A medicina líquida

junho 1, 2023
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Por André Islabão

“Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar.”

(Zygmunt Bauman)

Líquidos e sólidos representam estados físicos da matéria bastante diversos. Os sólidos resistem às pressões externas e mantêm a sua forma original relativamente intacta, enquanto os líquidos se caracterizam pela forma fluida e instável que se adapta constantemente às circunstâncias sem oferecer resistência às pressões externas. A liquidez da sociedade moderna foi um tema extensamente explorado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman. Para ele, a sociedade atual se diferenciava muito daquelas mais antigas, onde uma certa solidez regia as instituições da sociedade e emprestava a elas algum tipo de estabilidade e segurança. Para Bauman, no lugar da rigidez prévia, a sociedade atual pós-moderna se caracterizaria por relações fracas, fugazes e superficiais. Tal fluidez das relações humanas – sejam elas sociais, econômicas, profissionais, etc. – comportaria um risco de deterioração gradual e de enfraquecimento progressivo das instituições da sociedade. 

Não é difícil imaginar que essa fluidez exagerada da sociedade moderna tenha afetado até mesmo instituições antigas e até então sólidas e estáveis como a própria medicina, transformando-a em algo como uma “medicina líquida”. E são várias as mudanças ocorridas nas últimas décadas que acabaram por reduzir a solidez da medicina. A relação clínica entre médicos e pacientes tem enfraquecido na medida em que cada vez mais essas relações são intermediadas por operadoras de saúde, o que restringe a liberdade de escolha dos pacientes e limita o aprofundamento dessas relações. Além disso, a exploração cada vez mais comum dos médicos por hospitais e operadoras de saúde, algumas vezes com a exigência de consultas com duração de apenas 5 a 10 minutos, inviabiliza qualquer tentativa de construir relações sólidas e duradouras. No âmbito da saúde pública, o problema é ainda exacerbado pelo gradual sucateamento dos serviços. Sem que haja um seguimento longitudinal dos pacientes por parte de seu médico de confiança, não há como se construir relações clínicas fortes. 

A fragmentação crescente do cuidado clínico pela criação de inúmeras especialidades clínicas com suas respectivas subespecialidades também colabora para enfraquecer as relações entre médicos e pacientes. A isso se soma a frequente ausência de um profissional generalista que sirva como ponto de referência para a organização dos cuidados médicos, harmonizando as recomendações dos diversos especialistas e subespecialistas. Da mesma forma, a rapidez excessiva da medicina atual – sempre apressada em seu afã de colocar rótulos e dispender tratamentos – acaba tornando as relações clínicas superficiais e fugazes, novamente impedindo a criação de laços fortes e sólidos entre médicos e pacientes. A própria fast science atual acaba sendo também um tipo de “ciência líquida” ao não dar preferência à solidez de achados científicos que tenham sido cuidadosamente analisados e replicados por pesquisadores independentes e depurados pelo tempo.

Os últimos anos viram surgir mais uma ameaça à solidez da medicina e das relações clínicas. Independentemente de seus benefícios em situações pontuais, é claro que a chamada “telemedicina” reduz a solidez da medicina. Sem que o médico e o paciente estejam no mesmo ambiente físico, sem um aperto de mão ou um caloroso abraço e sem o toque necessário para a realização de um exame físico adequado, a relação médico-paciente fica enfraquecida e perde muito de sua profundidade. Enquanto a medicina for exercida por seres humanos que buscam ajudar outros seres humanos, não há como um “encontro virtual” transmitido por uma tela de computador ou telefone celular se comparar com a intensidade de uma boa consulta presencial. Com o perdão do trocadilho, isso é líquido e certo. 

É provável que o “estado físico” ideal da medicina se encontre em algum ponto entre o líquido e o sólido, mais perto deste que daquele. A medicina e as relações clínicas devem ser sólidas e estáveis, ainda que precisem manter uma certa flexibilidade para se adequar a situações pontuais. O evidente excesso de liquidez da medicina atual faz com que ela perca muito de sua importância e identidade ao tentar se adequar prontamente aos interesses econômicos que controlam os cuidados de saúde e às novidades tecnológicas que surgem a todo momento no horizonte. Uma medicina apressada, fragmentada e completamente virtualizada seria também uma medicina disforme e de futuro incerto. Bauman dizia que os poderosos interesses políticos e econômicos estão sempre tentando enfraquecer a estrutura, remover as barreiras de proteção e enfraquecer os laços que mantêm a integridade daquilo que desejam dominar. E, no caso da medicina, isso não parece ser muito diferente. 

A visão moderada e parcimoniosa da Slow Medicine pode oferecer uma boa proteção contra o problema do excesso de liquidez da medicina atual. Os princípios da valorização do tempo e do fortalecimento da relação clínica propostos pela Slow Medicine só fazem aumentar a solidez da relação médico-paciente e da própria medicina. Trata-se aqui de uma solidez sem engessamento, mantendo-se a capacidade de adaptação para quando isso for realmente necessário e tomando-se o cuidado de realizar essas transformações de forma cuidadosa e gradual. A medicina líquida atual pode até parecer mais ágil, mas ela é também muito mais frágil do que parece. Se não percebermos isso logo e a protegermos, médicos e pacientes podem estar liquidados.


André Islabão: Sou médico internista formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) com três anos de residência em Clínica Médica pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Depois de vários anos dedicado ao atendimento de pacientes hospitalizados, decidi reduzir o ritmo e me concentrar no atendimento ambulatorial, domiciliar e em consultório próprio. 

O tempo disponibilizado possibilitou que me dedicasse a outras atividades igualmente importantes, como a vida em família, a música, a tradução de livros médicos, o estudo de saberes diversos e o acompanhamento de pessoas em clínicas geriátricas, onde realizo um trabalho informal de musicoterapia tocando piano regularmente e levando um pouco de alegria aos moradores idosos. 

Para mim, a medicina é tanto arte quanto ciência. A fim de humanizá-la e de reduzir alguns excessos, acredito na filosofia slow, em uma relação médico-paciente longeva, na transdisciplinaridade do conhecimento e na análise crítica da ciência. Meu novo ritmo ainda me possibilita compartilhar ideias próprias em meu blog (www.andreislabao.com.br) e em dois livros publicados: Entre a estatística e a medicina da alma – ensaios não controlados do Dr. Pirro e O risco de cair é voar – mors certa hora incerta. 

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Paulo Antonio Chiavone
Paulo Antonio Chiavone
1 ano atrás

Texto muito bom e traduz, infelizmente, nossa realidade ! Parabéns

André Islabão
André Islabão
4 meses atrás

Muito obrigado, Paulo!

Fernando Diniz de Andrade
Fernando Diniz de Andrade
2 meses atrás

Seus artigos com argumentos excelentes nos faz refletir e dar sentido ao nosso mister como médico para fazer a medicina de forma eficiente. Permita que leia , dando os devidos créditos, alguns dos seus textos em redes sociais. Sou clínico reumatologista formado em 1975 na UFPE , em atividade consultório privado. Aguardo sua orientação

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