Por Suzana Vieira e Lívia Callegari:
“Abstrações são encantadoras, mas sou a favor de que se deva também respirar o ar e comer o pão.”
Artigo publicado no periódico New England Journal of Medicine de em 23 de março de 2020, intitulado “The Toughest Triage – Allocating Ventilators in a Pandemic”, disserta sobre o drama da alocação de ventiladores em uma epidemia e sugere possibilidades que reduzam a carga da decisão sobre os profissionais de saúde, particularmente aqueles colocados na linha de frente da assistência aos pacientes vitimados pela Pandemia pelo COVID -19.
A pandemia do COVID-19 tem levado a grave escassez de bens e serviços essenciais, desde substâncias para limpeza das mãos para população geral, equipamentos de proteção individual, os tão falados EPIs, que incluem máscaras cirúrgicas e N-95 para os profissionais de saúde, leitos de UTI e respiradores mecânicos.
Embora a escassez de outros bens e serviços possam levar à morte, na maioria dos casos por uma combinação dos efeitos da carência, particularmente no que tange à área da saúde, estes fatos poderão resultar em desfechos ainda piores. Com os ventiladores mecânicos é diferente. Quando os pacientes pioram ao ponto de precisar de um respirador, há apenas uma janela de oportunidade limitada para que ele seja salvo. E quando a máquina é retirada dos pacientes respirador-dependentes, eles morrerão dentro de minutos. Assim posto, a decisão de iniciar ou terminar a ventilação mecânica é geralmente uma verdadeira escolha de vida-ou-morte.
Por isso é necessário haver planejamento das autoridades de saúde, com a criação de protocolos apropriados, para auxiliar enfrentamento de desafios técnicos e éticos. Devem ser relacionados ao processo de triagem, admissão e internação, uso racional de material médico e alocação de pessoas. Notadamente, as equipes de triagem para cuidados intensivos é recomendado haver equipes compostas por três profissionais, no mínimo, sendo dois médicos com prática no cuidado de pacientes graves, especialmente com disfunção respiratória e por um outro profissional de saúde experiente. Ainda assim, caso não haja disponibilidade local de profissionais qualificados, poderão ser utilizadas consultorias, que participem de forma remota, mas em tempo real, do processo de triagem.
Antecipando-se à necessidade de alocação de respiradores para pacientes que tem mais possibilidade de se beneficiar (sobreviver), os médicos devem se engajar na discussão de forma proativa com pacientes e familiares sobre a ordem de “não-intubar” para o subgrupo de pacientes de maior risco antes que sua condição de saúde deteriore. Nesse caso, deve ser garantido o tratamento intensivo para os pacientes com maior possibilidade de sucesso terapêutico, quais sejam, os que conjugam elementos de sustentabilidade clínica como a presença ou não de comorbidades, o comprometimento de outros órgãos e sistemas, e sua reversibilidade. Por isso que critérios vinculados simplesmente à idade ou o primeiro que chega ao serviço devem ser descartados, por não se alinharem ao caso clínico concreto e à individualidade do paciente.
Importante dizer que, independente do fato de haver uma condição de excepcionalidade, os referenciais éticos devem ser mantidos, para que a adequação das ações possa ser justificada. Não se deve distanciar, portanto, da dignidade humana, a integridade, a privacidade, atenção à vulnerabilidade e a autodeterminação do paciente. Esta última deve ser considerada e equacionada em consenso entre equipe e paciente/família, de acordo com a necessidade do paciente e possibilidade de cuidado oferecido, desde que garantida da manutenção da incolumidade física e mental, incluindo-se, os aspectos espirituais.
Por esse motivo, sempre será necessária a estabilização e o controle do quadro clínico do paciente, ou mesmo o reconhecimento técnico da ausência de beneficio das medidas intensivas que o paciente vem recebendo, a fim de que haja transferência de unidade de internação, para que continue recebendo cuidados apropriados e de forma compassiva. É importante frisar que, a condição de excepcional de emergência de saúde pública, não permite alteração das pertinentes regras legais e direcionamentos éticos e legais, e por isso as restrições para a prática da eutanásia e do suicídio assistido ainda são mantidos, não portando exceções.
Uma vez que o paciente foi colocado em ventilação mecânica, a decisão de retirar o ventilador é especialmente angustiante. Há menos de 50 anos atrás, retirar do ventilador poderia ser considerado como um ato de matar, proibido pela lei e pela ética. Hoje, retirar o suporte ventilatório é uma causa comum de morte imediata na UTI e a retirada desse suporte solicitada pelo paciente ou seu representante é considerado uma obrigação ética e legal. Nos Estados Unidos, a retirada do ventilador contra vontade do paciente ou seu representante, entretanto, é só realizado em Estados e hospitais que permitem os médicos retirarem unilateralmente o suporte de vida quando o tratamento é considerado fútil.
Decisões de retirar o ventilador durante a pandemia do covid-19 com objetivo de tornar o recurso disponível para outro paciente não pode ser justificado por nenhuma dessas hipóteses: não é feito segundo pedido do paciente ou representante e não pode ser considerado um tratamento fútil. Esse cenário pode não se muito raro em países quem já lidam com escassez crônica desses recursos, mas foi uma situação sem precedentes em países desenvolvidos. Relatos da Itália descrevem médicos “aos prantos nos corredores por conta das escolhas que estavam prestes a fazer”.
Na opinião dos autores, para dar suporte à decisão dos médicos que possam lidar com a decisão escolher quem vai ou quem sai dos ventiladores, idealmente deveríamos contar com um comitê composto por médicos clínicos e líderes espirituais, respeitados entre seus pares, com noções de bioética. Além de retirar a responsabilidade de decisão dos profissionais que lidam diretamente com os pacientes, o comitê teria também o papel de comunicar a decisão às famílias dos doentes , sempre que possível com sua anuência.
Para outros autores a decisão deve ser compartilhada e coordenada em conjunto com diretor técnico do hospital e as autoridades de saúde em nível local, regional ou nacional. O ideal também é contar com a colaboração de bioeticistas para tais decisões, caso haja disponibilidade destes profissionais. De fato, neste momento, torna-se claro o seu papel de fazer recomendações éticas diante dos desafios institucionais e clínicos criados pela Pandemia pelo COVID-19, como em um guia de recomendações de ética clínica, contendo recomendação de critérios de admissão em UTI, a suspensão ou manutenção do suporte ventilatório, princípios de proporcionalidade clínica e de cuidados, critérios de sucesso terapêutico e transferência de paciente entre centros e unidades de cuidado e adoção de sedação paliativa em pacientes hipóxicos com a progressão da doença, desde que seguidas as recomendações de boas práticas clínicas.
Nas próximas semanas, médicos dos Estados Unidos (e do Brasil) podem ter que tomar decisões que nunca tiveram que enfrentar e que não estão preparados. A criação de e uso de comitês de triagem, informados pelas experiências de outros países na atual pandemia e recomendações previamente escritas podem ajudar a mitigar o enorme estresse emocional, espiritual e existencial que os cuidadores podem ser expostos.
Casos graves de infeccão pelo Coronavírus frequentemente necessitam de suporte avançado de vida em regime de terapia intensiva. Se considerássemos a porcentagem de pessoas que necessitam de UTI e o número de respiradores disponíveis no Brasil (cerca de 65 mil), poderíamos pensar que estamos longe da encruzilhada de escolher quem vai ou não vai receber assistência ventilatória: uma verdadeira escolha de Sofia. Mas não é isso que observamos. Considerando a grande subnotificação , é provável que o número de infectados seja expressivamente maior. Temos já alguns sinais de colapso do sistema de saúde, como observamos no estado do Amazonas, onde a ocupação de leitos de UTI supera 90%. Temos no Brasil desigualdades regionais e dentro de um mesmo município. Muito em breve, se já é a situação atual, os profissionais de saúde do Amazonas e de serviços de saúde menos equipados terão que fazer as suas escolhas de Sofia, que teve que escolher entre seus dois filhos quem iria para câmara de gás no holocausto. Ela escolheu salvar naquele momento o filho que julgou ter mais chance de posteriormente sobreviver aos horrores da época.
Essa pandemia nos confronta com os limites da nossa saúde física e mental, de nossos recursos e de nosso conhecimento. A Pandemia pelo COVID-19 nos escancara o necessário exercício da humildade, frente ao imperativo que nos assevera: a incerteza.
A única convicção que temos é que diante da limitação de respiradores, bem como a discussão e formação ainda incipiente, frente a esta realidade, dos cuidados paliativos, a experiência internacional ensina que o distanciamento social é fundamental para que o sistema de saúde consiga dar suporte para todos os pacientes que nele busquem atendimento e nenhuma pessoa fique privada do tratamento adequado por falta de recursos.
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Suzana Vieira: Nasci no interior de Pernambuco, fiz minha graduação em Recife e vim para São Paulo há quase duas décadas para cursar as residências médicas e doutorado e por aqui fiquei. Ao término do projeto acadêmico, tornei-me mãe da Helena, tarefa nobre que não se aprende nos livros. No fim de 2015, após uma retomada de rota profissional, comecei a escrever sobre meus estudos na área de endocrinologia, e no ano seguinte nasceu um outro “filho”: o blog. Viagens, natureza e animais (principalmente gatos) são outras paixões que recarregam minhas energias.
Lívia Abigail Callegari, nascida em São Paulo. Advogada inscrita no Brasil e em Portugal, atua na área do Direito Médico. Especialista em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP e em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Atualmente é pesquisadora científica no Grupo de Pesquisa em Bioética, Direito e Medicina GBDM/USP. Ama estudar e transmitir o que aprende. Gosta de viajar e tomar contato com outras culturas. É apaixonada por artes em geral e livros, mas encontra na arte marcial e na dança o seu verdadeiro meio para a reconexão.
PS: A foto que ilustra o post é de Trajano Sardenberg e retrata a Dra. Raisa Savhuk, médica intensivista. Moscou, URSS, 1960.