Por Afonso Carlos Neves
A Medicina Narrativa foi construída sobre uma base literária, portanto bastante ligada a prosa e poesia. Desde os anos 1970, as universidades americanas começaram a trabalhar com medicina e literatura em sentido amplo. Nesse aspecto, tanto com textos em prosa, como em poesia. Na medida em que a Dra. Rita Charon fez doutorado em Literatura Inglesa, ela fundou a Medicina Narrativa. Dessa forma, os dois braços da Literatura no sentido de arte de escrever – prosa e poesia – foram consagradas como maneiras de lidar com o binômio saúde/doença em sentido amplo, incluindo aí o relacionamento também entre profissionais de saúde, familiares e a coletividade que gira em torno desses fatores.
Nessa linha, tive o interesse de participar de Workshop sobre Medicina Narrativa, onde me marcou bastante o aspecto que pode ser designado como “Camadas”, de modo que isso serviu de inspiração para escrever um livro na forma poética embasado nessa profunda conceituação. Afinal, é através das “Camadas” que a Medicina Narrativa age nas pessoas.
Como já dito, em outubro de 2015 tive a oportunidade de participar de um workshop sobre Medicina Narrativa na Columbia University, em Nova York, coordenado pela Profa. Dra. Rita Charon, a criadora da Narrative Medicine. Eu conheci a Medicina Narrativa quando, antes de lançar em 2005 o livro “Humanização da Medicina e seus Mitos”, procurei por assuntos afins na internet. Desde então, mantive contato com esse assunto.
Vários detalhes sobre Medicina Narrativa só aparecem, no entanto, ao fazermos uma atividade presencial como um workshop, diferentemente de manter-se apenas atualizado com leitura. Há certas ênfases e prosódias que só são notadas em algo como um workshop. Assim que, entre algumas dessas “descobertas” esteve a noção de “camadas”. São as diversas “camadas” que compõem a narrativa, seja uma narrativa escrita, filmada, ou em outra forma de arte. Tais camadas se sobrepõem a outras camadas em analogia com coisas diversas que são parte do macrocosmo ou do microcosmo. O exercício de percepção dessas diferentes camadas é um diferencial no aprofundamento das narrativas e da Medicina Narrativa.
Toda essa percepção acabou por inspirar-me a escrever o livro poético intitulado “Camadas”. A expressão artística dessa percepção pode seguir vários caminhos, mas a forma de poesia brotou na medida em que surgiram reflexões sobre esse tema. Sendo assim, uma parte de “Camadas” só pode ser captada a partir da própria leitura da obra, sem muita explicação.
Um aspecto que pode ser ressaltado nessa escolha se deve a que o exercício narrativo de leitura ou de escrita tem se tornado cada vez mais escasso, na medida em que ele se reduz apenas ao estritamente necessário no sentido técnico, ou às conversas, fake news ou outras coisas por redes sociais. Desse modo, a leitura de literatura tem se reduzido tanto para prosa como para poesia, mas mais ainda para esta última.
Na posse do presidente Joe Biden nos Estados Unidos, em janeiro de 2021, todos se admiraram com Amanda Gorman, certamente a poetisa que “roubou a cena”. Mas, uma das admirações foi o fato de ela ser considerada como a atual “poetisa do país”, ou “a atual voz poética do país” e se disse que esse é um costume daquela cultura. Poucos sabem que no Brasil também já se teve esse costume. Alguns poetas já foram os escolhidos como “príncipes dos poetas brasileiros” em algumas ocasiões. Não interessa aqui citá-los. Hoje em dia, já que “google” se tornou um verbo em inglês, esperamos que eles possam ser encontrados na internet… O que importa mais aqui é chamar a atenção para a poesia em si.
Há diversas coisas que podem ser discutidas sobre o conteúdo de “Camadas”, e não se trata do, hoje em dia, tão falado “spoiler”, que até poderia ser o caso, se fosse uma narrativa em prosa. Mas, diz respeito mais à poesia em si: primeiro ler, depois debater. Oportunamente, podemos fazer isso.
Em todos esses aspectos concernentes à poesia, procuramos apontar certas características da poesia que a tornam peculiar entre as outras formas de leitura. O texto poético não é aquele que possa ser lido “correndo”, para chegar a seu final o quanto antes. Para penetrar nas “camadas” da poesia é necessária uma espécie de pausa, uma maneira diferente de lidar com o tempo da leitura, uma leitura “sem pressa”. Isso se coaduna com o espírito da “Slow Medicine”. Entre a Medicina Narrativa e a Slow Medicine, a poesia pode ser uma ponte que exercita o ritmo da vida, ou ainda o ritmo do binômio saúde/doença em um outro patamar além do apenas biológico, uma outra “camada”, que permita a um “tempo humano” cadenciar o ritmo do diagnosticar, tratar e cuidar, sem correria, frisando que isso não desrespeita a urgência.
Assim, perceber as diferentes camadas da vida pode ser possível através de uma medicina sem pressa, slow medicine, na sutileza das narrativas humanas aprendidas no exercício da literatura de prosa e poesia.
*O lançamento do livro Camadas acontecerá em 22/02/2021, segunda-feira, das 18 h às 19 h, na plataforma Zoom.
Afonso Carlos Neves: Sou médico formado pela Escola Paulista de Medicina em 1979, neurologista, mestre e doutor em Neurologia pela EPM , com Pós Doutorado em Neurologia na University of California San Francisco. Doutorado em História Social da Ciência pela FFLCH; tive livros publicados de ficção, ensaios e pesquisa histórica. Em 2015 tive a oportunidade de participar de Workshop sobre Medicina Narrativa com Rita Charon na Columbia University, NY. Sempre tive “um pé” em Ciências Humanas e nas Artes. Por isso, enquanto estudava medicina aprimorei-me um pouco na música e na escrita. Desde que entrei na faculdade a questão do humano me “incomodou”, nas situações em que a ciência, ou o comportamento decorrente de uma maneira de ser ou de pensar eram centradas num triunfalismo científico. Encontrei caminhos mais amploscom colegas, com alguns professores e com outras pessoas, com livros, com discos, com filmes, etc, etc. Tenho também um traço místico/religioso que influenciou na minha preocupação com o humano.