Por Regis Vieira, Carla Couto e Suzana Vieira:
“Não chores , meu filho, não chores.
Pois a vida é luta renhida.
Viver é lutar que aos fracos abate, aos fortes e bravos
só faz exaltar.”
Gonçalves Dias
A Pandemia de COVID-19 chegou ao Brasil e a muitos outros países através das classes mais privilegiadas do ponto de vista socioeconômico. Os primeiros pacientes eram pessoas com poder aquisitivo ou ocupações que lhe permitiam viajar com frequência para o exterior. Notou-se que os primeiros leitos a serem ocupados foram quase que exclusivamente na rede privada de saúde, bastante expandida e consolidada na mais rica região do país: o Sudeste. Este segmento da população, apesar de numericamente menor, é também a classe que influencia o pensamento coletivo, e por consequência as representações sociais da população brasileira, acerca de saúde e sua atenção.
Cabe então refletirmos o que é o SUS – Sistema Único de Saúde, para este segmento populacional. Em algum momento de suas vidas, as primeiras vítimas brasileiras pararam para pensar no sistema de saúde? É possível que a resposta seja não. Boa parte não se sente usuária do SUS, ainda que saibamos que em determinadas circunstâncias, todos nós o temos como única porta de entrada para atenção integral, este que é o maior sistema público de saúde do mundo.
O nascimento do SUS, em 1988, no bojo de uma nova Constituição, foi precedido por décadas de movimentos sociais e políticos, acelerados a partir da década de setenta, em plena ditadura militar, do qual faziam parte as universidades públicas, sindicalistas, profissionais de saúde, gestores e políticos majoritariamente alinhados no espectro político da esquerda. A VIII Conferência de Saúde, em 1986, conseguiu aglutinar e congregar ideais e pessoas, que desenharam ali o arcabouço legal do que viria a ser o SUS, com seus princípios: “saúde como direito de todos e dever do Estado”. A ideia era superar os modelos privatistas de saúde, e a forte influência da Previdência Social que historicamente marcou o país, confundindo o direito à saúde com assistencialismo aos mais pobres ou cobertura dos trabalhadores registrados. Essa ideia ainda está presente no Brasil, tendemos a ver o SUS como um sistema mínimo, de baixos recursos, para quem não tem condições de ter plano de saúde privado. Estudos continuam mostrando que um dos sonhos das classes de menor poder aquisitivo é possuir um plano de saúde privado.
Diferente de outros países, como Reino Unido ou Canadá, onde optar por um modelo universal de saúde foi uma escolha refletida pelo coletivo da nação e bancada pelo Estado, a estruturação do SUS veio do Movimento da Reforma Sanitária, estimulado por eventos mundiais como a Conferência de Alma Ata (1978), num momento politicamente favorável e não exatamente de um clamor popular que se possa dizer homogêneo. Pensado para ser, como dizia Sérgio Arouca, principal líder do Movimento da Reforma Sanitária, um sistema de saúde para TODOS, como um mecanismo de inclusão social e cidadania, considerando todos os determinantes sociais de saúde, conceito que ainda hoje tem dificuldades de ser compreendido e aceito. Desde sua origem tem graves dificuldades de financiamento e gestão, apesar do esforço de boas equipes que estiveram no Ministério da Saúde, com criação de normas operacionais (as famosas NOBs e NOAs) e mecanismos de acompanhamento local, com alto grau de detalhamento, com repasses financeiros correspondentes, garantidos, ainda que escassos. Ao longo desses trintas anos, tivemos momentos de glória e momentos de enormes dificuldades. O modelo hierárquico descentralizado de gestão, que optou pela progressiva municipalização da saúde, encontrou dificuldades. A maior delas talvez tenha sido a desigualdade regional, que fez com que pequenos municípios não conseguissem aplicar as normas de maneira integral. E por outro lado, ao mesmo tempo, fez com que as grandes e ricas capitais tenham sido as últimas a levar o SUS até a porta das comunidades, via Rede de Atenção Primária a Saúde (APS). Nas regiões mais ricas do país, quase a metade da população conta com redes privadas de atenção, enquanto nas mais remotas e pobres, ainda há carência total das equipes básicas de saúde.
Um momento de glória em relação a esse cenário, é 2002. A NOAS (Norma Operacional de Assistência à Saúde) 2002 fortalece a regionalização, a descentralização de recursos e responsabilidades, revisa critérios de habilitação dos municípios, impulsiona a colaboração entre micro e macrorregiões de saúde. Em 2006, outro momento de glória: os PACTOS pela saúde, pela vida e em defesa do SUS. Boa parte das energias desses movimentos era direcionada a alcançar um financiamento mínimo e seguro para o sistema, através da regulamentação da Emenda Constitucional 29 pelo Congresso Nacional, que garantiria a contrapartida federal para manter e aprimorar o SUS. Esta garantia nunca veio e este fato nos afasta de modelos implantados em outros países, onde o financiamento é essencialmente público.
Ao longo da primeira década do século XXI, foi estruturada e consolidada a rede básica de saúde no país, instrumento que construiu nossa capacidade de enfrentamento da Pandemia pelo Novo Coronavírus, Neste período houve uma impressionante expansão da Rede Básica de Saúde, com implantação de equipes completas da Estratégia de Saúde da Família em todo o país (35 mil equipes), até então dispersas, tendendo a concentrar-se em regiões com maior tradição neste modelo. A expansão foi suficiente para que a população compreendesse esse novo modelo, amparado na promoção da saúde e prevenção, direcionado a atenção próxima e pessoal de condições crônicas prevalentes? Parcialmente, talvez seja a melhor resposta. Em algumas regiões, a baixa qualidade da assistência, a carência de recursos estruturais e de equipamentos, a ausência ou rotatividade de profissionais, comprometeu o reconhecimento desta estratégia como um passo muito importante no que tange ao acesso universal à saúde.
Cabe lembrar que nesses 32 anos de existência, o SUS tornou-se exemplo de eficiência e qualidade em várias áreas, como imunização, vigilância em saúde, pesquisas de ponta, atenção às DSTs/AIDS, serviços de alta tecnologia como transplantes, organização da rede de saúde mental (CAPS, NAPS), implantação de serviços de Práticas Integrativas e Corporais, entre outros. A implantação das unidades de emergência (UPAS) em grande escala e a estruturação do SAMU foram outros dois grandes momentos de glória. Ambos conectados a APS fariam girar a contento as Redes de Atenção Integral à Saúde (RAIS), evitando o que ainda acontece: pessoas perdidas entre os serviços, sem voz, acesso e orientação.
Alguns eventos contribuíram para a visibilidade do SUS, em especial a Atenção Básica a Saúde. Um deles foi sem dúvida, a implantação do Programa Mais Médicos, em 2013, que, cercado de polêmicas e debates (pela primeira vez a classe médica organizada defendeu seus postos nas Unidades Básicas de Saúde, até então desprezados pela baixa remuneração) colocou em ação, mais de 18.000 médicos, em sua maioria estrangeiros, entre eles um grande número de cubanos, em postos de trabalho em 4.048 municípios e 34 distritos indígenas. Em 2016, 29% desse contingente era de médicos brasileiros. Segundo aquele velho ditado “há males que vêm para bem”, desde então a população brasileira não dispensa uma equipe de saúde perto de sua casa, e nossos estudantes de Medicina passaram a considerar este posto um lugar digno para se exercer a prática médica. Algo que em países com forte APS, já é consenso há pelo menos quarenta anos.
No entanto nos últimos 4 anos, o modelo de atenção à saúde da família vem sendo flexibilizado, através de portarias e decretos, que vão contra a integralidade da atenção, com redução de equipes básicas e desprestígio dos Agentes Comunitários de Saúde (ACSs). As mesmas figuras que hoje seriam vitais no enfrentando à Pandemia, pelo potencial educativo e promotor de saúde em suas comunidades. Temos ouvido de políticos e gestores influentes discursos que colocam em dúvida a universalidade do SUS. Apesar dos grandes avanços, o sistema permanece ainda bastante voltado para eventos agudos e pontuais, com capacidade ainda insuficiente de controle dos agravos crônicos, cuja descompensação é responsável por 70% dos motivos de buscas por serviços de emergência. Os esforços de qualificação das equipes e principalmente da gestão do SUS ainda são insuficientes. Esse panorama agrava o que vemos hoje, quando é elevada a necessidade de leitos de UTI. Quanto mais estável é o sistema nesse sentido, menor o desafio.
O SUS e a Epidemia pelo COVID 19
Se o colapso da saúde existir nessa pandemia, o SUS não será poupado. Talvez ele seja o primeiro a ser atingido e não poderia ser diferente diante de tantos anos de enfraquecimento decorrente do subfinanciamento dos serviços públicos. Para que qualquer sistema de saúde forte, é necessário nutri-lo adequadamente ao longo do tempo. Um grande baque no financiamento do SUS veio pela adoção da Emenda Constitucional em 2016, que limita o gasto federal com despesas com serviços públicos. Estima-se que essa emenda fez o SUS perder R$ 13,5 bilhões de reais no ano passado.
Paralelamente, observa-se nos últimos anos a chegada de milhões de novos usuários ao sistema público de saúde que perderam seus empregos, seu poder aquisitivo e seus planos de saúde privados. A pressão no sistema de saúde público já era intensa, agora está prestes a explodir. Para aliviar o SUS, além de uma injeção de recursos associada a uma boa gestão deles, é preciso uma ampla disponibilidade para fortalecimento de políticas intersetoriais. Como podemos falar de saúde sem falar de garantia de renda, de acesso a necessidades básicas como alimentação, saneamento básico, de segurança e de tantas outras coisas necessárias para a boa saúde física e mental do indivíduo e de toda uma sociedade? Como pode, em pleno século XXI, o coronavírus chegar ao brasil como uma nova praga sobre antigas que já deveriam estar erradicadas, como é o caso da dengue?
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“A história do SUS é de batalhas, de luta cotidiana. Nas suas letras frias que durante anos buscam por ecos no Brasil profundo, no grito dos seus cofres vazios, no calor da sua incompletude, na falta, no amor à causa, na parte que mais nos humaniza em meio às intolerâncias, na equidade muito mais que apenas igualdade, na utopia que continua no horizonte. Sem ele hoje, como disse Gonçalo Vecina Neto, “seria a barbárie”.
Os princípios do SUS se encontram, de forma profunda, com os pilares do movimento Slow Medicine. Saúde universal, integral, justa com base na equidade, racional, respeitosa com a diversidade de pessoas e problemas, considerando as práticas integrativas, o direito de expressão na vida, na doença e diante da morte. Estes valores estão enraizados nas pessoas que corajosamente estão na linha de frente dos serviços públicos hoje. É preciso ainda confiar no princípio que menos se desenvolveu no SUS: a participação e o controle social. Poucos brasileiros reconhecem seu papel diante do SUS, que deve ser mais participativo nos conselhos de saúde locais e regionais, vendo a saúde de sua família como direito seu, não uma benesse do Estado.
A Slow Medicine pressupõe um tripé à medicina: sóbria, respeitosa e justa. Esta última muitas vezes esquecida, reverencia um sistema de saúde que ousa ser capaz de enfrentar uma pandemia, num país continental e desigual, trazendo alento a milhões de pessoas. Lutar por ele neste momento de dor e perda, pode significar mais uma etapa de fortalecimento e reconhecimento do sistema.
O SUS é uma construção permanente de uma sociedade que se propõe a cuidar dos seus. O SUS não se preocupa em ser visto, é a segurança, é a voz silenciosa da esperança, é o simples “estou aqui”, é o “vamos juntos”. Em períodos como este em que se sabe muito pouco acerca do inimigo, é reconfortante reconhecer que temos uma estrutura que pode um dia ser tão sólida quanto foi sonhada desde o movimento sanitarista. Como dizia Sérgio Arouca, “temos que discutir a saúde, não como uma política do Ministério da Saúde, mas como uma função de Estado permanente.”
Um outro aspecto a considerar, são as várias tratativas em curso na Pandemia, entre setor público e privado. Talvez o modelo de pagamentos de serviços seja revisto, como foi em outros países, e possamos um dia trabalhar por contratos globais, com metas, qualidade e prioridades definidas pela necessidade da população. A própria remuneração por procedimentos (que paga por amputação de pés diabéticos, mas não consegue dar atenção integral a pessoa diabética), dentro do SUS, já é sabidamente um modelo ultrapassado e insuficiente, e até o momento o país não teve motivação para discutí-lo. A necessidade trágica de agora, pode resultar em aprimoramento dessa relação. Estaremos assim um pouco mais a salvo das armadilhas da globalização tecnológica.
A pandemia coloca luz ao que estava escondido, a quem trabalha no silêncio. Estamos vivendo momentos em que as redes sociais reconhecem cientistas, debatem artigos científicos, assistem “lives” de pesquisadores. Reclamávamos que discutíamos apenas amenidades no Brasil , como futebol e carnaval. Agora assistimos ao debate sobre as melhores escolhas em meio a Infodemia. Assistindo ou fazendo parte da atenção às vítimas do COVID-19, percebemos o valor das grandes e pequenas coisas da vida, entre elas, o valor do SUS. Uma imensa construção, da qual precisamos participar mais.
Temos certeza que mais cedo ou mais tarde tudo vai passar, a COVID 19 entrará para a história, voltaremos às ruas. As preocupações diárias voltarão a ordem do dia, os ruídos dos ônibus, cafés e praças voltarão à sua rotina. Não podemos esquecer de quem nos sustentou, de quem lutou por nós: os profissionais e gestores que constroem o Sistema Único de Saúde, que assumiu a difícil e bela missão de não deixar ninguém para trás. É preciso coragem para continuar a escrever essa história.”
A batalha sanitária é uma questão suprapartidária, nenhuma pessoa, instituição, partido, agrupamento, categoria ou entidade enfrenta sozinha essa luta.
Sérgio Arouca, discurso de abertura da 8ª Conferência Nacional de Saúde. 1986.
Autores:
Regis Vieira, sou mineiro de Aiuruoca, médico de família e defensor aguerrido da atenção primária em saúde. Sou colaborador do Movimento Slow Medicine Brasil desde seus primórdios.
Carla Rosane Ouriques Couto: sou médica formada pela UFSM em 1985 e especialista em Pediatria, Medicina de Família, Saúde Pública, Saúde do Trabalhador, Gestão de UBSs, Educação Médica e Terapia de Família. Vivi 35 anos nos mais diversos cenários e atividades pelo país. Sem dúvida, os mais difíceis, porém certamente gloriosos, foram os 27 na assistência, gestão e docência nas fileiras do SUS. Vai além da Medicina, é militância pela vida.
Suzana Vieira: sou endocrinologista, à universidade pública e ao SUS devo minha formação médica e pós-graduação. Dos pouco mais de 20 anos de formada, a maior parte deles estive ligada a algum serviço público. Participei do controle social na minha unidade de saúde em 2018 como representante dos trabalhadores no Conselho Gestor. Atuo como endocrinologista no SUS e tenho grande esperança que ele saia fortalecido e bem lembrado após a passagem da crise do coronavírus.
Referências:
1 PAES-SOUSA, Romulo; SCHRAMM, Joyce Mendes de Andrade; MENDES, Luiz Villarinho Pereira. Fiscal austerity and the health sector: the cost of adjustments.Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro , v. 24, n. 12, p. 4375-4384, dez. 2019 .
2 FUNCIA, Francisco Rózsa. Subfinanciamento e orçamento federal do SUS: referências preliminares para a alocação adicional de recursos. Ciênc. saúde coletiva, Rio de Janeiro , v. 24, n. 12, p. 4405-4415, dez. 2019 .
3.Brasil. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Legislação Estruturante do SUS / Conselho Nacional de Secretários de Saúde. – Brasília: CONASS, 2011.534 p. (Coleção Para entender a gestão do SUS 2011, 13)ISBN: 978-85-89545-73-0
4.A CONSTRUÇÃO SOCIAL DA ATENÇÃO PRIMÁRIA À SAÚDE. / Eugênio Vilaça Mendes. Brasília: Conselho Nacional de Secretários de Saúde – CONASS, 2015. 193 p.: il. ISBN: 978-85-8071-034-2
5.Trabalho, Educação e Saúde vol 1. nº 2 Rio de Janeiro, 2003. Entrevista: Sérgio Arouca. On-line version ISSN 1981-7746.
Mais uma vez estão de parabéns!
Resumiram de forma brilhante a história do SUS.
Participei na cidade de São Paulo, do Movimento de Saude da Zona Leste (1980), do antigo INAMPS (1985-1988), depois as Ações Integradas de Saude, aí veio o SUDS, e, finalmente o SUS. Em 2002-2003 fiz parte na reestruturação da SECOM que deu origem ao SAMU da capital.
Tive o privilégio de estar próximo dos mestres, Dario Birolini, Herval P. Ribeiro, Elio Fiszbenj, Gonzalo Vecina, Matheus Papaleo, José da Silva Guedes e tantos outros.
Hoje estou aposentado pela PMSP e ainda exerço a profissão, num ritmo mais lento na iniciativa privada, aqui em Brasilia.
Que síntese maravilhosa, inteligente e brilhante! Assim como o Maurício acima comentou, fui médico do INAMPS na década de 80 e participei das reuniões na Avenida 9 de Julho que culminaram com a criação do SUDS. Quanta luta e progresso de lá pra cá. Continuo na APS na Prefeitura de Santana de Parnaíba (SP), fui professor de clínica médica e atividades ambulatoriais na ESF no UNIPAM em MG e UNINOVE. O SUS é maravilhoso e sustentará o Brasil nessa horrível pandemia. Meus parabéns à vocês pelo excelente artigo e à Slow Medicine pela seriedade com que trata a medicina!
Obrigada Maurício Aragão e Milton Peres em nome dos autores. Vivemos os mesmos anos de glória, do INAMPS às Redes de Atenção a Saúde. Neste momento difícil, que não percamos a fé e motivação. Já enfrentamos muitos desafios. Este em especial, mostra que sem o SUS, sem essa história construída, os brasileiros estariam totalmente a deriva, com milhões de pessoas sem assistência mínima. Valeu a pena e sempre valerá! Abraços