Por Marco Bobbio:
Em nossa abordagem atual do câncer, frequentemente temos utilizado uma terminologia militar. ‘A guerra contra o câncer’. ‘Eu venci minha batalha contra o câncer’. ‘O câncer deve ser atacado com quimioterapia’. ‘A melhor defesa é a prevenção’. ‘Você pode vencer o câncer’. Uma vez feito o diagnóstico, os pacientes entram num turbilhão de avaliações, exames e tratamentos que cada vez mais levam à remissão ou melhora da doença, mas a realidade é que ainda assim não conseguem evitar a morte em um número significativo de casos. É como se a complexidade de cada paciente pudesse ser reduzida à realização indiscriminada dos tratamentos indicados pelas diretrizes, sem levar em conta as expectativas, desejos e hábitos de vida daquele paciente individual.
Ana Coradazzi, médica brasileira, especialista em oncologia clínica e cuidados paliativos, chefe da equipe de Oncologia Clínica da Faculdade de Medicina de Botucatu e coordenadora do Movimento Slow Medicine Brasil, em seu livro De mãos dadas: o olhar da slow medicine para o paciente oncológico, reflete sobre sua experiência clínica. Ela parte do caso real de um homem de 87 anos de idade, diagnosticado com câncer de pulmão com metástases no fígado e nos ossos, que é submetido a inúmeras investigações e tratamentos que o levam a passar os últimos quatro dias de sua vida em um leito de terapia intensiva, entubado, conectado a um respirador e com uma infusão contínua de antibióticos e medicamentos para manter sua pressão sanguínea estável. “Há muitas histórias de pacientes com câncer – comenta Ana Coradazzi – nos quais a última fase da vida foi devastada pela medicina rápida atual. Pessoas cuja situação clínica não tinha nenhuma chance real de ser revertida ou mesmo mantida sob controle, e que foram engolidas por tratamentos, intervenções, exames indicados por protocolos padrão que não foram escritos para elas. Estas situações tristes – e até trágicas – são o resultado de uma espécie de crueldade por parte das equipes de saúde, desatentas às necessidades do paciente individual”.
Com sua prosa linear, evocativa e empática, a Dra. Coradazzi aplica os conceitos que inspiram a Medicina Sem Pressa à sua área de atuação profissional, identificando uma “Oncologia Sem Pressa que não se limita a oferecer boas estratégias de tratamento para o câncer, mas procura transformar a doença em um caminho a ser empreendido com o paciente. A maneira de fazer isso envolve a atenção contínua a todas as dimensões do paciente, incluindo aquelas além do corpo biológico. Trata-se de abordar cuidados que não subestimam os aspectos comuns do bem-estar, como nutrição, higiene pessoal, apoio emocional, preservação da autonomia, sexualidade, relações interpessoais. Em outras palavras, um tratamento que permite que a pessoa viva com a doença sem deixar de ser ela mesma”.
Inspirando-se no livro de McCullough, My Mother, Your Mother, best seller que é referência na abordagem sem pressa dos últimos anos de vida dos idosos, Ana Coradazzi descreve 8 possíveis etapas a vida de uma pessoa com câncer; do diagnóstico que impacta a vida de uma família inteira ao início dos tratamentos, às dificuldades que surgem inesperadamente, até o declínio e a morte. Cada etapa é ilustrada com inúmeras histórias clínicas que desmistificam os dramas e as esperanças das pessoas que vivenciam o câncer.
Se o conselho de McCullough foi dirigido aos idosos, Ana Coradazzi se dirige a pessoas de todas as idades que compartilham uma doença que ameaça a vida, “mostrando como a adoção de uma estratégia sem pressa pode ter um impacto surpreendente na vida dessas pessoas. Minha intenção é essencialmente ajudar os pacientes com câncer e suas famílias a obterem um cuidado melhor, tornando o final de sua jornada precioso, significativo, sensato e sereno”.
(Coradazzi A. De mãos dadas. O olhar da slow medicine para o paciente oncológico. MG Editores São Paulo 2021. Pg. 200)
Publicação original em setembro/2021: https://www.slowmedicine.it/recensione-coradazzi-de-maos-dadas/
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Marco Bobbio é autor dos livros “O Doente Imaginado” e “Medicina Demais“. Médico cardiologista, vive me Turim, na Itália, com sua companheira de toda a vida, Lucia. É ex-secretário geral da Associação Italiana de Slow Medicine.