orientar: “Vire para o seu lado”, assumindo eu mesma a tarefa que por hábito é deles. Noto a surpresa – e até a agonia – em seus olhares. Alguns insistem que a tarefa é sua, outros só dizem:  “Não suja o meu leito por favor”. Para mim, é a deixa para adquirir sua confiança e construir uma parceria importante.

O banho tem metodologia, início, meio e fim. É um momento que, para quem sabe e gosta, é aproveitado com qualidade. Começamos pela cabeça e rosto, descendo para os braços, tórax, abdome, região íntima e pernas. Ao virar o paciente e expor seu dorso, começo a limpar seu pescoço e costas, já analisando a integridade da sua pele. Limpo os glúteos e faço um curativo, se for o caso, e inicio a troca dos lençóis. Coloco camada por camada, o lençol maior cobre a cama, em seguida o oleado com a camada impermeável que impede a passagem dos fluidos, por cima o traçado comprido que disfarça a parte escura do oleado, após dobro um lençol médio para o móvel que se posiciona em todo o dorso para ajudar a mobilizar o paciente no leito, e por último posiciono a fralda.

Diante de todo esse dançar, muitas vezes me sinto avaliada a cada etapa. É um momento de silêncio. Quando retornamos com o paciente em decúbito dorsal e finalizamos os cuidados, consigo mostrar ao meu colega que sou igual a ele, nem menor nem maior. Igual. Com esse gesto, demonstro aos  técnicos que ao saber fazer o que eles fazem eu me torno parte da equipe, e assim conquisto também sua confiança. O objetivo aqui não é mostrar como fazer melhor, é algo muito mais valioso que isso: trata-se de mostrar que seu líder está presente, é alguém com quem podem contar, é um parceiro. 

Aprendi também que a comunicação é a grande resposta para grandes conflitos, e ela se expande para muito além da fala. A postura corporal, com gestos e tom de voz, a segurança nas palavras, os olhares, a percepção sobre o ambiente e, sobretudo, o perfil da equipe são todos componentes importantes da comunicação eficaz. Desenvolver a capacidade da escuta ativa é um grande aliado para quem é líder. Saber ouvir, ter o famoso jogo de cintura, precisamos ser sempre calejados? A opinião de quem está na ponta é a que mais importa. Certa vez ouvi de Fabiana e Ellen, técnicas com quem aprendo muito e um dia serão grandes enfermeiras também: “Ana, seu perfil é democrático.” Me assustei, como assim? Eu vivia com medo o tempo todo de não ser efetiva, porque hoje em dia o cuidado é considerado um produto e nós uma massa de obra, um sistema simplista onde um manda e o outro obedece (e, portanto, nada de democracia). O fato é que fazer e obedecer não são o problema, desde que tenhamos noção de que a “máquina” que precisa funcionar é um ser humano, e que já é cientificamente comprovado que se trabalha com mais qualidade e eficácia com humanos quando o ambiente é harmonioso.

O famoso engajamento das pessoas modifica completamente o status do setor. Ações simples, que podem parecer insignificantes, estimulam os sentimentos positivos e acolhem os negativos. Já tentou colocar uma música para a equipe? Já deu um feedback positivo para eles sobre suas qualidades? Já os acolheu em momentos de extrema exaustão e necessidade? Já os inseriu na autocrítica do serviço? Dar voz a eles é inseri-los no processo: isso fortalece o vínculo e, como consequência, a qualidade dos cuidados.

Como então mostrar a um sistema já estruturado na burocracia e na linha de produção que a liderança autocrática, apesar de alimentar os indicadores e ofertar um tipo de qualidade no serviço, pode gerar uma maior dificuldade na gestão pessoas por influenciar de forma impositiva uma padronização de comportamento que nem sempre irá valorizar o indivíduo? Já estamos numa época em que o desenvolvimento sustentável do ambiente de trabalho é que eleva os indicadores em saúde. O plano de ação global para segurança do paciente tem como meta a educação de gestores em saúde com competência em liderar como ponto de alto impacto na prestação de cuidados,  sendo um dos objetivos estipulados pelo Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), de modo que isso impacta positivamente na qualidade de vida de todas as pessoas. Isso também é Slow Medicine.

A proposta aqui é compreender que uma liderança mais slow (leia-se sóbria, respeitosa e justa) é, de fato, investir algum tempo para analisar o perfil da sua equipe e o seu perfil enquanto líder. Reconhecer suas fragilidades enquanto líder é algo extremamente positivo (eu mesma não me considero uma líder tão boa). Na verdade, reconhecer suas fraquezas é o primeiro passo para ser um líder melhor. É a partir dessa  auto análise que as mudanças possam surgir. Dedicar a nós mesmos o olhar crítico que costumamos direcionar aos outros pode nos blindar das muitas armadilhas que as posições de liderança oferecem (lembra do Flash subestimando a capacidade do Superman?). Uma filosofia slow na organização das equipes de saúde é uma ótima alternativa para os modelos engessados de trabalho nos quais há pouca escuta, pouca troca, pouca satisfação e, certamente, uma eficácia para lá de questionável.


Ana Carolina Eiris Pimentel: enfermeira, graduada pela Universidade Federal Fluminense, cardiointensivista pelo Programa de Residência em Enfermagem Cardiovascular HUPER/UERJ. Colaboradora do Movimento Slow Medicine Brasil. Membro da Comunidade Médicos Poetas.

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