Por Ana Lucia Coradazzi:
“…. és precioso aos meus olhos. Troco reinos inteiros por ti…”
Pequeno, tímido e cauteloso. Assim foi o início do movimento Slow Medicine Brasil, em 2016. Inspirado pela tradução, para a língua portuguesa, do livro O Doente Imaginado, do cardiologista italiano Marco Bobbio, o Dr. Dario Birolini desencadeou um círculo virtuoso que nunca mais pôde ser rompido. Logo se juntaram a ele outros colegas, como o Dr. José Carlos Campos Velho e o Dr. Kazusei Akiyama, e tantos outros que vieram dar ao movimento a credibilidade (e o encanto) que hoje ele é capaz de despertar. O site do Slow Medicine Brasil foi criado, eventos foram organizados, redes sociais foram estruturadas e a mídia começou a se familiarizar com os conceitos slow na assistência aos pacientes. Princípios como o tempo, a individualização e o compartilhamento de decisões começaram a se esparramar por todos os cantos do Brasil. Médicos, psicólogos, enfermeiros e tantos outros profissionais da saúde reconheciam na Slow Medicine o que estava faltando em suas vidas profissionais. Mais do que isso: vinha-lhes a sensação de “pertencimento”, de acolhimento, de se reconhecer parte de algo que lhes parecia ser o correto a fazer. Acadêmicos de medicina se apaixonavam pelos princípios ao primeiro olhar, criando ligas acadêmicas para que essa forma de praticar a medicina não lhes escapasse pelos dedos.
O movimento, que em suas raízes era tão dependente do eco que vinha de outros países, desenvolveu língua própria. Aprendemos a compreender seus princípios através do olhar brasileiro, com suas características próprias e também com suas fragilidades, e traduzimos essa compreensão em textos únicos, elencados no site para quem quisesse ver. Aprendemos a adaptá-lo à nossa realidade e a ver nele a saída mais justa e honesta para os maiores flagelos do sistema de saúde do nosso país. E, enquanto o movimento brasileiro crescia, suas ligações com o mundo criavam raízes ainda mais profundas. Participantes dos movimentos Slow Medicine da Itália, dos Estados Unidos e da Holanda passaram a fazer parte do nosso dia-a-dia, agora não mais como modelos, mas como parceiros. E, quando os duros tempos da pandemia chegaram, e a irracionalidade começou a devastar a assistência aos pacientes, o movimento brasileiro mostrou sua maturidade, defendendo o respeito às evidências científicas, a sensatez e a empatia como as ferramentas mais eficazes e necessárias para a superação da crise.
O webinar Slow Medicine na Covid-19: Ciência & Moderação, realizado no final de junho, trouxe muito mais do que o posicionamento do movimento a respeito da pandemia. Foi ouvindo as palavras do Dr. Marco Bobbio sobre os aprendizados que a Slow Medicine proporcionou no enfrentamento à crise de saúde da Itália que nos demos conta do quanto nós mesmos já contribuímos para a nossa assistência, e também do quanto ainda temos a caminhar. Foi nas frases de admiração do Dr. Ladd Bauer que compreendemos o quanto podemos ensinar ao mundo, e como o nosso jeito brasileiro de olhar o outro é capaz de transformar problemas graves em soluções simples. E foi no sorriso franco do Dr. Yung Lie que entendemos que, ao respeitar profundamente nosso jeito de ser, nossa alegria e nossa criatividade, nos tornamos capazes de mudar a direção da medicina, como a bossa nova fez com o bebop jazz americano.
Falamos, sim, sobre o vírus, mas ele acabou servindo apenas de pano de fundo para um aprendizado muito mais valioso. Ele trouxe à tona a nossa irracionalidade, nossa dificuldade em lidar com as evidências científicas, nosso pensamento médico por vezes tão ultrapassado, e o quanto o sofrimento humano ainda nos é desconhecido. Trazer nossas fragilidades à superfície nos permite lidar com elas, e foi isso o que fizemos no webinar. Ao nos reconhecermos falhos, nos tornamos capazes de corrigir erros e de mudar as direções.
E, como se fosse pouco todo esse mergulho para dentro de nós mesmos, ainda falamos de aprendizado, e da Slow Medicine nas faculdades como caminho para transmutar nosso futuro. Não o aprendizado que se limita aos livros e salas de aula, mas aquele que inspira atitudes e muda posturas. O aprendizado que nos faz críticos e engajados, que nos revela outros mundos, e que nos faz ter orgulho dos profissionais que somos (ou seremos).
Enfim, o webinar nos deu clareza do caminho percorrido até aqui, e mais clareza ainda do caminho a percorrer. Mas talvez o mais importante tenha sido a percepção do quanto conseguimos em tão pouco tempo. Parece fácil propagar a ideia de uma medicina sóbria, respeitosa e justa. Quem seria contrário a algo assim? Mas o fato é que o Brasil é o único lugar do mundo em que essa ideia tem se consolidado de forma tão coerente e com tamanha rapidez. Talvez seja nossa alma brasileira, nosso olhar naturalmente empático, ou a reverência que o conhecimento científico costuma nos provocar. Ou talvez seja tudo isso junto. Mas o fato é que o movimento Slow Medicine Brasil, mesmo sem ter pressa nenhuma, é o mais rápido do mundo. Que assim seja.
Atenção: Todos os vídeos das palestras ministradas no Webinar Slow Medicine: Ciência e Moderação podem ser assistidas do nosso Canal no YouTube. Os links encontram-se no texto acima, ou você pode acessá-las INTEGRALMENTE POR AQUI.
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Ana Lucia Coradazzi: Nascida na cidade de São Paulo, mora em Jaú, no interior, há muitos anos, com o marido e suas duas filhas. Oncologista clínica com titulação pela Sociedade Brasileira de Cancerologia, é especialista em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium, na Argentina. Atualmente atua como oncologista no consultório e na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Também integra a equipe de Cuidados Avançados de Suporte e Medicina Integrativa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em SP. Apaixonada por livros (e escritora nas horas vagas), procura reservar um tempo para correr, buscando manter o corpo saudável e a mente tranquila. É autora do livro No Final do Corredor e edita o blog homônimo. Recentemente publicou outro livro, escrito em colaboração com o Dr. Ricardo Caponero: Pancadas na Cabeça.