Campanhas de prevenção em saúde: uma necessidade baseada em evidências ou a instituição de uma Medicina do Medo?

novembro 16, 2019
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Por Lívia Callegari:

“Sou livre para o silêncio das formas e das cores.”

Manoel de Barros

A cada mês tomamos contato com uma nova cor instituída para eleger campanhas preventivas em Saúde. Nessa esfera de cuidados, apesar  de ainda haver uma certa confusão entre calendários e cores que, muitas vezes, misturam-se, entrelaçam-se, ou mesmo se repetem, algumas das modalidades de rastreamento compõe Políticas Públicas em Saúde.

Tanto as campanhas previstas  no calendário oficial do SUS, como outras que seguem com um possível apoio, situam-se na esfera da prevenção secundária, justamente por se fundamentarem em uma estratégia destinada a prevenir o desenvolvimento de um problema de saúde ainda que assintomático, desde o estágio inicial, seja no indivíduo ou na população. Objetiva-se, portanto, o rastreio e, consequente, o tratamento precoce  e eficaz de uma doença, cuja história natural é conhecida, reduzindo-se potencialmente a morbi-mortalidade que ela poderia causar em um paciente.

Para o convencimento inaugural – o que em alguns específicos casos não deixa de ter a sua razão de ser – propaga-se que algumas enfermidades, quando diagnosticadas em fase inicial, apresentam grande probabilidade de cura. Nessa vertente, a fim de que haja um percentual mínimo de adesão às referidas Campanhas em Saúde, com uma robusta aplicação de técnicas de induzimento, são promovidos encontros, palestras,  festividades, investimentos maciços em marketing e lobbies, amplo uso da internet, redes sociais e da mídia, dentre outras formas de engajamento a envolverem emocionalmente a população e, quiçá, os próprios formuladores de políticas públicas.

Assim, com esse apurado método de persuasão, a paleta de cores das campanhas passa, então,  a ser misturada de forma a se criarem os nuances da inquietação: “Será que tenho uma grave doença? Será que vou sofrer ou morrer cedo? Terei qualidade de vida? Preciso antecipar os meus projetos, pois o meu amanhã será incerto!”

De fato, a promoção e divulgação sobre a necessidade de rastreamento de possíveis doenças acabam, em certo sentido, por despertar a atenção e o autocuidado, além de um aculturamento mínimo em saúde, principalmente quando há um direcionamento  individualizado.

No entanto, nessa lavra de boas intenções, muitas das campanhas, aparentemente bem delineadas, podem estar imbuídas de informações desconexas e rasas, e, consequentemente, travestirem-se o seu verdadeiro papel de promoção da doença, e não da saúde ou do bem estar. Isso porque, em não raras vezes, essas Campanhas são fomentadas pelos fabricantes de equipamentos médicos, seguradoras, médicos ou grupos de pacientes,  que as direcionam nos seus melhores interesses. Assim, em análise mais apurada, muitas dessas referidas mobilizações guardam, em si, um vazio absoluto e um total desate com as evidências cientificas, pois, invariavelmente, estão pautadas por conflitos de interesse, ou em metas que apenas visam um giro de capital, e não um bem maior: o ser humano.

Fato é que o lucro obtido com os indivíduos doentes é já substancial. No entanto, o rendimento aumenta exponencialmente quando se engloba a outra parte da população – que em sua maioria é saudável – fazendo-se acreditar que necessitam de uma intervenção, ainda que supostamente pouco agressiva . Nesse caso, o foco em um primeiro momento será uma solicitação mais ‘generosa’ de exames complementares. A óbvia consequência disso, é o possível aumento da ‘medicalização’ da sociedade e o crescimento do complexo farmacêutico, por agora, citado em conotação de amplo espectro.

Esse é apenas um dos resultados da Disease Mongering, que significa  “Promoção da Doença”. Essa expressão tem tradução adaptada, sendo que a palavra Disease (doença),  significa alteração estrutural ou funcional do ser humano que produz sintomas e/ou sinais mais ou menos específicos;  e a palavra Mongering, que deriva de  Monger, em tradução aproximada, descreve um negociante/comerciante numa área específica, que promove a uma atividade direcionada, situação ou sensação que não seja desejável ou dignificante, também tendo a origem na palavra mangian do inglês antigo “traficar”, ou da origem germânica e influência do latim mango dealer, ou seja, comerciante/traficante.

Em suma, é o fenômeno de convencer indivíduos saudáveis, ou com algum fator de risco, de que estão doentes. É, portanto, explorado  o medo de poderem desenvolver determinada doença por meio da mais variada propaganda, sugerindo um imediato tratamento. Por esse motivo, passam a acreditar nessa necessidade, que se torna um desejo e,  reiteradamente repetida, formam uma demanda.

Nessa lavra, finca-se a denominada “publicidade do medo” que  tem em sua essência, o poder de gerar ansiedade e temores desnecessários, por apenas enfatizar a ameaça de sofrimento, perda substancial de qualidade de vida, ou morte prematura, caso o suposto diagnóstico não seja devidamente estabelecido e abordado através de intervenções médicas. Ao transformar pessoas saudáveis em doentes, como em um passe de mágica, ao invés de se transmitir a tão desejada tranquilidade buscada por  quem tem receio de ficar doente, pode-se também desencadear modificações substanciais no modo de vida da pessoa, seus projetos e aspirações, com um impacto emocional não desprezível  ao tomar consciência de ser portador de uma doença grave.

Isso acaba por fomentar um verdadeiro  Selling Sickness – em tradução adaptada significa “venda da doença e do adoecimento” – que  é sedimentado em dois pilares fundamentais: o apontamento de alterações, e posterior hipervalorização dessas variações como lesões patológicas com necessidade de atuação imediata  para o seu controle ou reversão.

Em uma sociedade massificada, que se passa ao longe da individualização e a racionalidade na assistência da saúde, muitos fatores  importantes são desconsiderados e,  por consequência, é efetuado rastreio em um grande número de pessoas saudáveis e assintomáticas. Minimiza-se repercussões deletérias que isso possa gerar, notadamente, as consequências advindas do Sobrediagnóstico e Sobretratamento, além do impacto psicológico gerado por um resultado falso-positivo, resultados limítrofes ou alterações inespecíficas de difícil interpretação, e, por conseguinte, necessidade de mais consultas e de diversas opiniões médicas. Isso acontece, principalmente, quando há patente  falta de conhecimento da história natural da doença, baixa acurácia dos exames de rastreamento e ausência de evidência do custo-efetividade do tratamento.

Sem dúvida que a lógica da prevenção precoce por meio de rastreamento é sempre algo atraente, pois é de se compreender que, por exemplo, quando é detectado um tumor, pela conjectura de malignidade e potencial ameaça de letalidade que ele carrega, almeja-se que seja removido o quanto antes, a fim de que não provoque danos mais severos. Contudo, pode existir um abismo que se assenta na ausência de conhecimento mais claro da progressão desses tumores, sendo que este fato poderia causar um  risco do indivíduo eventualmente  ser submetido à intervenções ou terapias potencialmente inapropriadas.

Com efeito, como as informações em saúde são numerosas, e nem sempre o próprio profissional consegue separar o joio do trigo – o que dirá o público leigo – é desculpável que, para muitos pacientes, psicologicamente seja mais confortável a adoção de uma  intervenção, ainda que o seu efeito seja supérfluo ou até mesmo prejudicial, do que simplesmente nada fazer.  A tentativa nesses casos, ilusoriamente, é justificável.

O problema se agrava, contudo, quando o profissional de saúde não busca orientar o paciente sobre todas as questões e incertezas acerca do rastreamento de determinada patologia, pois muitas vezes o conhecimento obtido pela pessoa vem de uma fonte de informação não necessariamente fidedigna. O compartilhamento de decisões, tema caro à Slow Medicine, e considerado um de seus pilares, parte de uma informação adequada, ponderada e isenta ao paciente  – e eventualmente de seus familiares. É frequente que o profissional de saúde, para não contrariar o seu paciente, e com a concepção errônea de que tal atitude poderia protegê-lo de se envolver em demandas jurídicas – baseadas na teoria da perda de uma chance, parta para o automatismo da solicitação de exames complementares desnecessários, não se refletindo sobre eventuais riscos associados à esta atitude. Frequentemente este comportamento presta-se mais  à satisfação  dos anseios do paciente, que tende à  confiar no primado da tecnologia, em detrimento da expertise do médico. Distancia-se, desta maneira, de um construto baseado em um diálogo esclarecedor, no qual se fundamenta a relação médico-paciente, e das técnicas propedêuticas e semiológicas, que permitem desenvolver o adequado raciocínio clinico, como propõe o Manifesto da Slow Medicine, perseguindo a ideia de uma  Medicina Sóbria, Respeitosa e Justa.

Ainda assim, caso instituídos tratamentos à achados ocasionais e incidentalomas, a pessoa poderia sofrer consequências dele advindas. Por mais seguras que sejam as técnicas médicas empregadas atualmente, todas guardam um risco potencial, que pode resultar em perda da qualidade de vida, ou mesmo consequências mais graves – configurando a possibilidade de iatrogenia. O que deveria trazer benefícios, acaba trazendo danos, custos e desperdícios.

Alinhando-se a esse entendimento, o Dr. Marco Bobbio, em seu livro ‘Medicina Demais‘,  muito bem pontuou que, apesar da evolução tecnológica, os exames disponíveis são ainda imprecisos, e os tratamentos não isentos de riscos de agravos à saúde. Por isso, o nosso sonho de descobrir precocemente uma doença choca-se com uma realidade menos encantadora. Em um mundo perfeito, os rastreamentos trariam somente benefícios, mas, no mundo real, o diagnóstico precoce está associado aos riscos bem conhecidos. Portanto, deveriam ser propostos programas de rastreamento que fornecessem informações corretas e que utilizassem com honestidade os dados atualmente disponíveis, para não criar falsas ilusões, nem para alimentar o mito de que é possível prevenir qualquer doença ou, ainda, para não levar as pessoas a acreditar em curas milagrosas.

Portanto, quando da possibilidade de identificação da doença, esperar-se-ia um tratamento apropriado, que pode incluir um fazer, ou deixar de fazer e que não tivesse apenas com foco na doença, mas centrado no paciente. Por sua vez, este deve ser visto de maneira holística, relacionando-se seu o histórico de vida, comportamento  e objetivos, para se chegar a uma tomada de decisão compartilhada. Esse é o direcionamento ideal, pois  pode conduzir a maior expectativa de vida com qualidade, além de reflexos favoráveis  à sustentabilidade do próprio Sistema de Saúde.

Ser prudente não é ser contrário. O Movimento Slow Medicine guarda uma postura crítica e cautelosa frente à quaisquer estratégias de medicalização da existência humana. Como afirma o Manifesto da Slow Medicine, quando busca uma Medicina Sóbria, “a divulgação e o uso de novos tratamentos de saúde e de novos procedimentos diagnósticos nem sempre são acompanhados de maiores benefícios aos pacientes. Interesses econômicos e razões de caráter cultural e social estimulam o consumo excessivo de serviços de saúde, aumentando demasiadamente as expectativas das pessoas, muito além da capacidade do sistema sanitário em atendê-las. (…) Uma medicina sóbria implica a capacidade de agir com moderação, de forma gradual e essencial. Utiliza de modo apropriado e sem desperdício os recursos disponíveis. A Slow Medicine reconhece que fazer mais não significa fazer melhor.”

As campanhas preventivas em saúde podem ser de suma importância quando racionalmente estudadas e aplicadas com foco no indivíduo, pois as estratégias populacionais carecem de evidências que as justifiquem, pelo menos até o presente momento. Portanto, devem ser norteadas por critérios ético-científicos antes de serem disseminadas, pois o que está fora da evidência deixa de ser ético.

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Lívia Abigail Callegari, nascida  em São Paulo. Advogada inscrita no Brasil e em Portugal, atua na área do Direito Médico. Especialista em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP e em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Atualmente é pesquisadora científica no Grupo de Pesquisa em Bioética, Direito e Medicina GBDM/USP. Ama estudar e transmitir o que aprende. Gosta de viajar e tomar contato com outras culturas. É apaixonada por artes em geral e livros, mas encontra na arte marcial e na dança o seu verdadeiro meio para a reconexão. Só faltou falar que ama felinos….

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