Por Ana Lucia Coradazzi:
Nosso primeiro post de 2019 inaugura uma nova categoria em nosso site: casos clínicos. Depois de uma experiência bem sucedida no Facebook, viemos a acreditar que a exposição de casos clínicos pode mostrar a utilização das ferramentas obtidas através dos princípios da Slow Medicine na prática cotidiana. Nossa colaboradora Ana Lucia Coradazzi, oncologista e paliativista, abraçou esta tarefa com o talento e a sensibilidade que lhe é peculiar. Contrapondo uma visão ‘fast’ com uma visão ‘slow’, ela disseca, de maneira didática e objetiva, situações clínicas onde um olhar sem pressa faz toda a diferença.
A VERSÃO FAST:
POJ, 28 anos, sexo feminino, agenda consulta médica devido falta de apetite, febre e diarreia nos últimos 15 dias. Sem doenças pré-existentes conhecidas, e sem uso atual de medicações. Ao exame físico estava em bom estado geral, PA = 110 X 70 mmHg, FC = 98 bpm, Tº = 37,7ºC, pulmões livres, abdome sem alterações. O médico solicita hemograma, função renal e hepática, eletrólitos, RX tórax, coprocultura e US abdome. Explica à paciente que provavelmente se trata de uma infecção intestinal e prescreve metronidazol por 7 dias. A paciente retorna em 10 dias, com alguma melhora da diarreia, sem febre. Os exames mostram linfopenia (420 linfócitos/mm3) e discreta anemia (Hb = 10,3 g/dl), sem outras alterações. O médico a encaminha a um hematologista, que a consulta cerca de 15 dias depois. POJ chega à consulta com piora da diarreia e febre (38,8ºC), associada a sudorese noturna. É hospitalizada para investigação, iniciando-se antibioticoterapia de amplo espectro. Os novos exames revelam piora da linfopenia (230/mm3) e da anemia (Hb = 9,7 g/dl). É colhida biopsia de medula óssea, a qual não demonstra sinais de comprometimento por neoplasia hematológica. Tomografias de tórax e abdome revelam aumento do número de linfonodos abdominais e mediastinais, sem aumento significativo do seu tamanho. POJ apresenta melhora da febre com a introdução da antibioticoterapia. No quinto dia de internação, o médico tem acesso ao resultado dos exames sorológicos, que revelam positividade para HIV. POJ é então encaminhada para um infectologista para iniciar o tratamento.
A VERSÃO SLOW:
POJ, 28 anos, sexo feminino, agenda consulta médica devido falta de apetite, febre e diarreia nos últimos 15 dias. Sem doenças pré-existentes conhecidas, e sem uso atual de medicações. Ao exame físico estava em bom estado geral, PA = 110 X 70 mmHg, FC = 98 bpm, Tº = 37,7ºC, pulmões livres, abdome sem alterações. Durante a consulta, o médico pergunta sobre sua rotina diária e estrutura familiar. POJ explica que estava separada do marido há cerca de um ano e que vivia com a filha de quatro anos, de quem cuidava com a ajuda da mãe. Tinha relacionamentos amorosos eventuais desde a separação, mas atualmente estava sozinha. Ao ser questionada se costuma se proteger quando tem relações sexuais com seus parceiros, POJ explica que nem sempre. O médico então pergunta se há alguma possibilidade de ter se relacionado com alguém portador de AIDS, mas ela não sabe dizer. Ele então explica que, embora possa se tratar apenas de uma infecção intestinal simples, o quadro clínico arrastado o deixara preocupado, e ele gostaria de pedir alguns exames, entre eles sorologia para HIV. Ela concorda, faz os exames no dia seguinte e retorna em alguns dias para saber o resultado, que mostra linfopenia, anemia e infecção por HIV. POJ é então encaminhada para um infectologista para iniciar o tratamento.
FAST & SLOW:
É comum que o conceito de Slow Medicine seja confundido com uma medicina lenta, na qual os diagnósticos demoram mais a ser feitos e os tratamentos são postergados. Também é comum a ideia de que é necessário um longo tempo de consulta médica. Não é. Como mostrado no caso acima, uma avaliação médica mais criteriosa, atenta a detalhes (como o tempo de evolução do quadro e a história de vida da paciente, e não apenas os sintomas em si) é capaz de antecipar diagnósticos importantes como uma infecção por HIV, além de evitar procedimentos desnecessários, como a ultrassonografia, as tomografias ou a biopsia de medula óssea. O tempo um pouco maior dedicado à consulta é compensado, com frequência, pelo menor tempo gasto na solicitação de exames desnecessários ou na compilação de receitas ou pedidos de internação. Trata-se de utilizar o conhecimento médico como norteador principal da avaliação, inserindo os sinais e sintomas do paciente num contexto maior. Essa postura aumenta a acurácia do diagnóstico, economiza tempo e, de quebra, resulta numa relação médico-paciente muito mais gratificante.
Muito bom!! Importante termos exemplos de casos para consolidar os conceitos da Slow Medicine na prática clínica. Excelente! Parabéns.