Aducanumabe e a perfeição possível

junho 24, 2021
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Por Régis Vieira e Rafael Thomazi

“Adoramos a perfeição, porque não a podemos ter; repugná-la-íamos se a tivéssemos. O perfeito é o desumano porque o humano é imperfeito.”

(Fernando Pessoa)

No dia 7 de junho deste ano, a U.S. Food and Drug Administration (FDA), órgão regulatório americano para aprovação de novos medicamentos, aprovou um novo tratamento potencialmente revolucionário para a doença de Alzheimer – aducanumabe. Não foram necessários mais do que poucos dias para que se iniciasse um grande e acalorado debate nas mídias, redes sociais e entre membros da comunidade científica mundial em torno da aprovação inusitada da droga. Tal interesse, indiscutivelmente, é legítimo. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), cerca de 50 milhões de pessoas no mundo são portadoras de algum tipo demência, e a doença de Alzheimer pode corresponder a até 70 % desse contingente. Além disso, trata-se de uma condição que não dispõe, até hoje, de tratamentos capazes de revertê-la ou evitá-la, causando grande comoção entre pacientes e seus familiares, e com grande impacto social, financeiro e emocional.

 No entanto, a aprovação da nova droga não foi recebida com um tom de celebração unânime. Aspectos pouco claros acerca do processo de aprovação e dos resultados dos estudos científicos trouxeram à tona questões importantes, que merecem ser discutidas. Em primeiro lugar, cabe ressaltar que a FDA aprovou o aducanumabe dentro do seu novo programa para aceleração dos processos regulatórios, que permite liberação de medicamentos que tratem doenças graves, sobretudo sem tratamento prévio, e que tenham atingido ao menos desfechos substitutos. Em outras palavras, uma medicação poderia ter seu uso iniciado mesmo que os benefícios clínicos reais ainda não estejam comprovados, desde que os resultados iniciais dos estudos concluam que há probabilidades grandes desse benefício ser atingido. Cabe ressaltar que o programa prevê que, nessas situações consideradas prioritárias, a indústria farmacêutica responsável deve se comprometer a realizar estudos adicionais com avaliação do benefício clínico da intervenção (chamados estudos confirmatórios), após os quais a aprovação da medicação pode ser suspensa caso o benefício não se confirme. A controvérsia se iniciou porque a Biogen, indústria farmacêutica que testou o aducanumabe, teve dois ensaios clínicos interrompidos por não encontrarem indícios de benefícios clínicos, ou seja, nem mesmo os desfechos substitutos tinham sido atingidos, e esses resultados negativos tinham sido previamente  informados pela própria Biogen, o que levou a comissão técnica que dá suporte à FDA a sugerir que o aducanumabe não fosse aprovado. Mesmo assim, a indústria farmacêutica surpreendeu o mundo ao solicitar liberação da medicação pela FDA com base em análises posteriores às interrupções, e mais surpreendente ainda foi a aprovação dessa liberação pela agência regulatória americana, que alegou tratar-se de terapia potencialmente valiosa para pacientes com uma doença grave, onde há uma necessidade não atendida e onde há uma expectativa de benefício clínico, apesar de alguma incerteza residual em relação a esse benefício. 

Onde estão os vieses

O impacto no desfecho substituto escolhido para os estudos da Biogen foi a diminuição de depósitos amiloides no cérebro, que é uma das fisiopatologias mais aceitas para deterioração da doença de Alzheimer. No entanto, apesar do aducanumabe ter sido capaz de promover essa redução, isso não se traduziu em uma melhora clínica dos pacientes que receberam a medicação, o que sugere que o processo é bem mais complexo do que simplesmente “limpar” o cérebro dos pacientes. O mais provável é que outros mecanismos estejam envolvidos na fisiopatologia da doença. Isso não significa que as notícias não sejam animadoras, pelo contrário: faz parte da ciência a evolução através premissas e plausibilidades biológicas sendo testadas, mas tempo e cautela serão condições básicas neste momento. 

Essa cautela é benvinda devido a dois vieses cognitivos bem conhecidos da comunidade científica: novidade e popularidade. Em bom português, tudo que é novo parece melhor, e a divulgação maciça pode validar essa crença. Uma situação que envolve uma doença muito prevalente, sem tratamento específico e com grande impacto na qualidade de vida é um campo fértil para condutas apressadas, análises superficiais e decisões equivocadas. As demências são palco de discussões desse tipo com frequência, e provavelmente o aducanumabe não será o último protagonista delas.

Onde entra a Slow Medicine

 É justamente nesse tipo de situação que a adoção da postura defendida pela Slow Medicine adquire papel essencial. A busca pelo “caminho do meio” nos convoca a refletir sobre essas novas intervenções, considerando tanto os riscos envolvidos na utilização de medicamentos com benefícios duvidosos quanto a pressa de quem precisa lidar com uma doença tão cruel. No caso do aducanumabe, há fatos que são claros: os dados científicos de que dispomos são frágeis, a possibilidade de não obtermos os benefícios que esperamos é alta, e o custo financeiro e emocional envolvidos em sua liberação precoce são difíceis de prever. Se Hipócrates estivesse entre nós, certamente proferiria sua frase mais famosa: “Primun non nocere, et in dubio abstine” (“Em primeiro lugar, não cause dano; se em dúvida, abstenha-se de intervir”). 

Apesar dos sábios conselhos hipocráticos, seria no mínimo inquietante – para não dizermos cruel – ignorar o sofrimento e a ansiedade dos milhares de pacientes e familiares que convivem com a doença e buscam desesperadamente por opções que lhes tragam mais qualidade de vida. Estamos falando de uma condição em que grande parte dos médicos (provavelmente a imensa maioria) informa o diagnóstico como uma sentença de vida miserável e morte precoce. A notícia de uma droga com mecanismo de ação inusitado soa como música aos ouvidos de quem recebeu esse tipo de informação, e é compreensível que se agarrem a ela com toda a sua fé. É nesse ponto que nos cabe esclarecer o contexto complexo e muitas vezes desconhecido que envolve as demências, em especial a doença de Alzheimer. 

 Nossos desafios começam já no diagnóstico diferencial dos quadros demenciais. A eventual eficácia de medicamentos como o Aducanumabe está indiscutivelmente atrelada a um diagnóstico precoce e preciso, o que exige uma avaliação médica muito bem capacitada (indisponível em grande parte dos serviços, não apenas no Brasil mas também no mundo), e de tecnologias como marcadores liquóricos e exames de imagem específicos, como o SPECT (também frequentemente inacessíveis). Sem o diagnóstico mais provável de doença de Alzheimer, obtido por essa abordagem detalhada, nem ao menos sabemos se são realmente os depósitos amiloides cerebrais que estão causando o quadro demencial. 

A estruturação pouco efetiva dos sistemas de saúde no que diz respeito ao cuidado desses pacientes é também um grande desafio que antecede a busca por medicamentos milagrosos. O que vemos em nossa realidade diária são pacientes cujo diagnóstico é feito em fases muito avançadas da doença, que há anos peregrinam de um serviço a outro, com pouca ou nenhuma informação sobre a evolução esperada do quadro, e que frequentemente já foram submetidos a todo tipo de iatrogenia, como medicamentos mal indicados, por exemplo. A completa negligência com o princípio slow da Individualização talvez seja uma questão mais preocupante do que a ausência de medicamentos eficazes para a reversão das demências, assim como a pouca importância destinada ao estímulo da Autonomia e Autocuidado, que podem fazer uma diferença impressionante na evolução do quadro clínico, na qualidade de vida e no tempo de vida dessas pessoas. Estamos falando de incluir aspectos psicossociais, educação sobre a doença, planejamento de cuidados, prática de cuidados paliativos, medidas não farmacológicas e comunicação empática como ferramentas prioritárias para os pacientes e suas famílias. Não seria nenhum exagero afirmar que uma estratégia de cuidados bem feita pode ter resultados superiores aos do aducanumabe para um número expressivo de pacientes. Quando a Slow Medicine fala sobre uso parcimonioso da tecnologia, é a isso que se refere: não se trata de oferecer tudo a todos, e sim o necessário a cada um. 

Se investirmos nossos recursos humanos e financeiros em estratégias como formação profissional mais adequada, disponibilização de testes diagnósticos mais acurados e estratégias de suporte multiprofissionais com equipes capacitadas, provavelmente conseguiremos benefícios muito mais robustos e para um número muito maior de pessoas do que se dedicarmos todos os nossos esforços à obtenção de um medicamento caro cujos benefícios reais estão longe de ser comprovados. A ciência pode – e deve – continuar seu caminho em busca de estratégias que nos livrem de doenças como o Alzheimer. É para isso que ela foi criada, e é essa busca que já nos trouxe curas memoráveis e ganhos imensuráveis no campo da saúde. É uma questão que transcende a própria ciência para se colocar no patamar da ética e da moralidade: nossa busca deve ser sempre pela perfeição, ainda que seja a perfeição “possível”. Mas é sempre bom lembrar que a pressa continua sendo a mais antiga inimiga da perfeição. Às vezes, o possível é mais perfeito que o desejável. 


Régis Rodrigues Vieira: Sou natural de Aiuruoca (aiuru = papagaio ; oca = casa) no Sul de Minas, terra linda, permeada pela Serra da Mantiqueira. Médico de Família e Comunidade, com mestrado em Ensino na Saúde pela UFF. Atualmente estou preceptor de medicina de família na Faculdade de Medicina do Hospital Albert Einstein, integro o grupo de pesquisa do Centro Afiliado Cochrane Rio de Janeiro e a Oxford Brazil Alliance. Entre as minhas paixões estão ensinar no cenário de prática e discutir Saúde Baseada em Evidências. Ao procurar um cuidado centrado na pessoa que aliasse as melhores evidências eu me deparei com o movimento Slow Medicine. Fui impactado desde o primeiro instante por tanta riqueza. Esta é a filosofia de medicina que sonhei fazer, esta é a medicina que eu quero ser cuidado.

Rafael Thomazi: Sou natural de São Bernardo do Campo no ABC paulista, moro em Botucatu no interior de São Paulo desde 2006, onde iniciei graduação em medicina na Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB-UNESP). Fiz residência em clínica médica e geriatria pela FMB, título de especialista em geriatria pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia. Trabalho em consultório particular como geriatra, realizo atendimento domiciliar na cidade de Botucatu, atendo pacientes moradores de instituição de longa permanência, sendo médico responsável pela enfermaria de geriatria do HC de Botucatu – UNESP, preceptor dos residentes em geriatria. Doutorando no programa de fisiopatologia em clínica médica da FMB. Gosto de esportes e música, nas horas vagas toco bateria. Adoro ensinar geriatria aos estudantes e residentes, principalmente temas relacionados a iatrogenia, uso de medicamentos, desprescrição, comunicação de más notícias e planejamento de cuidados. Mesmo não sendo
especialista titulado, gosto de estudar cuidados paliativos, o que ajuda muito na minha especialidade e encontrei na filosofia da slow medicine uma forma diferente de enxergar a prática médica resgatando aquilo que eu idealizava quando escolhi a medicina como profissão e arte.

Texto construído com a colaboração de Ana Lucia Coradazzi, médica oncologista clínica na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP, co-editora do site Slow Medicine Brasil.

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