Por André Islabão
“Não é sinal de saúde estar bem adaptado a uma sociedade doente.”(Jiddu Krishnamurti)
“A vida é cheia de sutilezas!” Foi assim que a Ana escreveu na dedicatória do meu exemplar de O médico sutil, o livro que ela acaba de lançar pela MG Editores e que já é mais um merecido sucesso em sua carreira literária. Trata-se de um daqueles livros cuidadosamente lapidados de maneira que sua mensagem seja facilmente compreendida tanto por profissionais de saúde como pelos leitores em geral, os quais de alguma forma vivenciam os cuidados de saúde em seu dia a dia e podem tirar lições valiosas dessa leitura. Mas o que torna o livro realmente especial é que ele traz em suas entrelinhas uma série de provocações capazes de estimular uma reflexão profunda e necessária de todos nós sobre o estado atual de nosso sistema de saúde e o futuro que desejamos trilhar. E isso só é possível porque a Ana – assim como a vida – também é cheia de sutilezas.
Uma das premissas básicas do livro é de que “apesar de tanta evolução científica no campo da saúde, os pacientes, seus familiares e os próprios profissionais nunca se sentiram tão frustrados e tão sós”. Essa simples constatação – facilmente comprovada em nosso dia a dia – deveria nos fazer refletir sobre quem realmente parece estar se beneficiando com os tais “avanços” da medicina e da ciência. A essa altura já deve estar claro que os maiores beneficiários deste estado atual das coisas na medicina não parecem ser nem os profissionais, nem os pacientes. Se isso ocorre é porque, como diz Júlia Jalbut no belo prefácio que abre o livro, “todos nós, sem exceção, sustentamos um paradigma que se revela adoecido e adoecedor”. E, se uma mudança de paradigma é o que precisamos, o livro da Ana nos oferece ótimas orientações.
O subtítulo do livro já deixa claro o caminho a seguir: a Medicina Baseada em Empatia (MBE). Ela poderia ser compreendida como uma variante mais delicada da bem conhecida Medicina Baseada em Evidências (também ela uma MBE), mas talvez seja na verdade apenas um ajuste de rota, nos lembrando de que a ideia original da MBE – aquela de Sackett e colaboradores – contemplava a empatia ao colocar os valores e preferências dos pacientes em pé de igualdade com a experiência clínica do profissional e as melhores evidências científicas. E essa sensação de que precisamos recuperar a empatia perdida fica clara para o leitor ao longo dos 20 ensaios do livro, os quais nos fazem questionar se não temos dado importância demasiada a alguns aspectos técnicos do método científico em detrimento dos aspectos humanos que envolvem o processo de adoecimento e morte e dos quais jamais deveríamos ter-nos afastado. Ao abandonarmos o conceito inicial de MBE, pode ser que tenhamos desaprendido essa arte da empatia, a capacidade vital de nos colocarmos no lugar do outro.
Entre os ensaios do livro estão alguns textos já consagrados, como “O médico sutil” e “Entre os hospitais e o caos”, os quais merecem ser lidos e relidos para que suas mensagens não sejam esquecidas. Há também textos menos conhecidos, como “O pulso que (ainda) pulsa” e o belo “As plantas do seu jardim”, o qual traz para a medicina a metáfora do médico como aquele ser iluminado que trata da saúde de seus pacientes com a mesma delicadeza de quem cuida de um belo jardim. E há espaço ainda para falar do papel fundamental das mulheres na medicina, da falsa dicotomia entre arte e ciência, da importância de os médicos terem uma formação humanista ampla, da necessidade de preservar uma forma ativa de esperança e do problema da mercantilização na medicina atual.
A sutileza pode ser compreendida como uma forma de delicadeza no trato com os outros, e tal qualidade é muito bem-vinda para todos aqueles que trabalham em cuidados de saúde. Mas a sutileza é também uma forma aguçada de raciocínio, o que a autora nos mostra quando lembra que desenvolver a sensibilidade e o hábito de alguma expressão artística entre os profissionais pode ser uma maneira eficaz de criar empatia ao enxergarmos no outro a humanidade que redescobrimos em nós mesmos. A sutileza pode ser uma forma discreta de falar de assuntos sérios sem alarde ou sensacionalismo, como quando ela lembra da complacência de todos nós com aqueles profissionais que fazem da arrogância um pilar central de sua prática. A sutileza é ainda a expressão de um humor refinado, como quando a autora compara a chimpanzés aqueles profissionais que abdicam da capacidade tão humana de raciocinar e se limitam a seguir regras e protocolos engessados que só fazem perpetuar essa nefasta transformação dos hospitais em templos do consumo de produtos e serviços médicos.
Ao final do livro, o leitor pode ter uma boa ideia do que seja o médico sutil sugerido pela autora e que é urgentemente necessário para que a medicina possa abraçar o futuro sem perder as qualidades humanas que a transformaram em uma atividade tão admirada pela sociedade ao longo da história. O médico sutil é aquele que usa a empatia como método de trabalho, que trata com delicadeza os pacientes e seus colegas de profissão, que abdica da pressa para poder tomar decisões clínicas mais sensatas, que se aprofunda na ciência sem perder de vista outros aspectos humanos igualmente importantes como as artes, a espiritualidade e a filosofia, que reconhece que um tanto de humildade é necessário para identificar as incertezas da ciência e aceitar os acasos da vida e que se propõe a fazer algo efetivo para mudar os rumos atuais de uma medicina cada vez mais desumanizada e mercantilista.
Enfim, o livro novo da Ana vai muito além da simples crítica ao sistema médico atual e suas visíveis fraquezas. Ele nos inspira a refletir, acena com várias soluções e também demonstra um tanto de otimismo ao nos fazer acreditar que uma mudança de rota ainda é possível. Então este é na verdade um “livro-semente” que ao fim da leitura estará delicadamente plantado no íntimo de cada leitor. Que nossos cérebros sirvam de solo fértil para essas belas ideias. E que seus frutos sejam colhidos enquanto há tempo. A medicina não pode esperar mais!
André Islabão: Sou médico internista formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) com três anos de residência em Clínica Médica pela Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Depois de vários anos dedicado ao atendimento de pacientes hospitalizados, decidi reduzir o ritmo e me concentrar no atendimento ambulatorial, domiciliar e em consultório próprio.
O tempo disponibilizado possibilitou que me dedicasse a outras atividades igualmente importantes, como a vida em família, a música, a tradução de livros médicos, o estudo de saberes diversos e o acompanhamento de pessoas em clínicas geriátricas, onde realizo um trabalho informal de musicoterapia tocando piano regularmente e levando um pouco de alegria aos moradores idosos.
Para mim, a medicina é tanto arte quanto ciência. A fim de humanizá-la e de reduzir alguns excessos, acredito na filosofia slow, em uma relação médico-paciente longeva, na transdisciplinaridade do conhecimento e na análise crítica da ciência. Meu novo ritmo ainda me possibilita compartilhar ideias próprias em meu blog (www.andreislabao.com.br) e em quatro livros publicados: Entre a estatística e a medicina da alma – ensaios não controlados do Dr. Pirro; O risco de cair é voar – mors certa hora incerta; Slow Medicine: sem pressa para cuidar bem (em parceria com a Ana Coradazzi); e A Arte de Espantar Dinossauros, pela Editora Ballejo.