Por Ana Lucia Coradazzi:
A Oncologia está entre as áreas médicas que mais evoluiu nas últimas décadas. A compreensão da biologia do câncer, o aprimoramento das técnicas cirúrgicas e tratamentos radioterápicos, a descoberta de incontáveis medicamentos revolucionários e as novas estratégias (como a imunoterapia, por exemplo) transformaram o câncer numa doença crônica e, em um número cada vez maior de casos, curável. Não foi um processo fácil. O número de médicos, pesquisadores, indústrias farmacêuticas e recursos financeiros envolvidos tem sido imensurável, num esforço hercúleo para lidar com uma doença heterogênea, surpreendente e, principalmente, cruel. Mas nenhuma das partes envolvidas vivenciou mais de perto todo esse processo do que os pacientes oncológicos. Em sua luta para lidar com a doença, foram eles que se submeteram a todo tipo de tratamento agressivo, enquanto a comunidade científica avaliava criteriosamente sua eficácia (ou ausência dela) em cada situação. E não foram poucos os pacientes que receberam tratamentos dolorosos e mutilantes que se revelaram inúteis ou – pior – deletérios. O mais assustador, no entanto, vinha sendo a aparente irrefreabilidade das propostas terapêuticas, cada vez mais agressivas e, claro, muito mais caras. “Aparente” porque, em meio à empolgação generalizada a respeito de tantas novidades, têm começado a surgir o que eu chamaria de “focos slow” dentro da Oncologia. Tais focos são formados por médicos que fazem questão de manter o bem senso em sua prática diária e prezam a individualidade dos pacientes como algo sagrado.
O tratamento do câncer de mama é um exemplo perfeito para ilustrar esse ponto. Em primeiro lugar, por tratar-se de uma doença altamente prevalente, estando entre as principais causas de morte por câncer entre as mulheres. Isso faz com que haja um imenso interesse de todos em pesquisar novas estratégias de tratamento para a doença, inaugurando com frequência novas “eras” no que diz respeito ao tratamento oncológico (a abordagem multidisciplinar, hormonioterapia, terapia-alvo molecular, entre tantas outras). Em segundo lugar, porque ocorre quase que exclusivamente em mulheres, muitas delas jovens, o que causa uma comoção adicional para a busca por melhores estratégias. Assim, sendo uma área da Oncologia acostumada a romper barreiras e apontar novos rumos, não foi uma surpresa muito grande quando a Dra. Reshma Jagsi* subiu recentemente à tribuna da sessão plenária do maior evento científico em câncer de mama do mundo, em San Antonio (Texas), para falar do que qualquer médico já deveria saber desde seu primeiro ano da faculdade: “Em primeiro lugar, não lesar”. Em sua palestra brilhante, a médica da Universidade de Michigan lembrou a todos que não há sentido em utilizar a mesma estratégia para todas as mulheres com câncer de mama, numa época em que sabemos o quanto cada câncer difere do outro, e o quanto cada mulher é única em sua relação com a doença.
A história do tratamento do câncer de mama mostra uma trajetória permeada de grandes avanços científicos intercalados com o ajuste desses avanços à realidade das pacientes. Estratégias de descalonamento das terapias e da identificação de quais as pacientes que podem realmente se beneficiar de tratamentos tóxicos estão cada vez mais entre os objetivos principais no manejo da doença. A abordagem cirúrgica, por exemplo, inicialmente mutilante, com a retirada de toda a mama, musculatura torácica e até gradeado costal em todas as mulheres, hoje prioriza a conservação da mama, e até mesmo a retirada apenas do nódulo maligno, em alguns casos. O mesmo aconteceu com o esvaziamento cirúrgico da axila, com suas sequelas limitantes, hoje passível de ser evitado em muitos casos devido à identificação e análise do linfonodo sentinela. Até mesmo essas técnicas pouco invasivas e com baixo potencial de sequelas para as mulheres têm sido questionadas em alguns casos, como pacientes idosas ou quando há resposta excepcional à quimioterapia neoadjuvante. A radioterapia também tem sido modificada para evitar toxicidade desnecessária em muitos casos, utilizando-se o hipofracionamento, a irradiação parcial da mama ou até mesmo a omissão completa do tratamento.
O tratamento sistêmico com quimioterapia, talvez o mais temido (e sofrido) pelas mulheres, tem sido cada vez mais restrito a casos que realmente possam se beneficiar dele. Um bom exemplo disso é a utilização de testes genéticos, como o Oncotype-DX, para identificar quais as pacientes cujo risco de recidiva justifica o uso de tratamento tóxico. Outro ajuste cada vez mais frequente é o encurtamento do tempo ou redução das doses das drogas administradas de acordo com o risco de recidiva, como tem acontecido com as pacientes com tumores de mama her-2 positivo sem comprometimento dos linfonodos axilares, nas quais podemos omitir o uso de antraciclinas (e consequentemente evitar a toxicidade adicional associada a essas drogas). Estratégias como essas nos ajudam a oferecer o tratamento exato para cada paciente, nem mais e nem menos. Bem à luz dos princípios da Slow Medicine.
Apesar das muitas evidências consistentes confirmando que várias mulheres podem ser poupadas, com segurança, de tratamentos potencialmente tóxicos, há ainda um grande número delas que são submetidas a abordagens mais agressivas do que seria necessário para atingir um excelente resultado em termos de sobrevida e recorrência. As consequências de tais tratamentos costumam ser subvalorizadas pelos médicos, principalmente as de longo prazo. Linfedemas, transtornos de auto-imagem, depressão, fadiga, alterações cognitivas, cardiopatias, neoplasias secundárias à quimioterapia e até mesmo sequelas financeiras comumente não fazem parte das preocupações médicas e, em muitos casos, nem sequer chegam a ser abordadas como possibilidades para que a paciente possa tomar suas decisões. Mesmo após iniciativas globalmente divulgadas, como a Campanha Choosing Wisely, a adesão dos oncologistas ao descalonamento terapêutico mantém-se baixa. Os motivos são vários, passando pelo receio de processos judiciais por “não ter oferecido o melhor tratamento possível”, interesses financeiros e o período de tempo necessário (normalmente longo) para adoção de novas posturas na rotina assistencial. Mas nenhum fator é mais determinante da postura médica do que o psicológico. As más experiências com pacientes que tiveram recidivas, com todo o sofrimento que as acompanha, comumente levam os médicos a “pecar pelo excesso”, tranquilizando suas consciências. O mesmo acontece com as pacientes, cujo imenso temor de morrer (e principalmente de sofrer) por causa da doença resulta numa atitude algo desesperada, baseada na crença de que quanto mais tratamento, menores as chances da doença resistir.
Reconhecer o impacto dos aspectos psicológicos sobre as decisões acerca do tratamento a ser administrado é o primeiro passo para uma Oncologia de melhor qualidade, mais segura e com menos sofrimento desnecessário. O suporte psicológico às pacientes passa a ser importante desde o processo decisório. Nesse processo transformador, o papel do oncologista é central: a forma como as informações são discutidas com as pacientes pode determinar suas decisões. A extensa literatura a respeito do descalonamento terapêutico em câncer de mama é uma ferramenta essencial para que o oncologista seja capaz de auxiliar sua paciente não apenas a se ver livre da doença, mas a evitar limitações físicas e emocionais desnecessárias. Um oncologista “slow”, cuja segurança e respeito pela autonomia da paciente sejam os aspectos determinantes da relação médico-paciente, pode aumentar significativamente as possibilidades de que ela venha a ter uma vida livre de sequelas, plena e feliz.
Assistindo à fala da Dra. Reshma, era impossível não pensar na velha máxima de que a Medicina é uma arte. Lembrei de ter lido, em algum lugar, que durante o processo criativo de um quadro ou escultura, alguns grandes pintores fazem pausas estratégicas, durante as quais se afastam da obra, dando um passo atrás para poder observá-la com maior clareza, sem o impacto emocional do ato de pintar. Esse “passo atrás” permite que o artista veja sua obra de outro ângulo, identifique possíveis exageros ou falhas e os corrija a tempo, antes de arruinar completamente uma obra-prima. Talvez seja exatamente dessa forma que nós, oncologistas, nos tornemos mais capazes de oferecer o tratamento correto para nossas pacientes, protegendo-as dos riscos da doença ao mesmo tempo que as protegemos dos riscos do tratamento. Basta darmos um passo atrás.
*a Dra. Reshma Jagsi é médica do Departamento de Radioterapia e do Centro para Bioética e Ciências Sociais em Medicina na na Universidade de Michigan.
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Ana Lucia Coradazzi: Nascida na cidade de São Paulo, mora em Jaú, no interior, há muitos anos, com o marido e suas duas filhas. Oncologista clínica com titulação pela Sociedade Brasileira de Cancerologia, é especialista em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium, na Argentina. Atualmente atua como oncologista no consultório e na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Também integra a equipe de Cuidados Avançados de Suporte e Medicina Integrativa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em SP. Apaixonada por livros (e escritora nas horas vagas), procura reservar um tempo para correr, buscando manter o corpo saudável e a mente tranquila. É autora do livro No Final do Corredor e edita o blog homônimo. Recentemente publicou outro livro, escrito em colaboração com o Dr. Ricardo Caponero: Pancadas na Cabeça.
Excelente artigo, Ana Lúcia. Parabéns!