A Balada de Narayama e a Geriatria sem Pressa: uma metáfora da velhice e da morte

agosto 14, 2017
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por Simone Mancini Castilho:

Slow Medicine é uma filosofia que propõe o resgate da arte de cuidar dentro da medicina tradicional e que preconiza, dentre outros princípios, uma escuta cuidadosa e significativa do paciente, e a atenção aos seus valores, expectativas e preferências. Dentro da Medicina Sem Pressa vamos encontrar propostas dedicadas especificamente ao período do envelhecimento, com particular atenção aos cuidados do final da vida.

A partir de sua formação e prática de mais de 30 anos em geriatria, o Dr Dennis McCullough talvez tenha sido o maior divulgador da Slow Medicine nos EUA, debruçando-se em particular sobre as implicações desta filosofia de trabalho no cuidado geriátrico. Ele se engajou nesta causa, defendendo uma forma de abordagem dos problemas no cuidado aos idosos que combina cooperação, coordenação e conservação de recursos limitados visando o benefício do paciente ao invés da imposição, em suas próprias palavras, de uma “morte por terapia intensiva”. Assim, diante do inevitável e irreversível processo de envelhecimento, diretrizes invasivas são substituidas por estratégias de enfrentamento elaboradas e sugeridas pelo Dr McCullough que se tornaram a proposta conceitual da Slow Medicine na prática geriátrica.

Em seu livro “My Mother, Your Mother”, ele reúne de forma rica e profunda suas ideias. Descreve e divide os últimos anos de vida nas chamadas “8 estações da vida tardia” (late life stations): estabilidade, compromisso, crise, recuperação, declínio, anúncio da morte, morte, luto/legado e vai propondo maneiras para se lidar com elas. A ideia essencial é como organizar os cuidados daquele que envelhece, buscando integrar a família, os cuidadores, os profissionais de saúde e os recursos sociais existentes.

É impensável trazer neste breve artigo a riqueza das propostas que o Dr Dennis apresenta no livro, bem como o grau de profundidade e detalhamento que lá encontramos. A obra é uma possibilidade única e insubstituível de leitura. No entanto, aproveitando uma passagem do prefácio onde o autor faz referência ao filme japonês “A Balada de Narayama” como uma lembrança e inspiração para o desenvolvimento de seus novos conceitos na prática geriátrica, tentarei relacionar símbolos e imagens presentes no filme com linhas gerais do livro.

Há duas versões do filme “A Balada de Narayama”.

A primeira, lançada em 1958 pelo diretor japonês Keisuke Kinoshita e inspirada no livro de Schichiro Fukazawa, foi filmada na estética não realista do épico teatro japonês chamado kabuki, conhecido pela estilização do drama e pela elaborada maquiagem usada por seus atores.

Quase trinta anos depois, o diretor Shohei Imamura realizou uma versão mais realista do filme, sendo premiado com a Palma de Ouro em Cannes, em 1983. É à esta versão que me refiro no texto a seguir.

A história do filme A Balada de Narayama é baseado na lenda Ubasuteyama, que remonta à ideia do Monte Deus Narayama, grande receptador e curador dos envelhecidos.

Retrata uma realidade da época do Japão feudal extremamente pobre, onde uma comunidade de aldeões agricultores travava diariamente uma luta pela sobrevivência, de acordo com a disponibilidade de comida e pessoas a serem alimentadas. Sem médicos e apenas com remédios locais, a vida era dura e a comida, escassa.

Para garantir a subsistência de seus membros, aquele que completasse 70 anos devia, cumprindo a árdua tradição da comunidade, ser carregado pelo filho em suas costas e levado ao topo da montanha sagrada de Narayama onde, do mesmo modo que as gerações anteriores, seria deixado junto de outros frágeis idosos e aguardaria sua morte pacífica, adormecendo na neve congelante. Quem se recusasse a cumprir o costume traria desonra à sua família.

 

Em seu livro My Mother, Your Mother, o Dr McCullough compara os movimentos do cuidador e familiares no período que acompanha as perdas, doenças e a morte do idoso, ao da subida da montanha e constata que eles a consideram difícil e até mais longa, mesmo com os amplos e milagrosos benefícios da medicina contemporânea.

Apesar das perdas que acompanham o envelhecimento, este período não é exclusivamente o de um descenso como apressadamente julga nossa cultura. Nesta etapa, e mais especificamente no tempo que precede a morte, trilha-se um caminho vertical e de ascensão, ‘a subida de uma montanha’, ao encontro do divino que nos habita e nos define como humanos.

Cabem aqui algumas palavras sobre o simbolismo da montanha.

A aproximação da morte coincide com encontrar o superior e o que está além de nós, ou seja, tudo aquilo que nos transcende.

Desta forma, o caminho nesta direção necessita um símbolo que assuma a ligação do homem com o que está acima dele ou que facilite esta conexão. Segundo Mircea e Eliade (2001), é por este motivo que muitas montanhas são tidas como sagradas, pois se elevam verticalmente em direção aos céus e é nelas que o homem pode subir a fim de diminuir sua distância com o divino.

Esta subida, no entanto, exige cuidados. Como o Dr Dennis vai nos revelando, necessita de compromisso, confiança e lealdade entre todos aqueles que a compartilham. Trata-se de uma subida dura que requer apoio, comunicação clara e confiança de familiares, médicos e profissionais dos serviços de saúde envolvidos.

As duas primeiras estações descritas no livro dizem respeito ao importante período de “estabilidade” e “compromisso” que antecedem a crise e que preparam o caminho para os ascendentes graus de dificuldades que inevitavelmente surgirão. São preparações para a subida.

Na estação da estabilidade algumas propostas dizem respeito à importante necessidade de começar a obter informações sobre o processo de envelhecimento e suas apresentações, de iniciar discussões sobre a tomada de decisões, engajar a família, antecipar o início da interdependência, dentre outras.

Já a estação de compromisso se refere, em linhas bem gerais, à prática de envolvimento, vigilância e atenção imediata ao idoso diante de alguma nova vulnerabilidade apresentada.

A subida da montanha é longa e difícil. Exige equilíbrio, força e firmeza do filho, que às vezes fraqueja. Há trechos do caminho que são mais suaves, outros em que se tropeça, cai e sangra. Cometem-se erros que demandam correções, subidas que exigem descansos e atalhos esperançosos.

 

Tais imagens podem ser associadas às três “estações” seguintes descritas no livro, crise, recuperação e declínio.

Segundo McCullough, na crise deve-se objetivar o controle de danos, com olhar prático sobre aquilo que é urgente. O foco deve ser mantido em ultrapassar a crise permanecendo atento às capacidades mantidas pelo idoso ao invés de se deter nas doenças e problemas. É a prontidão para se erguer da primeira e inevitável queda durante a subida da montanha. O livro explora cuidadosamente formas, estratégias e cuidados a serem tomados nessa ocasião.

Já a estação da recuperação é marcada por um tempo de menor velocidade, no ritmo lento da reabilitação pós-crise que exige devoção nos cuidados ao idoso, semelhante ao aprendizado das rotinas básicas de uma criança. É uma etapa que transcende as palavras, como retratado nas cenas do filme onde mãe e filho falam apenas o suficiente para reforçar sua confiança mútua e encorajar ambos naquilo que precisa ocorrer. Período onde outras duplas de pais e filhos, mães e filhas desaceleram, param e descansam durante o caminho.

Na estação de declínio as deficiências do idoso tornam-se pesadas para todos e podem suscitar sentimentos de desencorajamento, depressão, medo e raiva. É uma fase que exigirá difíceis decisões sobre riscos e benefícios, e uma dura resistência de todas as partes nesse enfrentamento. O autor percorre diversas rotas que o declínio pode apresentar e propõe maneiras cuidadosas e bem refletidas de escolher e se manter no melhor caminho para o idoso. Aborda também as dúvidas e medos que surgem nesta etapa onde o futuro parece mais curto e menos cor-de-rosa do que se esperava. A cena de um idoso sendo atirado da montanha por um filho impaciente, antes de alcançar o cume, é uma imagem do filme que, ao mesmo tempo em que choca, testemunha a possível falta de força em prosseguir na subida.

As três últimas estações são: prenúncio da morte, morte e luto/legado.

O prenúncio da morte é a estação na qual o desafio é o de alcançar conforto mesmo sabendo que a morte está próxima. Esta etapa de incerteza quanto ao momento da chegada da morte deve se transformar num tempo de preparação para a mesma. Várias questões, como, por exemplo, a adoção da Medicina Paliativa, uma das parceiras da Slow Medicine, são discutidas no livro. No filme, a proximidade da finitude também se revela nos encontros com outros idosos mortos já deixados em seu destino final e nas imagens de ossos e esqueletos que começam a forrar este trecho do caminho da montanha. O cume logo se descortinará.

Com todas as estações anteriores devidamente trilhadas, cria-se um contexto de amor e humanidade, bem como uma base emocional e espiritual para se alcançar a próxima estação da vida chamada morte. O autor discute questões práticas pertinentes à esta fase como, por exemplo, cuidados com o ambiente da morte, manejo com visitas e telefonemas, providências com o funeral. Também aborda maneiras de estar presente com aquele que morre e de como oferecer o conforto emocional pertinente à partida. Simbolicamente, a subida da montanha é a preparação para o ato final de devolver ao universo aquele que deve partir, como dita a natureza. A dolorosa despedida entre mãe e filho, belamente retratada no filme, é suavizada pelos flocos de neve que vem cobrir a dura paisagem da partida, onde o adeus se confunde com a própria trajetória de amor recíproco.

Sobre a estação derradeira, luto/legado, o autor nos ensina que, não raro, dura anos ou o resto da vida de quem fica e requer tempo e espaço para se completar. Depois de um período de intenso sofrimento físico e emocional, a dor da perda precisa de um acolhimento franco e sem pressa para lentamente poder se entregar nos braços da confiança e sabedoria da missão cumprida. A descida da fria montanha nevada ajuda a dissolver a tristeza, diluindo-a no orgulho e na satisfação de ter feito o melhor para aquele que ensinou a morrer.

Finalizo retomando as palavras iniciais sobre a Medicina Sem Pressa. Como exposto ao longo de todo o livro do Dr McCullough sobre o final da vida, a Slow Medicine entende, como essencial, o tempo para a comunicação e diálogo. Entende, como imprescindível, a reflexão na tomada de decisões e o trabalho em equipe. E, como vital, a humanização e individualização dos cuidados ao paciente.

______________

Simone Mancini Castilho: Nasci em São Paulo, em 1965. Formada em medicina na FMUSP em 1990, no quinto ano fui fisgada pela psiquiatria que dirigiu meu olhar para as dores psíquicas.  Terminei meu mestrado na área de Transtornos Alimentares em 1999, trabalhei em alguns serviços públicos e privados de saúde mental e dei aula para estudantes de psicologia. Escrevi alguns capítulos de livros, artigos e dois livros: “A Imagem Corporal”  e “Psyche, Matter ande Crop Circles”. O tempo de profissão foi me mostrando que a clínica psiquiátrica deixava em mim uma lacuna que preenchi com um curso de formação em psicologia analítica, mergulhando no universo simbólico que alimenta a alma.

Adoro filmes e cinema, de refletir sobre eles e perceber como são belíssimos espelhos psíquicos.

Sempre atendendo em consultório particular, acredito na medicina humana acima de tudo.

Casada há 25 anos, sou mãe de três filhos maravilhosos, gosto de correr, viajar de moto e me surpreender com a tecnologia. Vibro com novidades, paisagens novas, sou das mudanças, do movimento e dos novos ares.

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Ana Célia
Ana Célia
7 anos atrás

Querida Simone, parabéns pelo belo texto! Muito legal a ideia de propor essa parceria, dança, casamento… entre os maravilhosos filme e livro! Adorei! Bj gde

Simone Mancini
7 anos atrás
Responder para  Ana Célia

Obrigada, Ana! Sua leitura atenta e apreciação cuidadosa são sempre um grande estímulo para mim!
Grande beijo

Sylvia Baptista
Sylvia Baptista
7 anos atrás

Simone,
Seu texto é sensível como a reflexão que propõe. Que bom poder rememorar esse lindo e inesquecível filme que, sem dúvida, dialoga com a Medicina Sem Pressa como bem apontou. Um prazer ler a sua resenha e sentir o seu amor pelo cinema e pelo quanto ele nos engrandece. Compartilho totalmente isso com você.

Simone Mancini
7 anos atrás
Responder para  Sylvia Baptista

Sylvia querida, fico muito feliz que você tenha apreciado meu texto. É sempre uma honra receber seus elogios. Bjo grande

Ingrid Dias
Ingrid Dias
7 anos atrás

Saio encantada com tudo o que tenho conhecido da Slow medicine. Sou estudante de medicina saindo do 1º ano e me deparo com esta filosofia fantástica! Incrivelmente começo a esboçar mentalmente um possível trabalho de conclusão de curso tendo como base a slow medicine no envelhecimento.

Simone Mancini
7 anos atrás
Responder para  Ingrid Dias

Espero que você aproveite sempre o conteúdo apresentado por aqui. Feliz que esteja gostando, Ingrid!

Helder
Helder
7 anos atrás

Gostei muito dos conteúdos.

Simone
Simone
7 anos atrás
Responder para  Helder

Que bom que gostou, Helder! Obrigada pela leitura.
Grande abraço!

Izabel Dantas
Izabel Dantas
4 anos atrás

Sábado de manhã, participando de um simpósio online sobre velhice (meu tema de estudo), nessa realidade imposta pela pandemia, ouço uma referência a esse filme – que eu desconhecia.
Ao buscar mais informações me deparo com essa outra pérola aqui, esse texto belíssimo e delicado sobre as relações… Parabéns e obrigada pela escrita. Vou compartilhar seu texto certamente! Abcs virtuais!

Ana Coradazzi
Ana Coradazzi
4 anos atrás
Responder para  Izabel Dantas

Que bom que gostou!

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