Por Carla Rosane Ouriques Couto
“Realmente ter um médico da espécie humana muda até a perspectiva do tratamento.” (AM Soares)
Ana Michelle é uma jovem jornalista que está, aparentemente, segundo o que enxergamos em nosso limitado horizonte, um pouco mais próxima de sua finitude. Desde 2011 AnaMi trata um câncer de mama, que se tornou metastático. Seres predestinados ao fim que somos todos, ao acabar de ler seu livro “Enquanto eu respirar”, nos sentimos mais vivos do que nunca. Ela queria e conseguiu, falar mais da vida, do que da morte.
Esta é a sensação sobre AnaMi: ela está mais viva e lúcida do que nunca. Suas palavras transbordam sentimentos e desejos compartilhados pelos profissionais que tentam no dia a dia, exercitar a filosofia que denominamos há alguns poucos anos de Slow Medicine: a prática médica justa, sóbria e respeitosa, pensada para ser ofertada a todos que respiram, do primeiro choro ao último suspiro.
Decidimos então buscar os pontos de encontro e expressão entre os 10 princípios da Slow Medicine e as narrativas de AnaMi, tomando suas palavras como um precioso relato de paciente que deseja o melhor para si e para todos:
1.Tempo: para ouvir, para entender, para refletir. Tempo para consultar e tomar decisões. A tomada de decisões melhora quando os médicos dedicam seu tempo e sua atenção ao paciente.
AnaMi acompanhou de perto todo o tratamento de sua alma gêmea e companheira de jornada, Renata. Renata, uma paciente também jovem e metastática, buscou vários serviços de saúde, que se aproximavam mais ou menos da atenção integral. Nem sempre a paciente Renata era ouvida ou obtinha realmente atenção de seu médico:
“Ela seguia sendo negligenciada, a diferença era que agora serviam chá e lanche na clínica bem decorada com funcionários que cochichavam pelos cantos sobre o chefe com síndrome de Deus. Paciente bom era paciente que ficava em silêncio, tomava remédio e seguia o protocolo.”
“A ponto de provocar dores abdominais, devidamente minimizadas pelo Drº C.
– É coisa da sua cabeça, Renata!
– Não, doutor, é coisa do meu fígado. Quero fazer exames.
– Quero alguém que me olhe nos olhos e me ouça. Simples!”
Mas no caminho encontra médicos atenciosos, que “resolviam todos os seus problemas”:
“No primeiro encontro com a Drª A., ela transbordava de empolgação de quem parecia ter encontrado o pote de ouro no fim do arco-íris.”
“Ela me ouviu. Me enxergou. Me abraçou e disse que “estamos juntas”. Entender o que era sintoma, efeito colateral ou doença. Enfim, ela era alguém que parecia querer lutar pelo bem-estar de Renata, e não apenas empurrar com a barriga, já que o caso dela não teria cura. Médicos juram, na faculdade, curar e aliviar, mas, no fundo, são obcecados pela cura. “
2.Individualização: cuidado particularizado, justo, apropriado. A individualidade em lugar da generalidade. O paciente deve ser o foco da atenção e seu ponto de vista e seus valores são fundamentais.
Ao comunicarmos ao paciente o diagnóstico, ou prognóstico, é importante que tenhamos claro os elementos de sua subjetividade, suas expectativas e valores únicos. Cada notícia deve ser também única. Os limites de nossas habilidades de comunicação e empatia, podem sim, provocar tanto sofrimento no paciente, quanto a própria doença. Como mostram os diálogos entre Renata e seu oncologista:
“Com o resultado da ressonância em mãos, ele se limitou a dizer que era metástase e prescreveu Xeloda (uma quimioterapia oral raramente usada como primeira linha de tratamento do câncer de mama metastático)”.
“-Doutor, quantos anos de vida em tenho?
-Eu não diria nem anos…”
“Foi o primeiro deus oncológico que passou pela vida dela. O cara fazia premonições. Ele só havia esquecido o princípio básico da medicina que diz respeito à humanidade. E se esqueceu também de pedir biópsia do fígado. Foi a primeira coisa que me chamou minha atenção no tratamento da Renata.”
Porém no final de sua jornada, Renata foi encontrando a cura que não está nas prescrições e procedimentos, mas na figura humana do profissional de saúde:
“A calma vinha da certeza de ter uma médica que se importava com a qualidade e não só com o tempo de vida dela.”
AnaMi faz também suas considerações sobre a realidade macro do sistema de saúde brasileiro, um pano de fundo, complexo e cheio de limitações, em especial para o paciente metastático, onde o médico que preserva sua humanidade faz a diferença. Neste fragmento, uma constatação preciosa: não é a extensão temporal que importa, e sim a certeza da presença:
“Mas moramos no Brasil e temos um sistema de saúde falido. Quando há médicos, eles precisam fazer o serviço de cinco e o tempo fica curto para acolher todos os sofrimentos. Já no sistema privado, temos que lidar com a arrogância e com médicos que se submetem até mesmo a evitar a prescrição de determinadas medicações para não “se indispor com o convênio”. O que não consideram é que humanização não está no tempo do atendimento nem na medicação prescrita. É estar presente ainda que o tempo seja curto. É um olhar rápido e real de quem se importa com quem você é e não só com o que você tem. Um médico que consola, chora junto e que abotoa a camisa do paciente com neuropatia não devia ser algo extraordinário. Não tem a ver com técnica, é só humanidade mesmo e, para isso, não é preciso uma consulta de uma hora”.
A atenção individual deve estar presente desde o início do cuidado, desde a recepção do serviço. Detalhes que as vezes achamos que não importa, como o preenchimento de vários formulários, sucessivamente:
“Preencha este questionário, já te chamo. Aff, que saco! Por que é que eles não têm um prontuário digital e apenas atualizam!”
Também com frequência achamos que “não faz mal”, comentários do tipo: “o cabelo cresce…”:
“Ouvi um milhão. Novecentas e setenta vezes que ele cresce e me segurei para não responder. Pode crer, fica a dica: irrita um pouco. Faz você se sentir fútil por sofrer por isso. Sei que as pessoas não falam por mal, mas eu queria apenas ser ouvida e compreendida, só isso.”
3.Autonomia e Autocuidado: decisões compartilhadas. A chave da questão são os valores, expectativas e preferências do paciente. Nela estão envolvidos o ambiente de cuidados do paciente, sua família, vizinhos, amigos e outras fontes de suporte ou apoio.
Neste tópico, também a experiência de Renata nos diz muito, em relação a distância que existe com frequência entre o que o paciente espera, deseja, e o que o serviço lhe oferece, muitas vezes independente de ser público ou privado:
“Ela escolheu uma clínica que oferecia mais conforto, suporte multidisciplinar e mais tempo para conversar e tirar dúvidas. O novo oncologista prescreveu uma quimioterapia oral e ressaltou que ela não precisava saber o nome de medicamentos, que essa era a função dele. Eu achei estranho…
“Era difícil nos metermos nesse cenário: um médico com medo que apavora uma paciente que quer viver. A história dela se repetia nas postagens. Meninas que não eram ouvidas pelos seus médicos, outras que estavam convencidas de que sofrer era normal e também aquelas que acreditavam que quanto mais efeitos colaterais, mais a medicação estava funcionando. Sim, existem profissionais que dizem isso. E elas viviam debilitadas não pela doença, mas pela mão pesada e medrosa dos doutores.”
“Pacientes perdiam o poder de decisão sobre a própria vida por medo do médico, da família, do julgamento alheio, e também o quanto ignoravam o significado de tratamento paliativo. Nós nos perguntávamos em que momento da faculdade o médico deixava de ver o ser humano na sua frente e passava a ver apenas doença e remédio. Era culpa do médico? Do sistema? Do paciente que não se posicionava?”
O relato de Ana Michelle também nos ajuda a pensar no papel do próprio paciente e de sua família, facilitando o compartilhamento de decisões entre equipe e o entorno do paciente. A prática das equipes paliativas necessita se estender a toda a rede de cuidados, e desde o início, deve incluir a família:
“Por outro lado, o doente também precisa aprender a pedir ajuda.”
“Hoje falamos muito que as abordagens dos cuidados paliativos devem ser iniciadas logo no diagnóstico de uma doença que ameace a continuidade da vida. Acredito que esse cuidado deve ser estendido aos familiares, principalmente aquele que assume a função de cuidador do paciente.”
“Sonho com o dia em que o acompanhamento psicológico e até mesmos espiritual para paciente e familiares virá junto com o papel onde está escrito o diagnóstico. Não é fácil. Mas é preciso buscar um mínimo de equilíbrio nessas relações”.
Nesse aspecto, o livro “Enquanto eu respirar”, é na íntegra, um exemplo da possibilidade de visão positiva do viver, para muito além de um diagnóstico, de um tratamento sofrido e debilitante. A autora e sua grande amiga, não recusam os mergulhos em mares de dores, mas emergem deles cada vez mais vivas e ativas, reconhecendo que “algumas dores são mais profundas do que aquelas causadas pela doença ou pelo tratamento”:
“mostramos para muita gente que tratamento paliativo não é sobre morrer, é sobre como viver até lá.”
“A vida acaba para todo mundo, saudável ou não.”
“Os saudáveis pensam em COMO querem morrer (num futuro muito distante). Os doentes pensam em QUANTO querem viver. Os “paliativos” em como VIVER INTENSAMENTE até lá”.
“Enquanto eu seguia perseguindo apenas a cura garantida para o meu corpo, sofri. O remédio que eu precisava era para a alma. E estava o tempo todo aqui, dentro de mim. “
“Acontece que a biologia dos fatos é bem diferente da história que eu sinto. E o que eu sinto é que, mesmo doente, nunca estive tão saudável.”
As muitas aventuras e viagens (ao exterior e ao interior de si mesmas) de AnaMi e suas amigas paliativas, deixam claro que sim, tudo isso faz parte da cura que importa, abandonando os extremos de “ou você é curado ou está morrendo”. É possível seguir com a atividade física possível:
“A ampulheta estava virada, mas eu sentia como se, ao invés de correr, eu precisasse silenciar minha pressa. Minha única urgência era comigo mesma”.
“Quanto tempo existe no pra sempre? Quanto pra sempre pode existir em um único momento?”
São inúmeros os relatos do quanto são extenuantes as baterias de exames, e as aparentemente infinitas propostas de novas quimioterapias, nem sempre com alguma garantia de resultados. E de um fenômeno bastante frequente na clínica amparada no paradigma biomédico, que substitui possíveis respostas ao sofrimento, por prescrições de medicamentos:
“Era a décima vez que eu fazia uma ressonância magnética de abdômen superior. Mas foi a primeira vez que comecei a chorar durante o exame…Foi o exame mais longo da minha vida.”
“Esse médico tinha um jeito muito particular de atender. Achava que era oncologista pediátrico, mas sem a obrigação de responder aos pais com dúvidas. Incomodava-se porque a Renata queria saber o nome das medicações. Para cada efeito colateral ele tinha uma lista de, pelo menos, uns três medicamentos diferentes. Sobre câncer, ele não queria falar não. Ela nem terminava de falar o que estava sentindo e ele já prescrevia uma medicação.
“- Doutor, eu não quero mais uma medicação além das 25 que já estou tomando por orientação sua. Olha pra mim, eu estou com dor e quero saber onde são minhas metástases pra entender se a dor que estou sentindo tem a ver com metástase ou se é outra coisa que tenho que monitorar, pra não correr risco durante a viagem.
Em determinado momento do tratamento de Renata, ela faz uma pausa para viajar, se divertir, fazer o que gostava, e ao retornar mostra as imagens em vídeo, ao seu médico:
“Imaginou que assim, tiraria alguma emoção ou se aproximaria daquela figura do outro lado da mesa. Mas ele nem viu até o final. Afastou o celular visivelmente irritado. Você não pode fazer isso! (…) Ela já não era a mesma e não deixaria mais que aquele médico a intimidasse. Nunca mais sairia daquele consultório com dúvidas.”
Um dos fatores positivos no cuidado das meninas paliativas foi e é, com certeza, a oferta de terapias integrais e corporais, como a Acupuntura, e mais do que a prática em si, as características da médica que a oferecia eram fator de equilíbrio e força:
“Certo dia ficamos horas conversando com a Drª I., a acupunturista que conseguia enxergar a alma da Rê muito além de doença, do fígado ou dos procedimentos. Emocionada, falou que queria contribuir de alguma forma com a “bucket list”.”
A médica da equipe de cuidados paliativos mostrou vários aspectos da Slow Medicine, ao estar sempre presente, atuante, próxima e atenta as necessidades da paciente Renata, em seus últimos dias e horas:
“A médica que ela dizia resolver todos os problemas dela estava lá e ela sabia disso. Enquanto a acalmava, encostou sua testa na testa dela e disse: – “Rê, você lembra que nós combinamos que você iria dormir quando começasse a doer? Chegou a hora.” Por alguns segundo vi minha amiga absolutamente lúcida respondendo: – “Lembro Drª Cláudia. Chegou,” e sorriu, antes de dar espaço à mente confusa.”
“Quem era aquele ser sobrenatural que conseguiu ter uma conversa tão importante com uma pessoa que já nem estava mais lá? E, mesmo assim, a médica a tinha trazido de volta para a decisão mais importante de sua vida: a hora de morrer, com a dignidade que elas combinaram, dormindo quando ela não fosse mais ela.”
Porém são também frequentes os relatos de uma atuação médica excessiva e descuidada, as vezes provocada pelas próprias sombras do cuidador e não do paciente:
“Teve uma moça que, mesmo sem doença ativa e com a possibilidade de manutenção com hormonioterapia, seguia sendo derretida pela quimioterapia convencional. Ela sofria com efeitos colaterais, quase não saía de casa por causa da intensa diarreia e parecia ter uns vinte anos mais do que realmente tinha. A médica dissera que “tinha medo” de parar a quimioterapia e a doença voltar. E a gente pensava: sua médica tem medo de câncer, mas não de te matar de tanta quimio?”
Como lembramos em outro princípio, a humanização necessita estar presente em todo o percurso do paciente pelo sistema, e qualquer quebra no processo pode comprometer seu bem-estar, sua esperança e satisfação:
“Mas, ao percorrer o papel, meus olhos depararam com um X seguido de uma palavra que eu jamais ouvira direcionada a mim. Intuito do tratamento: ( )Adjuvante ( )Neoadjuvante ( X )Paliativo. Depois veio a raiva do meu médico, amigo de tantos anos, por esconder de mim algo tão sério. Poxa, a gente tinha combinado que ele seria sincero caso minha batata assasse.”
“Pela primeira vez, vi meu médico assustado. Eu já tinha me preparado para essa notícia, mas não para aquela ruga na testa do médico.”
No sentido de lutar por humanização, as meninas não se calam:
“Será que éramos diferentes? Ou apenas aprendemos a nos posicionar diante do cara de jaleco, obrigando-o a nos olhar além do diagnóstico?”
“Não podíamos nos meter no tratamento alheio e muito menos ensinar humanização para quem estudou e jurou praticá-la, mas não queríamos ficar em silêncio.”
“Jogamos para o canto escuro aqueles que caminham rumo ao fim da vida. Vamos acompanhando pessoas morrerem diariamente na mais absoluta dor e solidão. Morrer é biológico, exato e humano. Morrer não é fracasso. Fracasso médico é enxergar apenas doença e ignorar o ser humano que a carrega. Fracasso é ser negligente. Esconder-se atrás de diplomas e do próprio ego e usar sua técnica apenas como marketing pessoal e não com olhar de interesse para aquele a quem jurou cuidar. É mesmo emocionante quando o ser de jaleco do outro lado da mesa diz: “Fora a doença, como você está? O que é importante para você? Estamos juntos.”
E os bons exemplos aparecem:
“A Drª Adriana viu meus exames, chorou e me abraçou. Eu disse que já sabia tudo o que ela ia falar mas quis ir lá mesmo assim só pra ter esse colo.”
“Viramos amigos virtuais, ele lá de Barretos, interior de São Paulo, postava sua rotina como médico paliativista e ser humano que tem verdadeiro amor por outros seres humanos. (“o médico que você mais adora”).”
“Para quem já havia passado por tantos deuses da oncologia, era, sim, muito especial ter uma médica que olhava nos olhos e explicava calmamente tudo o que estava acontecendo no corpo dela.”
“Só vai conseguir cuidar do sofrimento de alguém quem aprendeu a acolher a própria sombra e deixá-la de lado quando a dor do outro for mais urgente.”
E os médicos em geral, como reagiram a postura das meninas paliativas, que foram agregando na caminhada uma multidão de seguidores e admiradores?
“Já os médicos seguem divididos. Metade acredita que os ajudo em seu trabalho, “facilitando muito a comunicação mais clara com as pacientes”. Outro viram a cara, acham que não entendo o suficiente de medicina para dizer como eles devem se comportar.”
“Tem razão, doutor, prefiro seguir não entendendo nada dessa medicina que só vê biologia, frieza, arrogância, medo e ignora belas biografias. É um terreno árido. Que calcula custo e benefício parahospitais, convênios, sistemas. Colocam preço na nossa vida e escrevem livros a custa do nosso sofrimento negligenciado em prol do progresso. “
O bom uso das tecnologias aparece em momento críticos, de forma positiva:
“Logo após a nona sessão de rádio, o Drº E., radiologista atencioso e escalado para todas as missões incendiárias do nosso grupinho, checou as imagens do abdômen e assustado, falou que ela deveria ir direto para o pronto-socorro.”
Porém a infinita especialização da Medicina, a fragmentação do conhecimento e das tarefas de cuidado, muitas vezes exigida pela complexidade da tecnologia utilizada, como novos protocolos de tratamento e procedimentos muito específicos, muitas vezes impede que a pessoa se sinta cuidada em todas as etapas. O sonho de Ana Michelle (que é sem dúvida o mesmo de muitos trabalhadores da saúde) é que todos os setores se integram e falem a mesma linguagem, onde o que importa é a pessoa:
“Ainda, essa equipe faria parte da caminhada e não apenas de um momento de sofrimento num andar específico de um hospital. Também não entendo a burocracia e separação entre equipes e setores. “Aqui é a área de paliativos”. “Aqui é a oncologia”.”
“Sempre ouço de familiares que o “médico o encaminhou para cuidados paliativos, acho que desistiram dele”. Essa sensação seria diferente se esses profissionais andassem lado a lado e as intervenções de cada um fossem mudando ao longo do tempo até que a equipe de cuidados paliativos assumisse a exclusividade do tratamento. Tem um longo caminho a ser percorrido. E sinto que essa reflexão deve ser feita por médicos de diversas especialidades, inclusive paliativistas.”
“Cuidados paliativos são para aqueles casos em que não há mais nada a fazer. Um minuto de silêncio pra quem insiste nessa falácia. Vim mostrar minha vida paliativa repleta de nadas que vem me proporcionando cada vez mais tempo de qualidade. Aprendam, mesmo quando não há mais nada a fazer, ainda há muito a ser feito. Espero que ensinem isso nas faculdades de medicina.”
Em outros momentos, aparece a restrição de uso de tecnologia, por motivos do mercado privado de saúde:
“Acabou contando que evitava pedir exames porque oneravam os convênios. O médico da Rê achava que fazer exames era bobagem, os efeitos colaterais eram normais, os sintomas eram todos psicológicos e ele precisava economizar para o convênio e investir nas farmacêuticas.”
Com a proximidade da partida de Renata (dos momentos mais emocionantes do livro), Ana Michelle reflete sobre a última fase dos Cuidados Paliativos e sobre o debate acerca do tema, ainda incipiente na sociedade brasileira de um modo geral. Entre os vários conceitos que cercam o processo de morte: Eutanásia – antecipar a morte; Distanásia- prolongar a morte; Ortotanásia – morte na hora certa; Suicídio assistido e agora a possibilidade dos Testamentos Vitais, milhares de pacientes e familiares convivem como Ana e Renata, com as pedras desse último estágio de existência:
“O que era desistir em estado terminal? Nossa constituição não prevê o direito a morte assistida. E nossa cultura não admite que as pessoas se preparem para a terminalidade.”
Os próprios pacientes oncológicos se dividem entre os extremos da cura ou do rumo acelerado para a morte, como únicos possíveis (nas redes sociais observa Ana, com frequência há relatos da “vida perfeita ou do drama absoluto”). A jornada de Renata e AnaMi, e tantas outras mulheres e homens, mostra um infinito possível entre os dois extremos:
“Sobre a finitude, uma coisa é certa: ando tendo sonhos loucos e coragens absurdas;”
“Já na metástase, vi que os grupos são diferentes. A paciente que convive com o “incurável” tem outros desafios em relação aos enfrentados pelas recém-diagnosticadas ou curadas. Existe uma espécie de barreira entre estes dois cenários: as meninas primárias e as metastáticas. As primárias olham para as metastáticas como se elas fossem o retrato de seu maior medo. As metastáticas, por sua vez, têm o péssimo hábito de achar que as primárias são sabem de nada. Eu nos vejo no mesmo barco. Temos muito a aprender umas com as outras em qualquer fase do tratamento.”
“Dormimos pacientes que gostavam de falar sobre a importância de protagonizar os próprios tratamentos e acordamos líderes do movimento sobre a importância dos cuidados paliativos. Muitos médicos e profissionais de saúde falavam sobre isso e lutavam para derrubar esse tabu. Mas era diferente quando dito por pacientes. Mais diferente ainda quando essas pacientes relatam publicamente essa jornada que não tinha nada a ver com morte, e sim com vida.”
“Imagina quantos arrependimentos, quantas amarguras, quantas horas de terapia seriam economizadas se apenas tivéssemos a oportunidade de falar sobre a morte e manifestar em vida nossos sentimentos e vontades?”
Para concluir, o que poderia dizer o movimento Slow Medicine para Ana Mi? Talvez que você foi muito além dos Cuidados Paliativos. Que sua jornada diz respeito a todos nós, seres viventes, saudáveis ou doentes, que passamos a maior parte da vida alheios ao tempo e ao que realmente importa. Agradecer a coragem de querer viver a plenitude sempre e de mostrar que as vezes a Medicina “com pressa” e sem foco na pessoa, mais atrapalha do que ajuda nisso. E que SIM, há um grande grupo de profissionais de saúde que deseja o mesmo que você, que o ser humano e sua singularidade estejam acima de interesses outros e valores materiais. Queremos ser melhores barqueiros na travessia do rio entre o mundo visível o mundo a seguir. Queremos estar na plataforma de embarque da última estação, ao lado do viajante protagonista, com toda integridade e dignidade possível, carregando nossas sombras sim, mas expandindo toda a luz possível.
“Vá viver a leveza de uma vida extraordinária. E, no final, morra tendo vivido. Não siga vivendo estando morto.” AM Soares.
LIVRO DE REFERÊNCIA:
ENQUANTO EU RESPIRAR. Ana Michelle Soares. Rio de Janeiro: Sextante, 2019. 240 p. ISBN 978-85-431-0889-6.
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CARLA ROSANE OURIQUES COUTO: Pediatra, Médica de Família e Comunidade, especialista em Saúde Pública, Gerenciamento de Unidades Básicas, Educação Médica, Saúde do Trabalhador e Terapia de Família. Mestre em Psicologia Social. Perita Médica Federal. Mãe e avó com intensidade e prazer. Curiosa da experiência humana, enquanto respirar.