Cuidados Paliativos – Conversas sobre a vida e a morte na saúde

fevereiro 13, 2017
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Por Ana Célia Rodrigues de Souza:

Recentemente uma produção primorosa foi lançada pela Editora Manole: Cuidados Paliativos – Conversas sobre a vida e a morte na saúde, escrita a quatro mãos por esse casal harmonioso, parceiros na produção criativa: Vera Anita Bifulco (psicóloga) e Ricardo Caponero (oncologista).

Uma obra muito bem cuidada, a começar pela bela capa que nos mostra um caminho estreito, margeado por pedras, numa planície à primeira vista árida, que leva à outra estrada com destino a um horizonte claro e infinito, permitindo-me a associação imaginal com o rio Letes (do grego: esquecimento), presente na mitologia platônica. Uma fronteira entre vida e morte, esse rio ficaria no caminho de retorno das almas do reino dos mortos – Hades – para mais uma rodada no mundo humano dos vivos. Após passagem por planície desértica em caminhada de retorno à vida, as almas sedentas bebem do rio do esquecimento antes de chegarem ao seu novo destino. Aquelas que bebem demais, “deixam para lá” sua vida, seus périplos, suas ficções e seus desejos, talvez querendo abandonar o que passaram; recomeçar do zero, olhar apenas para frente, deixando o que ficou perdido para trás. Dessa forma, voltam à vida sem o auxílio das lembranças de suas escolhas, seus erros e acertos, sua covardia e coragem. Esquecendo o que poderiam conhecer sobre elas mesmas, tornam-se propensas às repetições e, consequentemente, ao sofrimento. Almas afoitas levam consigo o peso crescente das perdas, não se dando o tempo necessário para a separação e elaboração daquilo que foi vivido.

A planície árida remete ao tema trabalhado pelos autores: o cuidado com os “moribundos” – pessoas com diagnósticos de doenças graves sem perspectivas de cura, caminhando para a morte. Entretanto, apenas à primeira vista é árida, pois logo que adentramos as páginas repletas de reflexões profundas e expostas com muita clareza, embasadas não só no conhecimento técnico, histórico, mas acima de tudo, em suas experiências clínicas, encontramos delicadeza, sensibilidade, poesia, respeito e compaixão, umedecendo com humildade a secura tanto da planície da foto como também da difícil temática.

Na quarta capa Dr. Pablo González Blasco já nos chama à atenção para um dos temas importantes abordado no capítulo A comunicação no final da vida, dizendo-nos que: “comunicação verdadeira é conversa. E conversar é escutar, sem pressa; olhar sem cansaço; respeitar silêncios – que falam mais alto do que as palavras – salpicados de soluços, dúvidas, incertezas e perplexidades. A conversa fecunda implica cultivar a reflexão no silêncio, acalmar o barulho interior que nos impede de escutar o outro. Comunicar-se é saber estar ao lado do interlocutor…”.

No Prefácio, escrito pela Profa. Dra. Maria Julia Kovács, destacaria uma frase que sintetiza a obra: “este livro mescla ciência e arte, tecnologia e humanidade”.

Na jornada pelos vários capítulos encontramos muitas pérolas, tais como:

Introdução: “Ao cuidar do outro, descobrimos muito mais sobre nós mesmos; aprendemos mais do que nos doamos, e por isso, somos gratos a tantas pessoas que nem imaginam o quanto contribuíram para nosso crescimento pessoal, profissional, amoroso e espiritual. […] Deslumbramo-nos com a vida que existe para além daquilo que os olhos podem ver, a cada dia, com o processo de estar vivo, em contato com outros seres humanos. Somos melhores a cada dia, mas sempre incompletos. Pessoas prontas são pessoas mortas!”

A possibilidade da morte: “Estar pronto para a morte não significa desejar morrer. […] Cada um adoece, envelhece e morre como viveu. A morte é o epílogo do que se viveu. […] Esse despreparo diante da morte retrata um desespero frente a muitos assuntos que dizem respeito à vida, pois a morte faz parte da vida o tempo todo. Assim é a natureza. Não há rupturas bruscas; o dia termina no anoitecer, a noite termina no alvorecer. Tudo é cíclico. […] A morte não é uma “doença” que deve ser curada a qualquer custo, mas um acontecimento no qual se deve respaldar o valor da vida enquanto presente, como princípio ético, podendo dar qualidade e significado a ela. […] Os cuidados paliativos existem para ajudar o paciente e sua família a viverem com a melhor qualidade de vida possível em todos os estágios da doença, e não somente nos últimos dias, pois o objetivo é tratar não só o sofrimento físico, mas o psicossocial de ambos (doente e família), bem como a espiritualidade e a contextualização da vida. […] Uma assistência humanizada, que priorize a dignidade humana, também deve passar pelo processo de aprendizado. […] Torna-se urgente o preparo dos profissionais fundamentado não somente na busca de um conhecimento científico, tanto quanto do autoconhecimento e aprimoramento da capacidade de compartilhar, aliado a um compromisso ético, competência profissional e crescimento pessoal, que se expressem na articulação das relações interpessoais com as interprofissionais para o desenvolvimento de um exercício profissional humanitário”.

Cuidados paliativos – o homem diante da morte: “Até o século XIX, a medicina paliativa era a única que se tinha conhecimento. A cura era rara, mas o inter-relacionamento médico/paciente/família, intenso. Na maioria das vezes, o nascimento e a morte ocorriam no lar e havia sentido para o sofrimento. […] Hoje sabemos que não importa qual o tratamento, e sim quem o recebe. […] O objetivo principal é o controle de sintomas, a qualidade de vida e a manutenção da autonomia pelo maior tempo possível. […] Os cuidados paliativos reduzem o emprego de procedimentos fúteis, independentemente de seu custo, mas mantêm a melhor terapêutica disponível e acrescentam custos em termos de controle de sintomas e remuneração para uma equipe necessariamente multidisciplinar. […] Devemos prolongar a vida, sim, mas adiar a morte, não! Enquanto há qualidade de vida, o tempo é importante, mas prolongar o processo de morrer é mais sadismo ou desespero por não saber lidar com a perda do que uma atitude sensata. […] a obstinação terapêutica e a ânsia de querer tratar a todo custo pode não ser apenas inútil, como também prejudicial”.

O luto: “Perder é o preço que pagamos para viver. […] Ao trilhar o caminho do nascimento até a morte temos que passar também pela dor de renunciar a uma parte do que amamos. […] Não se pode amar profundamente, sem se tornar vulnerável à perda […] Deixa-se alguma coisa por algo novo […] a perda é encarada como uma troca. […] Viver é encontrar significado nessa troca”.

Os medos: “Fazer-nos acessíveis para sermos usados como nossos moribundos desejam, em um ato supremo de amor e doação. […] O “sofrimento” não é ruim em si, tudo depende do que fazemos dele”. E aqui os autores refletem sobre os medos da dependência, do futuro dos familiares, de não realizar as metas pessoais, da dor e mutilação, da solidão, da morte e finalmente de ser esquecido, não deixando legados.

Atitudes frente ao outro: “Ouvir “ativamente” é manifestar o desejo de perceber o outro, de compreender a mensagem transmitida pela linguagem, associada, sempre, ao não verbal”. Os autores também discutem como auxílio de ações para com os moribundos sobre cada um dos cinco estágios antecipatórios da morte propostos por Elizabeth Kübler Ross: negação e isolamento, raiva, barganha, depressão e aceitação.

Algumas intervenções psicossociais possíveis na fase avançada das doenças: os autores sugerem importantes ações para possibilitar: administrar o tempo restante de vida, ter um espaço e a quem poder verbalizar emoções, facilitar a expressão de sentimentos, nunca destituir o poder de decisão do paciente, aceitar os limites impostos pela doença, poder abordar “questões pendentes”, não julgar nem criticar e sim, acolher e exercer o perdão.

Apoio à família: “Muito importante no cuidado paliativo é o envolvimento da família por meio de treinamento e participação. […] A família precisa sentir que não está sozinha e ter contato permanente com a equipe para desfazer dúvidas e receber orientação. […] A família tem de se sentir como integrante da equipe, com funções específicas, além do lado amoroso e de proximidade que já faz parte do cenário geográfico em que paciente e família estão inseridos”. Os autores também refletem sobre a importância do cuidar do outro não excluir o autocuidado.

Ligações favoráveis: “Como para andar por uma trilha desconhecida a melhor opção é ter um bom guia, aqui, da mesma forma, contar com a assistência de uma equipe formada de bons profissionais é fundamental para uma caminhada com menos dúvidas e riscos. A confiança total no médico e na equipe multiprofissional faz total diferença, para os dois lados. […] A minha percepção pessoal não pode ser a medida dos desejos e expectativas do paciente. Os desejos do paciente devem ser avaliados no contexto de vida em que eles ocorrem e dentro das possibilidades éticas e legais de atuação. […] Os pacientes querem alguém que tenha não somente conhecimentos técnicos, mas também que seja capaz de entendê-los como um ser humano com sentimentos…”.

Considerações finais, mas não as últimas: “Que nenhum sacrifício compensa se você espera reconhecimento e retorno. Que a felicidade são átimos de vida e precisam ser assim para que sejam sagrados. Que aquilo que é realmente importante fica na memória e cravado no espírito e, por isso, não morre. Que não devemos ter medo da morte, porque sabíamos desde sempre que ela um dia viria também para nós, como a mais certa das verdades, e para isso todo o cuidado com a vida é pouco. […] Dizem que um pouco de ciência afasta o homem da espiritualidade, mas um pouco mais de ciência o aproxima de novo da divindade. Frente ao poder da natureza, o homem se apequena, mas ciente da natureza que há dentro de si, o homem transcende na divindade”.

Epílogo: “A meta é uma vida plena de significado, mas o caminho até chegar a sua finalização traz muitas surpresas e é nele que se encontra o sagrado”.

Conforme exposto acima, torna-se imediata a associação, pelos próprios princípios básicos, entre Cuidados Paliativos e o movimento Slow Medicine, já muito bem descrita por Vera Bifulco em seu artigo Slow Medicine e Cuidados Paliativos – uma confluência de valores, no qual diz: “para Marco Bobbio, em seu livro O Doente Imaginado, citando Sir William Osler: “é mais importante conhecer o paciente acometido por uma doença do que a doença que acometeu um paciente””.  E Gustavo de Simone, discípulo de Cicely Saunders, afirma: “cuidados paliativos não são, nada mais, nada menos, que a medicina bem praticada, resgate que todo profissional de saúde procura fazer de sua vocação inicial”. Nada mais coerente com a pretensão filosófica fundamental da Medicina sem Pressa”. E Vera Bifulco prossegue dizendo que para ambos os movimentos percebem-se “como essenciais o estabelecimento de vínculos sólidos, o tempo para o diálogo e para a comunicação, o uso adequado dos recursos tecnológicos, a importância do delicado instrumento de decisão que é a reflexão, a individualização do cuidado e  o trabalho em equipe”.

Atualmente, a oncologia clínica é uma das especialidades médicas que muito se beneficiaria dos princípios supracitados, pois se encontra entre as especialidades que mais se desenvolveram nas últimas décadas. Segundo a doutora Ana Lucia Coradazzi, em seu artigo Slow Oncology: “a descoberta de novas drogas e estratégias eficazes no combate ao câncer tem sido tão rápida que mesmo os profissionais mais estudiosos são completamente incapazes de se manterem atualizados. Esse tipo de progresso é tão empolgante quanto perigoso. Nós médicos, em especial oncologistas, temos dificuldade para discernir o que é um resultado vantajoso num estudo clínico do que é um resultado vantajoso para aquele paciente específico que está sentado à nossa frente. […] A Oncologia é uma especialidade complexa e abrangente, e talvez isso faça com que os oncologistas partam do princípio de que os pacientes e seus familiares não têm condições de participar das decisões – são leigos no assunto. Eles realmente não têm como compreender a complexidade das mutações genéticas relacionadas ao câncer, os efeitos colaterais dos tratamentos oncológicos, a interpretação dos exames de imagem e laboratoriais a que são submetidos. E nem devem, porque essa não é a parte deles na história. A eles cabe definir quais são suas expectativas, quais seus limites, e o que vale a pena suportar para conseguir o que desejam. O papel deles está precisamente em decidir como querem viver suas vidas. O nosso, enquanto oncologistas, está em ajudá-los nessa empreitada.  É nossa obrigação escutar. […] Trata-se, simplesmente, de pensar antes de agir. De ter cautela. De escutar antes de decidir. De ter bom senso.[…] Não se trata de um retrocesso, muito pelo contrário. Praticar Oncologia em sua forma “slow” pode ser considerado o que há de mais moderno”.

Bem, tentei como num trailer de filme apresentar pelas palavras dos próprios autores trechos da “viagem” que foi para mim a leitura deste livro. Espero não ter impedido a surpresa dos melhores momentos para quem ainda não o leu, e sim deixado com o “gostinho de quero mais”, como nas tramas cinematográficas ou o aperitivo de um banquete. No final do livro encontramos um caderno de belíssimas fotografias que merecem ser contempladas. Certamente a leitura na íntegra fará toda a diferença, ao que venho convidá-los a fazer, pois é imprescindível a todos que se interessem pelo humano e seu processo de vida. Parabéns aos autores!

___________________

Ana Célia Rodrigues de Souza:

Sou médica psiquiatra, formada pela FMUSP em 1992, obtive meu mestrado em Ciências do Comportamento pelo ICB – USP em 1998 e atualmente sou doutoranda do Instituto de Psicologia da USP. Analista junguiana , sou uma apaixonada por orquídeas e jardins botânicos, “cinéfila” e leitora voraz, que como Jorge Luis Borges, penso que o Paraíso deve ser uma espécie de Biblioteca. Buscadora, andarilha, caminhante, adoro viajar tanto para locais conhecidos – seguindo o conselho de Proust, com novos olhares para os mesmos lugares – como me aventurar por onde desconheço. Aos cinquenta anos, no climatério, vivencio minhas “pequenas mortes”: final da fertilidade biológica e um casal de filhos saindo de casa, mas deixando tempo e espaço para o ócio criativo.

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Silvia Reali
Silvia Reali
7 anos atrás

Cara Ana Célia , curioso o redemoinho de uma leitura. Sou fã do slowtravel. O aprendizado poderoso sobre mim que as viagens me proporcionaram, me viciaram em viajar para aprender cada vez mais sobre eu mesma. Sua resenha chamou minha atenção para conhecer agora, sobre a Slow Medicine. Seu comentário sobre o livro de Ricardo Caponero e Vera Anita Bifulco, não foi spoiler, ao contrário, me despertou a vontade de lê-lo. E pelo que li de suas palavras sobre o livro, só lastimo não ter tido o conhecimento dele quando estava com minha mãe doente, carente, pessimista, em tudo o inverso da mulher forte que é meu exemplo de vida. O livro teria sido um imenso suporte, orientação, e ainda apaziguador. Quão moderno tanto quanto difícil essa Slow Medicine, num tempo onde cada vez mais o tempo escorre rapidamente em todas as situações da vida. O livro Cuidados Paliativos teria nos ajudado, a mim e a minha mãe, a encontrarmos o equilíbrio e a harmonia. Seu comentário despertou em mim a vontade de ler o livro e encontrar ajuda, agora para acolher minha sogra. Uma mulher que sempre foi independente e agora se encontra confinada pela doença. E, uma frase, dentre tantas preciosas, me chamou muito a atenção: ” não destruir o poder de decisão do paciente”, ajudará a mim, entendê-la melhor, o que será bom para ela. Muito obrigada pela valiosa indicação.

Ana Célia
Ana Célia
7 anos atrás

Boa noite, cara Silvia!
Primeiro quero me desculpar, pois somente hoje estou notando que por motivos alheios a minha vontade, a resposta que lhe enviei não apareceu aqui.
Depois, fico muito agradecida por compartilhar sua experiência e associá-la a possibilidade de transformação pela leitura. O livro é realmente primoroso e merece ser lido! Boa sorte! Um abraço

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