Por Antônio Pessanha Henriques Junior:
“…três no que fica, dois no que sai.
três no que fica, dois no que sai,
três no que fica, dois no que sai…”
Houve uma época que isso soava em meus ouvidos como a um mantra, que na verdade fazia parte de um treinamento em cirurgia geral, durante ágeis e rápidas gastrectomias por úlceras.
Durante a “esqueletização” do estômago, na parte que ficaria na cavidade abdominal, a hemostasia dos vasos era feita com fios contendo três nós. Na parte que sairia da cavidade, a peça cirúrgica, eram feitos dois nós.
Nunca se operou tanta úlcera péptica (doença benigna) quanto nas décadas de 60 e 70 do século passado.
As verdades em medicina são temporárias e, naquela época, o tratamento proposto e definitivo era a gastrectomia (ressecção cirúrgica de parte do estômago). Com a (re)descoberta do Helicobacter pylori, nos anos 80, passou-se a dar a esta bactéria a devida importância como determinante para a etiologia das gastrites e úlceras, fazendo com que a cada dia menos indicações cirúrgicas passassem a ter, deixando esta indicação apenas e tão somente, para as complicações, que não se conseguiam controle através de medidas clínicas.
Nos anos 70, estava cursando o curso médico, e a partir do quarto ano, tive a chance de uma participação efetiva em cirurgia geral e do aparelho digestivo, me levando depois a cursar tal especialidade.
Nos era colocado a importância da precisão e da rapidez como meta para se tornar um bom cirurgião, que habitualmente era “medido” por grandes incisões, principalmente em cirurgias de trauma.
“Grandes incisões, grandes cirurgiões”.
Era comum ouvir-se alguns cirurgiões dizendo sobre a rapidez com que conseguiam fazer tais procedimentos, havendo alguns, “famosos”, que de 7 da manhã até ao meio dia, faziam “duas vesículas e um estômago”, e eram verdadeiramente endeusados.
O tempo passou, os ensinamentos foram sedimentados e a crítica ficou mais refinada, mostrando que, muitos daqueles aforismas e “ensinamentos” não correspondiam a condutas corretas e muito menos éticas. E muitos daqueles cirurgiões, deixaram um legado apenas e tão somente de bons “costureiros”, com forte deficiência humanitária.
Cabe aqui uma citação sobre a lenda do Albatroz:
O albatroz é uma ave dita “ecológica”.
Tem asas com grande envergadura, dando à ave, que tem corpo médio, uma autonomia de vôo muito grande, podendo assim planar sobre embarcações em alto mar e alimentando-se de restos de comida atirados, fazer o papel de faxineira, além de acusar proximidade com terra, continente ou ilha.
Conta a lenda, que numa viagem longa de uma embarcação à vela, um marinheiro desavisado e por simples maldade, matou um albatroz que se alimentava de restos dessa embarcação em grande parte de sua viagem.
O capitão então o puniu fazendo carregar o albatroz no pescoço pelo resto da viagem, que durou meses.
Essa estória muitas vezes foi usada como metáfora, para nossas ações, pessoais e profissionais, principalmente na Medicina, em Cirurgia Gástrica, especialmente nas décadas de 60 e 70, quando a gastrectomia (operação que tira um “pedaço” do estômago, atualmente, muitas vezes dita como redução do estômago) era feita rotineira e indiscriminadamente em casos de úlcera; muitas vezes causando nos pacientes uma má adaptação, com diarreia crônica, desnutrição e uma baixa qualidade de vida; sendo então chamada de Síndrome do Albatroz.
Em Medicina a todo momento somos convidados a buscar em Hipócrates, ensinamentos que nos norteiem na busca de uma prática profissional condizente com os preceitos da BIOÉTICA, quais sejam: a BENEFICÊNCIA, a NÃO MALEFICÊNCIA, a AUTONOMIA e a JUSTIÇA.
A maturidade profissional nos oportuniza aprender com erros e refletir sobre acertos possíveis, lembrando sempre do aforisma hipocrático, que nunca saiu de moda – PRIMUM NON NOCERE (em primeiro lugar não causar danos).
Quantos pacientes tiveram suas vidas vividas de forma pouco digna, devido a um “modismo” daquela época, que por décadas cegavam os médicos cirurgiões que não conseguiam parar para observar a qualidade de vida daquelas pessoas, mantendo-se cirurgias mutiladoras, mas “tecnicamente perfeitas”.
É preciso manter sempre a indignação e a crítica em alta, para que ponderações de nossas condutas não nos façam causar sofrimentos e arrependimentos.
Os maus resultados continuarão existindo, mas nunca de forma intencional.
A Slow Medicine, com seus propósitos de uma medicina sóbria, respeitosa e justa, pode servir verdadeiramente como um antídoto, nos ajudando a ter um equilíbrio desejável e necessário para a busca da Ética.
E permitir com isso, que sejamos não só profissionais bons, mas principalmente, pessoas melhores. O ganho social disso é imensurável.
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Pessanha Júnior:Idoso jovem (61 anos).Graduado em Medicina e Filosofia.Casado com Gilena Luz há mais de três décadas.Pai de Luísa, Laura e ainda de Pandora, a irmã canina delas.Mantendo sempre a indignação em alta, sonha com a diminuição das desigualdades sociais, nossa maior doença, e como foco tão somente no ESSENCIAL. Na busca pela Suficiência, gostaria de ser lembrado como um EDUCADOR. E ao final de tudo, fazer falta.
Lê-los é tomar minha dose diária de esperança!