A metonímia de uma vida – Prontuário Afetivo de um CTI cardíaco

março 19, 2024
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Por Ana Carolina Eiris Pimentel:

Ao cuidar de uma doença você pode ganhar ou perder.

Ao cuidar de uma pessoa você sempre ganha

Doherty Hunter

Nas aulas de literatura aprendemos diversas figuras de linguagem, metáforas, eufemismos, ironias, personificações, mas foi na prática em saúde que aprendi mesmo sobre a metonímia: ‘vou chamar o granuloma’, ‘vou cuidar de uma mastectomia’, ‘vou falar com a troca valvar’, ‘a leito 3 não dormiu bem essa noite…’ Quando vamos nos dar conta que o ideal parece ser chamar as pessoas por seus próprios nomes? Vou contar uma história para vocês, da época em que eu estava no quarto período da faculdade.

Eu lembro que…

tínhamos que passar uma sonda de alívio numa senhora de 75 anos para a coleta de um exame de urina. Aparentemente ela estava orientada, porém pouco comunicativa. Depois de lermos seu prontuário, lá fomos nós, um grupo de 12 alunos, numa enfermaria feminina compartilhada de seis leitos. Os biombos, a mesa de Mayo e seus equipamentos tomavam conta de quase todo o espaço. Estávamos nós, os estudantes, todos em volta do seu leito, absortos no procedimento.

Lembro-me vagamente de perceber uma sensação estranha no ar, um clima de preocupação estampada no rosto da neta da paciente, que a acompanhava na internação. Eu estava ao seu lado e olhava em direção ao colega que se arrumava para iniciar a coleta. Foi quando me virei e enxerguei a senhora, visivelmente incomodada com a quantidade de gente desconhecida em torno dela. Peguei um par de luvas, e ofereci minha mão para ela enquanto o procedimento era realizado. Após sugerir que os meninos saíssem dali, falei baixinho no seu ouvido “que ela não estava sozinha e que logo tudo iria acabar“.

Cuidar

Toda vez que penso no ato de cuidar lembro dessa cena, e do quanto me senti sozinha naquela situação com aquela senhora (infelizmente não recordo seu nome). Mas lembro do cenho franzido, da expressão de medo e do visível incômodo. E me pergunto: porque nos afastamos daqueles a quem supostamente gostaríamos de nos aproximar? Como invadimos a sua privacidade sem sequer os conhecermos? Pedimos licença para nos aproximarmos do seu leito- mas pedimos licença para tocar o seu corpo e examiná-lo? Perguntamos como é o seu nome ou do que gosta? Sabemos de sua família? Se é pai, mãe ou se tem filhos ou netos? Que tipo de música gosta de ouvir? Em que trabalha?

No CTI o ambiente é tão frio e distante, que as metonímias ficam cada vez mais presentes e junto delas existe a materialização de um temido final nos sons de cada monitor cardíaco. O paciente escuta seu coração pulsar a cada bip, ouve o ruído das pessoas falando, sente o ar condicionado gelado, as bombas infusoras apitando…. Não há janelas que mostrem se é dia ou noite; o horário de visitas sempre parece distante – e passa rápido demais… as cortinas e as paredes dos boxes que só permitem que as pessoas possam ver a si próprias. Se tanto.

Como tornar esse ambiente um pouco mais aconchegante? Mais receptivo e contingente?

É impressionante como momentos e pessoas impactam nossas vidas. Há quatro anos, em plena pandemia da COVID-19, ainda como aluna de enfermagem prestes a terminar a graduação, eu estava mergulhada na angústia do enfrentamento de um vírus desconhecido. De repente me vejo sentada na escrivaninha vermelha do meu quarto, assistindo a uma live sobre humanização em saúde. Nela uma equipe multiprofissional de um hospital municipal de São Paulo demonstrava a implementação do Prontuário Afetivo na unidade de terapia intensiva adulta.

Lembro da enfermeira relatando a construção das histórias de cada paciente e a valorização das suas narrativas naquele cenário de medo e incertezas. Esta pessoa plantou em mim um sonho: um dia eu iria fazer a mesma coisa. Eu a seguiria., passo a passo, da maneira como ela ensinou: o uso de imagens lúdicas, a escuta atenta e verdadeira ao paciente e sua família, tudo isso registrado à mão. Manuscrito. Isso ficou gravado no meu coração.

Um dia, já como enfermeira residente no CTI cardíaco adulto, sou pega de surpresa. O pessoal me pergunta: “o que é Slow Medicine?”. Toda vez que me fazem essa pergunta confesso que sinto um mix de sensações… Sinto receio que não entendam o conceito e depois fico entusiasmada em explicar que é, pura e simplesmente, o cuidado que já fazemos, porém com mais parcimônia e fundamentação. E então, com a voz meio bagunçada pela surpresa e pela animação, explico o que é. E dou como um exemplo o Prontuário Afetivo e como ele pode melhorar a dinâmica da equipe assistencial, permitindo que venha à tona a narrativa do paciente e de sua família. Afinal, é sobre sua vida que estamos falando.

O tempo passou

Para minha satisfação, a partir deste momento o CTI que conserta corações começou uma jornada para conhecer com mais profundidade cada um dos pacientes internados. Junto com a enfermeira responsável, minha preceptora e grande amiga, construímos o prontuário que melhor se encaixava com a realidade dos nossos pacientes e do nosso setor, e chegamos a um instrumento que dá voz à pessoa que ocupa aquele leito. Fomos em busca de artigos que pudessem nos ajudar na formatação do Prontuário Afetivo e o que encontramos foi ouro! Existe uma variedade de prontuários afetivos em diversos cenários, enfermarias, maternidades, berçários, mas quem ganhou, de fato, foi o CTI.

Depois de estudarmos, juntamos essas informações e conhecimentos e adaptamos ao nosso perfil de assistência e às nossas rotinas. Criamos no Word® a identificação “Prontuário Afetivo CTI Cardíaco”. Em sequência os seguintes tópicos, em caixas de textos grandes: “Me chamo: – Mas gosto de ser chamado(a) de:”; “Gosto de ouvir…”, “O que gosto de fazer…”, “Minha religião é…”, “Trabalho com…”, “Meu time de futebol é…”, “Sou do signo de…” e “Minha família…”.

O prontuário foi impresso em folhas A4, nas cores preta e branca, tendo no fundo um coração anatômico florido. Deixamos cópias em uma pasta dentro do setor, separamos placas de acrílico pelos leitos ao lado da identificação padrão e disponibilizamos canetas coloridas para o preenchimento manuscrito e lúdico. Apresentamos a proposta para a chefia de enfermagem e posteriormente às demais equipes, explicamos seu funcionamento e seu objetivo e orientamos que começássemos com os pacientes em internados há mais tempo. Seu preenchimento deveria ser feito durante a visita da família, de maneira que os profissionais conhecessem o instrumento na prática diária.

Eu gosto muito de pagode

E funcionou! Logo em seguida conseguimos ampliar para o pré-operatório. Assim, quando o paciente retornasse do centro cirúrgico, já tinha seu prontuário afetivo preenchido. Lembro-me da filha de uma paciente que, durante o preenchimento do prontuário afetivo de sua mãe, disse que ela gostava muito de ouvir pagode. No dia seguinte, durante o banho, a equipe colocou um pagode para que ela pudesse ouvir. Aquele ambiente frio e hostil de repente ficou aquecido e sonoro – justamente a música que aquela senhora gostava de ouvir .

Outro caso foi de uma paciente que sentia saudade das netas. Elas eram menores de idade e não poderiam entrar no CTI para visitá-la. As meninas estavam no corredor acompanhadas da mãe. Foi então que sugerimos que uma delas preenchesse o prontuário afetivo e fizesse um desenho como presente para sua avó. Quando ela recebeu os desenhos seus olhos se encheram de lágrimas e ela abriu um lindo sorriso. Assim, figurativamente, ela pode contar com a presença de suas netas, estampadas nas paredes de seu box.

Conhecemos apelidos, gostos musicais, times de futebol (acredito, pelos meus cálculos, que o Flamengo ganhou rs!) e famílias… muitas famílias. Em uma delas um tio, já sentindo que sua sobrinha estava em seus últimos dias, escreveu no espaço “Minha família…” a palavra “AMOR”. Bem assim, em letras maiúsculas e na cor vermelha, representando o que seu coração sentia.

E agora retorno à metonímia, mas com outro significado. Desta vez, de fato, oferecemos o direito ao cuidado que todo ser humano merece – como uma pessoa única e singular. A humanização não é algo tão óbvio quanto parece, achamos que pelo simples fato de sermos pessoas humanizamos tudo. Isso infelizmente não é o que acontece, a desumanização é sistêmica, vem de nossa cultura, de nossa educação, da falta de recursos, da desigualdade social, dos processos burocráticos Fast , da produção acelerada de diagnósticos.

Repasso a vocês a pergunta que Julia Rocha, médica de família que possui a rara habilidade da escuta e olhos sinceros para a nossa realidade, faz em seu livro “Pacientes que curam” – ‘o que consideramos digno de ser chamado de humano?’ . Eu me prendi a essa pergunta da mesma maneira que me prendi a AnaMi, em seu segundo livro “Vida Inteira”, quando ela nos pede para listar os motivos pelos quais vale a pena viver.

E cheguei a conclusão que não se deve lutar com o silêncio. Não termos as respostas para estas perguntas é o que faz a vida ser como que ela é, como se fosse um prontuário afetivo a ser preenchido. Talvez seja por isso que buscamos tantas metonímias. Fica mais fácil. O Prontuário Afetivo pode ter várias cores, jeitos, escritas, desejos, personagens, formas e pode mudar quantas vezes quisermos. É como nos apresentamos ao mundo e como expressamos aquilo que nos move enquanto seres humanos:

O aprendizado

A vida é um constante aprendizado. Cair, levantar de novo, nos desafiarmos , nos encontrarmos e depois nos desencontrarmos, errarmos. Enfim, nos permitirmos sofrer e sentir aquilo que faça sentido para nós. De certa forma nos permitirmos conhecer a nós mesmos – todos os dias. Enquanto eu respirar, como afirmava AnaMi.

É isso. Venho tentando preencher meu próprio prontuário afetivo e buscando o sentido da vida. Aprendi que para cuidar não precisamos provar cientificamente o que é humano, só precisamos ser nós mesmos e escutar nossas intuições enquanto profissionais. Fazer o que é certo: respeitar a pessoa que está na nossa frente.

E aí, que tal fazer seu prontuário afetivo hoje?

Imagem 1: Prontuário Afetivo CTI Cardíaco. Hospital Universitário Pedro Ernesto. Rio de Janeiro, 2024.

Colaboradores do Prontuário Afetivo:

Ana Carolina Eiris Pimentel: Enfermeira graduada pela Universidade Federal Fluminense; Especialista em Cardiologia Intensiva pelo Programa de Residência em Enfermagem Cardiovascular da UERJ/HUPE. Gosto de ser chamada de Aninha ou Cacá, amo rock anos 80 e MPB e minha banda favorita é a Legião Urbana. Gosto de ler, estudar, dançar, escrever poesias e histórias e estar com minha família, sou botafoguense, católica, geminiana com ascendente em gêmeos e sou filha de Ana Cristina e Paulo, irmã da Paulinha, neta de Mário, Marisa, Justina, Maria, Benedito, Avelino e Anna e afilhada de Cláudia. Eternamente fascinada pelo estranho silêncio que a vida inteira nos reserva.

Raquel Constantino de Almeida: Mestranda em saúde e tecnologia no espaço hospitalar pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Enfermeira graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Especialista em Terapia intensiva e Enfermagem Cirúrgica pela HUPE/UERJ. Gosto de ser chamada de “Quel” ou de “Constantino”, amo um bom e velho pagodinho, mas o rock internacional faz parte de mim. Vivo uma boa mistura musical, já que minha música favorita é “Se” do Djavan. Gosto de ler, treinar e de um bom banho de cachoeira. A energia da torcida do Flamengo me faz vibrar no Maracanã. Trabalho com cirurgia cardíaca e transplante cardíaco.  Sou espírita, taurina, mãe da Sol (afinal mãe de Pet também é mãe), sou filha da Ângela e dinda do Felipe, da Laura e do Rodrigo.

Camila Medeiros dos Santos: Enfermeira. Doutoranda em Enfermagem/EEAN-UFRJ. Especialista em Terapia intensiva, Cardiologia e Hemodinâmica. Chefia de Enfermagem Unidade de Cirurgia Cardíaca/HUPE-UERJ. Gosto de ser chamada de Mila, sou católica, meu time é o Flamengo, gosto de ouvir MPB e amo estar com minha família, trabalho com Gestão do cuidado, sou do signo de Aquário e minha família… meu bem maior. Matheus, Júlio, Sandra, Anselmo, Gabi e Mel.

Raquel de Mendonça Nepomuceno: Enfermeira do Instituto Nacional de Cardiologia e Professora Adjunta da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Gosto de ser chamada de Raquel, ouço Legião Urbana, Caetano Veloso, Ivan Lins, Kenny G… Gosto de viajar, ler, ver filmes; trabalho com ensino e cuidado de pessoas na enfermagem. Sou flamenguista, e meu signo é virgem com ascendência em escorpião e lua em capricórnio. Sem religião, acredito em fazer o bem. Sou casada com o Fábio e mãe de Laís e Paula.

Referências:

  1. Souza, KFS; Silva JHS. Elaboração de prontuário afetivo para pacientes  oncológicos: um relato de experiência. Revista Eletrônica Acervo Saúde ( REAS). Vol.15(3). Belem – PA. 2022. Disponível em: <https://acervomais.com.br/index.php/saude/article/view/9821/5971  > 
  2. Azevedo, GT; Bezerra, JGV; Rezende TVM. Oficina de prontuário afetivo como estratégia de cuidado humanizado. VII Jornada Acadêmica HUPAA- Inovação em Saúde: Desafios e avanços. GEPNEWS, Maceió, v.6, n.1, p.123-129, jan./abr. 2022. Disponível em: < https://www.seer.ufal.br/index.php/gepnews/article/view/13992/9882 >
  3. Bastos, IJMT et al. Construção de prontuário afetivo para pacientes transplantados cardíacos em um hospital de referência em Pernambuco. Brazilian Journal of Health Review. Curitiba, v. 6, n.3,p.8886-8895,may./jun.,2023. Disponível: <https://ojs.brazilianjournals.com.br/ojs/index.php/BJHR/article/view/59517/43062 >
  4. Silva, DC; Xavier, DRC; Martins, FH. O (re)conhecimento de subjetividades em unidade de terapia intensiva: um relato de experiência. VII Jornada Acadêmica HUPAA- Inovação em Saúde: Desafios e avanços. GEPNEWS, Maceió, v.6, n.3, p.231-238, set./dez. 2022. Disponível em: <https://www.seer.ufal.br/index.php/gepnews/article/view/14741/10181  >

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Maria Carolina Castelloes
Maria Carolina Castelloes
9 meses atrás

Nossa, que relato incrível. Estou encantada com essa proposta e como uma coisa simples faz total diferença no cuidado! Queria saber mais sobre como aderir nas unidades que trabalhamos? Por onde começar ?

Andresa
Andresa
9 meses atrás

Texto tocante. Quanta sensibilidade. E quanta dedicação e amor ao cuidado do paciente. Parabéns 

Ana Carolina Eiris Pimentel
Ana Carolina Eiris Pimentel
8 meses atrás

Obrigada Andresa e Maria!! Estar com o paciente diretamente e o maior aprendizado que podemos ter como pessoas e profissionais s2

Maria, sobre como iniciar a construção de um prontuário afetivo vai muito de acordo com o local do seu trabalho. A sugestão que eu dou é dar uma lida nas referências disponibilizadas no texto e tentar traçar um modelo que combine com o perfil dos seus pacientes e principalmente sua equipe! Ver as principais características que gostariam de compartilhar, quais papéis usar, onde fixar… Se precisar de dicas e mais ajuda me disponibilizo! segue meu e-mail: [email protected]

Jose Carlos Ducati
Jose Carlos Ducati
8 meses atrás

Parabéns!

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