Por Ana Lucia Coradazzi:
Houve um tempo em que as angústias dos médicos eram outras. Era uma época em que quase tudo de que dispunham cabia em sua maleta de mão, e todo o conhecimento científico podia ser organizado em alguns poucos livros. Os médicos não conheciam as doenças, não entendiam o que as causava, não sabiam tratá-las e muito menos preveni-las. Posso imaginá-los, perplexos, diante de um paciente caquético, tão fraco que mal conseguia se alimentar sozinho, sem ter a menor ideia de que um câncer de pâncreas consumia cada fração de sua energia. Ou então examinando, impressionados, uma paciente tossindo há meses, cuja expectoração era quase sempre tingida de sangue e cujo peso era perdido a cada semana, sem imaginar que aquilo um dia se chamaria tuberculose e poderia ser tratada com alguns comprimidos. Sua angústia era o seu não-saber.
Os tempos mudaram, a medicina mudou, e as angústias de hoje parecem distantes dos tempos medievais. Não é preciso descrever o quanto o conhecimento médico a respeito do corpo humano avançou, desde a compreensão de seu funcionamento normal até a instalação das mais diversas doenças, as formas de se definir um diagnóstico e as estratégias para tratar os mais diversos males. E, ainda assim, muitos de nós ainda se sentam ao lado de seus pacientes e percebem, surpresos: a angústia ainda está lá. Olhamos para eles revisando tudo o que temos: chegamos a um diagnóstico correto, propusemos bons tratamentos, acompanhamos os resultados, fizemos os ajustes necessários, mas o vemos piorando, bem ali à nossa frente. Fazemos, então, o que nos foi ensinado na faculdade: buscamos novas soluções. Conversamos com colegas, pesquisamos novos tratamentos, propomos estratégias experimentais. Enquanto estamos em movimento, a angústia parece menor (ou somos menos capazes de percebê-la). Então, seguimos em frente. Mais um remédio. Outro exame. Um novo procedimento, talvez? Quem sabe? Mas a natureza é, como sempre foi, implacável. Enquanto nos debatemos, eufóricos, tentando driblá-la, ela espera com serenidade, ciente de que a palavra final sempre será a sua. A natureza tem todo o tempo do mundo.
Talvez justamente por sabermos mais é que nossa angústia é hoje tão mais incômoda. Se sabemos tanto, como não conseguimos resolver? E, se não resolvemos, será que é porque não nos esforçamos o suficiente? Deixamos escapar algum detalhe importante, ou não lemos algum estudo que poderia salvar a vida daquele paciente? Em que momento falhamos? E é nesse ponto que nos damos conta de que nossa angústia é exatamente a mesma dos nossos antepassados medievais: não sabemos. Na busca por certezas que não existem, fomos nos tornando incapazes de diferenciar as pessoas umas das outras, tentando enquadrá-las em síndromes, doenças ou condições com as quais nossos cérebros podem lidar melhor. Mas a natureza não segue a nossa lógica, e isso nos atordoa. Como uma mesma doença, tratada exatamente da mesma forma, é completamente eliminada num paciente enquanto leva o outro ao declínio e à morte? Por que o mesmo medicamento é tão bem tolerado por uma pessoa enquanto vira a vida de outra de cabeça para baixo? Por que este paciente se beneficia tanto de uma determinada estratégia enquanto, para o outro, tal estratégia resulta em sofrimento e agonia? Como sabemos se está na hora de, finalmente, parar?
A médica Victoria Sweet, em seu livro Slow Medicine: the way to healing, fala justamente da raiz de nossas angústias ao descrever a medicina como uma atividade mais próxima da jardinagem do que imaginamos. Bons jardineiros observam cuidadosamente cada planta, o lugar onde está acomodada, o clima do dia, o estado do solo. Tocam suas folhas, sentem a umidade da terra, observam a presença de insetos, dedicam algum tempo a apenas olhar o jardim. Em vez de definirem uma estratégia a longo prazo, determinando antecipadamente a quantidade de sol ou água que será necessária, eles observam cada planta em seu contexto, identificando o que lhes falta naquele momento, e adequando seu cuidado a elas. Em vez de se preocuparem em eliminar rapidamente cada problema, eles se dedicam a cultivar suas plantas, com paciência e zelo, respeitando sua natureza e seu tempo. Eles sabem, inclusive, quando é hora de deixá-las partir. Surpreendentemente, ler as palavras da Dra. Sweet sobre os jardineiros pode aliviar (muitas vezes) as angústias de médicos do século XXI…
Não é fácil ser médico. Por muitos motivos. Ser um “bom” médico é ainda mais desafiador (para não dizer controverso). O ótimo médico de um pode ser o péssimo médico de outro, assim como boas estratégias num caso podem ser catastróficas no caso seguinte. Cabe a nós buscarmos ser o melhor que podemos para cada paciente, e isso por si só já é uma tarefa e tanto. A atitude de reconhecermos as diferenças, buscarmos os contextos e nos debruçarmos sobre cada paciente como jardineiros se debruçam sobre suas flores é o que mais nos aproxima da excelência e da perfeição. Um paciente de cada vez, um passo depois do outro, e saberemos que caminho seguir. Compreenderemos quando retornar, quando fazer uma pausa estratégica, e quando começar tudo outra vez. Saberemos, inclusive, quando o caminho tiver chegado ao final. E as angústias – aquelas, causadas pelas inquietantes incertezas que permeiam nossa vida profissional – serão acolhidas e mitigadas. Nossa única certeza será a de ter feito o melhor que poderia ter sido feito. Como a natureza (e os bons jardineiros) sempre fazem.
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Ana Lucia Coradazzi: Nascida na cidade de São Paulo, mora em Jaú, no interior, há muitos anos, com o marido e suas duas filhas. Oncologista clínica com titulação pela Sociedade Brasileira de Cancerologia, é especialista em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium, na Argentina. Atualmente atua como oncologista no consultório e na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Apaixonada por livros (e escritora nas horas vagas), procura reservar um tempo para correr e praticar yoga, buscando manter o corpo saudável e a mente tranquila. É autora do livro No Final do Corredor e edita o blog homônimo. Recentemente publicou mais 2 livros, escrito em colaboração com os Drs. Ricardo Caponero e Lucas Cantadori: Pancadas na Cabeça e O Médico e o Rio.
Mais uma vez me encanto com o texto de Ana Lucia Cradazzi. Eu que não sou médica mas professora aposentada. Hoje, busco no meu fazer em bibliotecas vivas de territórios vulneráveis escutar a cada um que entra, sem julgá-los, sem ter certeza de nada. Pra mim, o que escreveram René Barbier sobre a escuta sensível e Jacques Rancière sobre o mestre ignorante ajuda muito nesta caminhada cheia de surpresas e coisas desconhecidas, sem perder de vista que a empatia com cada um é condição para seguirmos em frente.
Vocês da Slow Medicine são demais, me iluminam.
Muito obrigada pelas palavras belas e generosas, Marilena! Que seu caminho seja cheio de boas surpresas! Um grande abraço!
Ana
Flores de esperança e gratidão para Dra. Ana Lúcia e todos os colegas que constroem a Slow Medicine pacientemente na vida real. Muita saúde, paz e felicidade em 2021!
Abraços fraternos desta colega que os admira muito.
Muito obrigada pelas palavras, Aracy! Que seu 2021 venha cheio de alegrais e bênçãos! Um grande abraço!!
Ana