Por José Renato G. Amaral:
Pairando acima dos mundanos tetos,
Não conheço o acidente de Senectus
– Esta universitária sanguessuga
Que produz, sem dispêndio algum de vírus,
O amarelecimento do papirus
E a miséria anatômica da ruga!
(Augusto dos Anjos, Monólogo de uma Sombra)
Após ampla manifestação de associações de geriatria e gerontologia e de entidades representativas dos idosos, a Organização Mundial de Saúde revisou a inclusão da condição de idade avançada como categoria diagnóstica na 11ª Classificação Internacional de Doenças (CID-11). A proposta inicial incluía “velhice” (old age) como diagnóstico, porém o termo foi substituído por “incapacidade física relacionada à velhice” (age-related physical disability), correspondente ao atual CID-10 R54, que em Português costumamos denominar apenas “senilidade”.
A existência (ou não) das doenças, obviamente, independe de sua catalogação, mas a indexação de uma condição na CID lhe dá um estatuto diferenciado, tanto do ponto de vista médico como normativo, de modo que a questão é bastante relevante para a Geriatria. A discussão sobre velhice ser ou não uma doença é antiga e andava meio morta, mas, com o advento das redes sociais, questões antes restritas aos círculos acadêmicos tornaram-se populares, com direito a palpites e opiniões emocionais. Nesse contexto, até que discutir sobre o trinômio “velhice-saúde-doença” soa oportuno, porque a hipótese de o envelhecimento ser um fenômeno inteiramente distinto do adoecimento ainda não tem uma resposta conclusiva, ao contrário de outras questões recorrentes, como, por exemplo, a eficácia da vacina anti-coronavírus. Porém, antes de entrar nesse mérito, prefiro analisar a forma como a questão “velhice como doença” foi abordada pela CID.
A categoria “velhice” na CID-11
A inclusão de velhice (ou senilidade) no capítulo “Sintomas, sinais ou achados clínicos não classificados em outro local” da CID-11 resultou inusitada. Com todo respeito à Organização Mundial de Saúde, a velhice não é um sintoma, nem um sinal e nem, muito menos, um achado clínico. A velhice é uma fase da vida, ou então precisaremos revisar os dicionários. O interessante é que a mesma CID-11 já codifica “períodos da vida” em seu capítulo “X”, para códigos de extensão, e divide a tal terceira idade em “período geriátrico inicial” (65 a 84 anos) e “período geriátrico final” (acima dos 85 anos). Afora a questão dos idosos menores de 65 anos, que foram incluídos no período “adulto” (o que pode implicar em ameaça a alguns direitos da população entre 60-64 anos), também é curioso que essa nomenclatura vincule as faixas etárias da velhice a cuidados médicos (você nunca deve ter ouvido alguém dizer “fui a uma festinha num bufê pediátrico”). “Período geriátrico” como eufemismo para “velhice” é a típica emenda pior que o soneto!
Esse capítulo sobre “Sintomas, sinais ou achados clínicos não classificados em outro local”, como o nome explica, propõe-se a ser bastante genérico, e seria implicância não se perdoarem algumas imprecisões. A velhice, contudo, não é o único elemento estranho: você encontra “choque” nessa categoria, um pouco depois da velhice, além de “edema” e “medo de adoecer”. Ora, se choque é uma entidade nosológica bastante bem definida, edema é um sinal clínico, medo de adoecer é um sintoma psíquico e velhice não é nada disso, não se consegue decifrar como se pretendeu classificar essa condição ao colocá-la nesse capítulo.
Um erro comum entre os menos acostumados a trabalhar com a CID é considerar que todo código CID corresponde a uma doença; na verdade, há várias condições outras que designam apenas sintomas ou meramente contato com serviços de saúde. Portanto, essa questão da topografia de “velhice” na CID não é meramente uma filigrana, pois define seu estatuto para os fins a que a classificação se destina. Então, antes de adentrar no cipoal da velhice como doença, vale enfatizar que a versão inicial da CID-11 não esclarecia se considerava a velhice uma doença, um sintoma, um sinal ou apenas uma fase da vida mesmo, pois a inseriu num capítulo que é uma miscelânea de condições.
Velhice e doença
O envelhecimento é um processo de alterações anatômicas e fisiológicas que resultam em menor capacidade funcional, maior risco de adoecimento e maior risco de morte. Várias condições, como a maioria das neoplasias, a aterosclerose e a doença de Alzheimer têm um risco diretamente proporcional ao avançar da idade, e a própria mortalidade global aumenta exponencialmente em função da idade após vencidos os desafios da infância.
Para fins operacionais, costumamos distinguir entre senescência os fenômenos atribuíveis unicamente ao envelhecimento biológico e senilidade às alterações secundárias a doenças. Na prática, é muito difícil desenhar a fronteira entre senescência e senilidade, porque muitas doenças desenvolvem-se a partir de extremos de um contínuo de alterações que integram a própria variabilidade genética, ambiental e comportamental entre os indivíduos.
Considere, por exemplo, as alterações de glicemia. Nós convencionamos que a glicemia de jejum é normal quando abaixo de 100mg/dl e diagnosticamos diabetes quando ela está acima de 125mg/dl a partir da observação de complicações da hiperglicemia na população; não há um parâmetro biológico objetivo de qual a glicemia normal e qual a alterada para determinado indivíduo. Multiplique esse problema para todas as outras variáveis contínuas que se alteram em função da idade (como quantidade de placas senis no cérebro, porcentagem de gordura corpórea, massa óssea, etc.) e você entenderá porque é difícil imaginar alguém que alcance uma idade avançada isento de pelo menos alguma alteração que se enquadre no lado patológico desse espectro, nomeadamente, a senilidade.
Em 1991, James Goodwin publicou um ensaio chamado “Ideologia Geriátrica: o Mito do Mito da Senilidade” no Journal of the American Geriatrics Society. O título parece estranho, mas resume bem a ideia central do artigo: a medicina geriátrica carrega consigo um viés ideológico ao proclamar que a senilidade decorre apenas de doenças. Goodwin explica que, com a intenção de combater o etarismo, a Geriatria insiste numa tese de que coisas ruins não necessariamente acompanham o envelhecimento, afinal, se o que estraga a velhice são as doenças que a acompanham, basta preveni-las e tratá-las que as mazelas da idade desaparecem. Reduzindo esse raciocínio ao absurdo, a imortalidade estaria ao nosso alcance. Esse artigo é bastante denso e, em alguns aspectos, desatualizado, pois baseia-se em conceitos médicos de três décadas atrás. No entanto, acho interessantes essas duas questões que Goodwin corajosamente discute: se faz mesmo sentido insistirmos tanto em distinguir senescência de senilidade e se adotamos uma postura mais ideológica que científica ao nos debruçarmos sobre essa questão. A maneira como se discutiu a inclusão de “velhice” na CID-11 parece favorecer essa última ideia; não é rigorosamente científico refutar uma hipótese (senescência e senilidade serem polos de um mesmo espectro) sem investigá-la devidamente apenas porque sua conclusão pode ter uma conotação negativa.
Pelo mesmo motivo, permanecia exótica a velhice no tal capítulo: ninguém nunca provou que velhice é doença, e a velhice abrange a fase da vida em que se observa a maior heterogeneidade de perfis de saúde. Dadas a importância que a CID possui e a relevância da questão do envelhecimento, a proposta inicial deixou muito a desejar, independentemente de razões ideológicas. Nessa linha, a Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG) e o Comitê Latino Americano (COMLAT) da International Association of Gerontology and Geriatrics (IAGG), manifestaram-se no sentido de evitar um enquadramento equivocado da velhice na CID-11.
Síndromes geriátricas são doenças, velhice não
O documento da COMLAT trouxe argumentos científicos e ideológicos, mas propôs uma solução mais razoável ao defender a codificação de síndromes geriátricas como a fragilidade, osteossarcopenia e instabilidade postural. Do contrário, essas condições poderiam vir a ser enquadradas arbitrariamente em “velhice”, que se tornaria um grande saco de gatos se não fosse revisada.
A substituição de “velhice” por “senilidade” (ou declínio físico associado ao envelhecimento) provavelmente não resolve essa questão, mas certamente corrige o problema semântico de se tornar equivalente o pertencimento a um estrato populacional a uma doença, o que poderia ensejar ou reforçar atitudes preconceituosas contra idosos, argumento este muito usado pelos defensores da revisão. “Senilidade”, pelo menos, é uma condição mais restritiva, embora bastante vaga e de difícil definição clínica. Na prática, senescência e senilidade determinam o envelhecimento biológico do indivíduo, suas diversas nuances, juntamente com a diversidade psíquica e social, tornam a velhice tão heterogênea. Como já expusemos, na prática é impossível saber “quanta senilidade” um idoso tem, para além do reconhecimento dos diagnósticos mais evidentes.
A codificação de fragilidade e síndromes geriátricas correlatas, seria, de fato, bem melhor do que manter a tal “senilidade” como categoria diagnóstica. Em nosso meio, é daquelas categorias da CID que são geralmente ignoradas (felizmente), justamente por seu pouco valor para fins diagnósticos ou estatísticos.
Todos os nomes
A CID é um instrumento de normatização internacional de diagnósticos médicos e condições de saúde, seu uso é fundamental em epidemiologia, administração e direito em saúde, e mesmo para a adequada organização das atividades assistenciais. Sua primeira versão remonta ao final do século XIX, e a Organização Mundial de Saúde assumiu sua revisão a partir de 1948.
A preocupação da CID-11 com o envelhecimento é plenamente justificada no mundo contemporâneo, mas, da maneira como foi colocada, deve trazer mais problemas que soluções. “Velhice” foi proposta como doença, as críticas à essa posição surtiram efeito, porém, ao invés de termos um avanço, observamos um recuo: a manutenção de “senilidade” como categoria diagnóstica, sem a devida classificação para as síndromes geriátricas. Em inglês, “senility” refere-se à deterioração cognitiva das demências senis, provavelmente, na nova versão em Português da CID, a tradução será algo como “declínio físico associado ao envelhecimento”.
Na esteira da linguagem politicamente correta os termos “velho” e “velhice” caíram em desuso em nosso meio (em inglês continua-se falando e escrevendo sobre “elderly” e “old age” sem problemas). Há quem os associe a uma postura preconceituosa; confesso que gosto deles, talvez porque os “meus” velhos (meus avós, meu pai, meus tios) aplicavam-nos a si mesmos, e foi com eles que aprendi a gostar de velhos: em casas velhas, com bugigangas velhas e comida boa de antigamente. Querer esconder o que há de ruim na velhice com expressões tolas como “melhor idade” parece-me um insulto à lucidez dos velhos. Sou, portanto, um geriatra que preza a palavra “velhice” e a organização da CID. Espero que essa discussão toda resulte em uma CID aperfeiçoada, e não piorada, e em uma reflexão produtiva e isenta de conflitos sobre a essência do envelhecimento. E espero não perder velhos amigos com minha sinceridade!
Referências:
1 – ICD-11 for Mortality and Morbidity Statistics
2 – Morley JE. A brief history of geriatrics. J Gerontol A Biol Sci Med Sci. 2004 Nov;59(11):1132-52. doi: 10.1093/gerona/59.11.1132. PMID: 15602058.
3 – Goodwin JS. Geriatric ideology: the myth of the myth of senility. J Am Geriatr Soc. 1991 Jun;39(6):627-31. doi: 10.1111/j.1532-5415.1991.tb03607.x. PMID: 2037757.
5. OMS recua e desiste de classificar velhice como doença. Claudia Collucci na Folha de São Paulo, 16 de dezembro de 2021
6 . Banerjee D et al. Not a disease: a global call for action urging revision of the ICD-11 classification of old age. Lancet Health Longev. Oct. 2021
_______________
José Renato Amaral: sou geriatra, graduado pela Faculdade de Medicina da USP, onde fiz minha residência. Sou assistente do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas da FMUSP desde 2003. Embora paulistano, sempre sonhei em ser médico e morar numa chácara, no interior, mas deu nisso. Acredito nos fundamentos do movimento Slow Medicine como princípios para a boa prática médica contemporânea, tanto no interesse de cada indivíduo/paciente, como para a sociedade como um todo.