Como nossos pacientes

janeiro 14, 2023
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Por Ana Carolina Eiris Pimentel

“O meu coração já estava aposentado, sem nenhuma ilusão tinha sido maltratado, tudo se transformou, agora você chegou…” (Marisa Monte)

Quando comecei na faculdade Enfermagem uma das primeiras disciplinas que tive foi Ciências Humanas e Sociais da Saúde. Para alguém que chega bem cru e jovem, é difícil entender o motivo de um curso focado em salvar vidas pensar em ensinar sobre as ciências humanas. Na verdade é óbvio, porém só se entende isso de fato quando se entra em contato com os pacientes. Tem relação mais poderosa e modificadora que essa? Existem muitas, relação mãe e filho, pai e filho, casais, avós e netos, irmãos e amigos, todas com sentimentos intensos, mas sempre baseadas no conhecimento profundo de suas realidades e personalidades. Já com o paciente atravessamos um eu desconhecido sem pedir licença, e quando menos nos damos conta estamos dando banho em alguém que conhecemos ontem.

Isso obriga você (profissional) e eles (paciente e sua família) a se conhecerem, e nessa relação interpessoal não tem jeito… todos saem com marcas. Mas será que nós, profissionais, estamos preparados para reconhecer nossas marcas e aprender com elas?

Peço então licença aos leitores e os convido a uma viagem por memórias, mais especificamente pelas minhas. Imaginem a seguinte cena: uma mulher jovem recém formada em enfermagem, usando uma touca branca, óculos de grau, máscara e um pijama azul maior que ela. Cheia de sonhos, com um olhar preciso e sincero, sentada escrevendo sobre os sinais vitais do seu paciente, que está bem à sua frente, acomodado no leito, sedado e sob ventilação mecânica, com o corpo e alma totalmente entregues aos cuidados da equipe multiprofissional.

Nesse momento ele recebe a visita da sua esposa, que se aproxima do seu rosto, dá boa tarde, beija sua testa de forma gentil e emocionada e fala: “oi meu amor, estou aqui, e hoje eu trouxe algo que você gosta muito” e nisso ela tira da bolsa o seu celular e põe para tocar a música Ainda bem da Marisa Monte.

A mulher atrás da bancada se levanta no exato momento que a música começa a tocar, e percebe que aquela música é a mesma que sua mãe tem como toque no celular quando seu pai liga. E ali ela volta a ser menina e sente uma emoção tão forte que a faz levantar e se afastar daquela cena. Mas, por um instante, ela para e pensa, de forma muito rápida: Por que evitar isso? Por que fugir desse sentimento? Sem resposta para essas perguntas, ela então permite que a música atravesse seu coração e a faça perceber que aquele casal, naquela situação delicada, a fez pensar que ali, em seus lugares, poderiam ser os seus pais.

Com esse breve, porém profundo relato venho trazer para nós, profissionais da saúde, o impacto das nossas memórias afetivas na nossa lida diária. Quando deixamos os pacientes nos mostrarem a vida tal qual como ela é, percebemos que na verdade não existe divisão entre nós, os pacientes e a família: o que existe são pessoas. Pessoas com histórias, experiências, famílias, memórias, sentimentos, vivências, crenças.

Não há como pensar que durante nosso trabalho, seja em atenção básica, consultórios, home care, hospitais, ruas, presídios, as histórias dos pacientes e a nossa relação com eles não nos tragam afetos. E quando falo em afeto não me refiro especificamente a sentimento e sim ao verbo “afetar”, que se refere aos momentos nos quais algum acontecimento ou alguém nos marca e nos leva a uma (ou várias) auto-percepções. São momentos que nos fazem refletir e até agir sobre o que esse afeto veio nos ensinar, unindo-se com o que já conhecemos e com isso criando um novo olhar sobre nós – e até sobre a vida.

Quando você se depara com uma mãe de 46 anos (que podia ser a sua, inclusive) internada aguardando por uma cirurgia cardíaca, chorando porque a filha não quer ir mais à escola porque sente sua falta e não a vê há mais de 15 dias, e você tem apenas 26 anos e não tem filhos: o que dizer? Ou quando você escuta uma senhora de 65 anos que nega o transplante cardíaco porque depois da perda do filho sua vida não faz mais sentido, e ela diz “dói respirar”, com os olhos perdendo o brilho, e você ali, em plena vivacidade. Ou quando se cuida de uma jovem com a mesma idade que a sua e ela interna para interromper sua primeira gestação devido a uma pré-eclâmpsia? (e você pensando em ter filhos um dia…).

E então pergunto… quando então essas realidades se chocam? É possível sair dessas relações como a mesma pessoa? É possível não se afetar? Podemos melhorar nossos hábitos alimentares, nossas relações com os familiares, dar mais dicas sobre saúde e bem-estar ou até mesmo ignorar e nos afastar, mas quando de fato permitimos que essas histórias atravessem nossos corações e nos obriguem a aceitar que somos todos iguais… algo muda. Uma chave vira, e sua assistência ganha um outro valor. Você fica mais atento, presente, abraça melhor a causa e de fato fica mais slow, inclusive com você.

Eu sei que muitas vezes nos distanciamos pensando em proteger nossa saúde mental e emocional pelo medo de nos envolvermos demais e isso interferir a ponto de não nos sentirmos bem para ofertar uma assistência de qualidade. Mas se afastar não é a saída, pelo contrário: é sobre se aproximar cada vez mais, com a sabedoria de entender que o paciente tem muito a ensinar. Essa aproximação relacional é o que faz a diferença, pois nesse ato se valida o sentimento do próximo e você se sente mais preparado e capaz de ajudar sem se apropriar da realidade alheia. Isso se chama compaixão.

O paciente pode não saber sobre o mecanismo de ação da sua medicação ou sobre como o seu nó átrio ventricular não está conduzindo bem seus batimentos cardíacos. Mas ele sabe muito sobre a vida, e principalmente a dele. Só ele sabe como seu corpo responde, o que o deixa mais confortável no leito, o que ele faz no dia a dia e como ele se sente, só ele sabe da sua dor. Ele pode até não saber como explicar ou como se portar, por vários motivos, mas quando nós damos espaço o seu corpo fala mais que mil palavras.

Isso me fez entender de fato sobre o que é a medicina narrativa (estão vendo, mais uma coisa que os pacientes me ensinaram). Ela vai além da nossa escrita técnica e da fala do paciente durante a anamnese, ela é nada mais nada menos que a corporalidade. E quando digo isso não me refiro apenas à linguagem não verbal, mas às relações interpessoais e aquilo que não é palpável, apenas é sentido. Falo sobre os aprendizados humanos, e você ouvir e se deixar tocar por aquela história, e permitir que o paciente fale além da sua doença. E ele conta da sua história de vida, sobre o que sofreu, foi feliz, aprendeu, faz, ou não faz, sobre os amores, decepções… E você ao estar presente nessa escuta se deixa sentir e entende que a vivência dessa pessoa pode te ensinar algo a ponto de mudar a sua vida.

Não tem como discutir isso e não pensar em arte, pois a arte é a maneira sensível de transmitir aquilo que ninguém entende, simplesmente se sabe. E nisso me lembro de uma reportagem do Fantástico, que vi ainda criança, que mostrava que algumas pessoas, devido a uma condição genética rara, não apenas ouviam a música como também a viam. As notas apareciam no céu como fitas coloridas no ritmo do som e ali a pessoa tinha uma experiência multidimensional da música. Como ver algo invisível? Penso.

A medicina narrativa é isso, é ver o ser humano e suas relações como uma plena arte, creio que não há forma melhor de representá-los. Arte essa que pode ser a música, escultura, pintura, poema, poesia, filmes, séries, peças, dança e tudo que fará você ter a memória afetiva do seu cuidado e recordar sobre o que te marcou. Inclusive o conceito de memória afetiva aprendi com uma grande professora de literatura que me ensinou do jeito mais sensível possível através de tetos e aulas sinestésicas que os sentidos além de se misturarem estimulam nossas lembranças e nos fazem vive-las novamente. Tudo a ver né?

Quantas vezes você não se pegou, pós plantão lembrando de um caso que marcou você naquelas últimas 12 ou 24 horas? Às vezes o som da bomba infusora lhe fez lembrar, ou o cálculo específico de uma medicação, o toque da mão do paciente na sua ou outra história sobre outro cuidado… a mente nos prega essas peças. Marcel Proust, grande escritor francês e criador do conceito clássico de memória, em seu livro “Em busca do tempo perdido” deixa bem claro que a memória não tem tempo, nem espaço e nem forma, hoje ele talvez até diria que é um multiverso (rs), mas ela pode ser acionada por qualquer estímulo e estar em qualquer tempo, seja ele passado, presente ou até futuro.

Drauzio Varela em sua entrevista recente com Pedro Bial para divulgar seu novo livro “O exercício da Incerteza – Memórias”, disse que não compartilha com seus familiares suas experiências por eles não serem da área da saúde, sendo assim não irão compreender. De fato, concordo com ele que não irão entender, mas será que não é válido contar o que se aprendeu com essas memórias? Compreendi isso na terapia quando comentei que não me sentia à vontade em compartilhar as histórias dos meus pacientes, como a que contei acima, com a minha família, por serem muitas, em sua maioria fortes e até tristes. E nisso ela me surpreendeu e me disse: por que não compartilhar com eles que o que eles a ensinaram agora tem sido enriquecido com a sua visão de mundo?

Aprendi então que a medicina narrativa é sobre aprendizados, e seu tripé é a memória, arte e o cuidado, e o paciente e o profissional como sua grande base. Somos indivíduos já formados, com personalidades e crenças já pré-estipulados, mas estamos em constante mudança. Quando dizem perto de mim que ninguém muda, minha mente se agita, por que a mudança está em cada um nós e somos nós que permitimos sentir, entender, filtrar e assim mudar. Já dizia Raul: “prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.

Então o que muda as pessoas? A arte. E não tem mais nada que exemplifique melhor a arte que a vida. Não é à toa que se questionam até hoje “a vida imita a arte ou a arte imita a vida?” Eu ainda não sei responder a essa pergunta (e na verdade acho que nunca saberei, assim espero), mas de algo posso me atrever a dizer pedindo licença a Belchior e pegando um trecho de sua música “como nossos pais”, cantada por Elis Regina, numa época de extrema repressão política quando ele clamava por renovação: “Minha dor é perceber que apesar de termos feito tudo o que fizemos ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”.

De fato, somos todos iguais, mesmo com todas as diversidades, mas a mudança é necessária e depende de cada um de nós. Que nós profissionais da saúde saibamos deixar as memórias tomarem conta do nosso corpo e então contestarem nossas ações e sempre buscar a renovação e novos aprendizados através dos nossos cuidados e relações, até porque somos como nossos pacientes. Humanos.


Ana Carolina Eiris Pimentel: Enfermeira graduada pela Universidade Federal Fluminense, residente do Programa Cardiovascular da Universidade Estadual Rio de Janeiro vinculada ao Hospital Universitário Pedro Ernesto, admiradora do movimento slow e eterna aluna apaixonada pelo cuidado.

Imagem: Autoria de Ana Carolina Eiris Pimentel

Referências

Rohrig, M. Memória e fantasia em O tempo recuperado, de Marcel Proust. Nau literária: crítica e teoria de literaturas. Porto Alegre, 2014.

HC FMUSP. Escola de Educação Permanente. A importância da inteligência emocional para os profissionais da saúde. São Paulo, 2019.

Schimith, M.D. et al. Relações entre profissionais de saúde e usuários durante as práticas em saúde. Trab Educ Saúde, Rio de Janeiro, 2012.

Grossman, E. e Cardoso, M.H.C.A. As narrativas em medicina: contribuições à prática clinica e ao ensino médico. Revista brasileira de educação médica, Rio de Janeiro, 2006

Ministério da Saúde. Rede Humaniza SUS. Medicina Narrativa. Brasília, 2012.

Rolnik S. A hora da icropolítica. Laboratório de sensibilidades. Goethe-Institut Brasilien. 2015

Cartografia ou de como pensar com o corpo vibrátil- Trechos de Suely Rolnik: Cartografia Sentimental, Transformações contemporâneas do desejo. Editora Estação Liberdade, São Paulo, 1989.

Couto, C.R.O. Ora direis, ouvir histórias! Sobre os fundamentos da Medicina Narrativa. Slow Medicine Brasil, 2022.

Neves, A.C. Medicina narrativa- Horing the stories of illness. Slow medicine Brasil. 2016.

Constelação clínica. Como nossos pais: análise da música de Belchior. 2020.

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Zé biriguidé
Zé biriguidé
1 ano atrás

vish, mina braba

Zé biriguidé
Zé biriguidé
1 ano atrás

vish, mina braba. Texto me levou a refletir que vida é uma “caixinha de surpresa”. Posso discordar sobre o conceito de “arte” que consiste em mudar as pessoas, mas cada um tem a sua visão sobre mundo que vive. Na Educação Física, precisamos ressignificar o cuidado que temos com os nossos alunos e pacientes, levando mais afeto e carinho para aqueles que precisam. Texto muito explicativo e narrativo.

Jorge Desjardins
Jorge Desjardins
1 ano atrás

Fiz transplante cardiaco e sei da importância do entorno . Sou medico e vivenciei muitas hidtorias de vida e tenho certeza que se não formos humanos , na essência da palavra, o tto não é abrangente. Belo e gratificante texto. Parabéns.

Aracy Balbani
Aracy Balbani
1 ano atrás

Parabéns, Ana Carolina. Bom ler seu texto e encontrar alguém que se ocupa de buscar ver o que os outros não enxergam. Felicidades.

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