Por José Carlos Campos Velho
Logo após o lançamento do site Slow Medicine Brasil, estávamos ainda elaborando sua estrutura e imaginamos que vídeos que abordassem a filosofia e os princípios da Slow Medicine poderiam ser uma boa ferramenta para divulgação destes conteúdos. O primeiro vídeo que foi gravado, de forma quase artesanal, foi com nosso mestre e mentor, o Professor Dario Birolini. No vídeo, ele afirma que “a relação médico-paciente” é o fulcro da prática médica.
Neste artigo, pretendemos discutir dois aspectos. O primeiro deles é baseado em um artigo do Dr. Adam Cifu, publicado no JAMA em dezembro de 2018, chamado “Long-term Physician-Patient Relationships – Persevering in Practice”, onde ele explora longevidade da relação entre médicos e pacientes como um elemento de grande benefício, tanto para os médicos como para os pacientes. O segundo aspecto, ainda pouco explorado em língua portuguesa, é a própria expressão “relação médico-paciente” que, em particular nos círculos vinculados às discussões bioéticas de língua espanhola, se interrogam acerca da expressão relação médico-paciente, propondo sua atualização para uma expressão mais abrangente, a “relação clínica”.
Adam Cifu começa seu artigo com as seguintes palavras:
“Poucos médicos ou pacientes questionam que uma relação médico-paciente estável e de longo prazo é cada vez mais rara. As demandas de documentação eletrônica, o estresse criado pelas inúmeras maneiras que os pacientes podem acessar seus médicos hoje e o reembolso decrescente para cuidados primários tornam um desafio a manutenção desta prática de longo prazo. Ao mesmo tempo, nossa sociedade cada vez mais móvel e as restrições à escolha do médico impostas pelas fontes pagadoras tornam difícil para o paciente permanecer com o mesmo médico.
Sou, portanto, uma espécie de anomalia, cuido do mesmo grupo de pacientes há mais de 20 anos. Minha situação é casual – provavelmente relacionada tanto a uma admirável dedicação aos meus pacientes quanto à falta de energia ou ambição.”
Ao longo do artigo o autor percorre sua trajetória, falando das dificuldades dos primeiros anos de prática, o enriquecimento das relações que vai ocorrendo na medida em que médicos e pacientes conhecem-se melhor, a possibilidade de, em se tratando de conexões mais sólidas – com o estabelecimento de uma verdadeira “aliança terapêutica”, termo emprestado da psicologia, o patiente sentir-se mais tranquilo e seguro para revelar questões delicadas como “uma recaída no abuso de álcool, uma relação extraconjugal, não aderência aos medicamentos”. Revela também uma questão relevante, que é o fato de que uma relação longeva pode criar armadilhas para o médico. Um paciente acompanhado por décadas pode ter uma modificação de seu quadro clínico ou o surgimento de uma nova patologia. Para isso é necessário que o médico se mantenha atento e vigilante. O autor conclui que as relações de longo prazo são benéficas e que deveríamos manter esta perspectiva enquanto uma prioridade.
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Em relação à segunda questão, no que tange à “relação clínica”, trazemos uma proposta substitutiva à já consagrada “relação médico-paciente”. Aqui não se trata de tomar posições apaixonadas, ou abandonar o termo como algo que deva ser eliminado. Muitas pessoas se utilizam da expressão de maneira afetuosa e costumeira. A ideia é refletir acerca da evolução do termo, partindo de suas raízes históricas. Para isso nos utilizamos do material publicado no painel “O Paciente Terminal”, ministrado no Vº Seminário de Bioética Clínica – O Paciente Como Pessoa , da Academia Chilena de Medicina, em agosto de 2015, pelo professor Juan Pablo Beca I.
Na introdução do artigo ele afirma que, a relação médico-paciente evoluiu de um padrão paternalista , em que “… o paciente, batizado por sua falta de firmeza (do latim in firmus = não firme) e também chamado de paciente (de patiens = sofredor), era infantilizado por ser considerado incapaz de compreender. Portanto, o paciente era tratado como alguém que não precisa saber ou entender o que está acontecendo com ele, mas receber ajuda e seguir as orientações obedientemente. É o modelo paternalista segundo o qual o médico, atuando como pai com o filho, protege o paciente, indica as medidas terapêuticas, de higiene e de cuidado, mas apenas o informa um mínimo para evitar mais sofrimentos e assumir sua limitada capacidade de compreensão. Nesse modelo, o médico decide pelo paciente e para o seu bem maior, mas não decide nem participa das decisões que são tomadas para o seu tratamento. É o médico quem decide, o paciente confia e ‘se põe nas mãos’, termo muitas vezes expresso literalmente.”
Posteriormente, o Prof. Beca narra as modificações que ocorreram na prática da medicina ao longo dos séculos, o surgimento da tecnologia e da ciência enquanto o marco referencial da medicina moderna, o papel cada vez mais predominante das grandes corporações e sistemas de assistência médica e particularmente a modificação do papel do paciente, que passa, progressivamente, a ser um agente ativo em seu tratamento, muito mais informado e capaz de compartilhar as decisões concernentes à sua saúde, frequentemente com a ponderação de seus familiares.
A atenção interdisciplinar, formada por múltiplos profissionais de saúde, além dos médicos, é outra questão de relevância nesta proposição. Psicólogos, fisioterapeutas, nutricionistas, fonoaudiólogos, todos com papéis fundamentais na atenção ao enfermo. “A relação médico-paciente clássica, entendida como o vínculo de um paciente com seu médico, que conhecemos como ‘relação médico-paciente’, tornou-se assim um importante conceito histórico e não uma realidade. É por isso que o termo mais abrangente ‘relacionamento clínico’ é utilizado para indicar esse amplo leque de relações nas quais cada ator tem responsabilidade em suas dimensões técnicas e éticas.”
Dentro de uma perspectiva Slow a afirmação “…a relação clínica atual mostra que o vínculo com o paciente raramente é individual, o que significa que o médico infelizmente sabe muito pouco sobre o paciente como pessoa. Dessa forma, o médico atualmente está mais comprometido com sua profissão ou especialidade do que com o paciente, e este último interage com muitos e ao mesmo tempo com ninguém. Por outro lado, o paciente atual é hoje um cidadão mais culto, informado, que busca informações por diversos meios e tem consciência do direito de exercer sua autonomia na tomada de decisões” reveste-se de sentido.
A expressão relação clínica , portanto, poderia suplantar , de maneira pacífica, a expressão relação médico-paciente, por atualizá-la e ampliá-la enquanto concepção, na medida em que abarca uma rede complexa de relações e vínculos humanos, que caracteriza o exercício dos cuidados à saúde e à doença no mundo contemporâneo.
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José Carlos Campos Velho é médico geriatra e editor do site Slow Medicine Brasil.
Prezado Colega José Carlos
Seu artigo mostra as duas fases a Medicina: a primeira que infelizmente nunca mais voltará, e a segunda, a que estamos vivendo – o cenário mostra que o Médico não tem mais o direito de exercer dignamente sua profissão.
De quem é a culpa? Nossa? Os convênios médicos nada mais são que a exploração do médico pelo colega (os Donos !!!), os pacientes devido às crises financeiras sucessivas não tem mais dinheiro. para remunerar o médico dignamente e também como estão mais espertos ( procuram o Dr Google) para interpretar os exames pedidos e a conduta do médico.
Medicina não é comércio. Fica difícil a arte médica.