Por José Renato G. Amaral:
A maior acurácia em se estabelecer diagnósticos, o aumento do rigor em metas de controle clínico e a quantidade crescente de fármacos disponíveis, aliada a evidências de benefícios de esquemas com associação de classes terapêuticas, bem como o próprio envelhecimento da população, parecem tornar polifarmácia (definida como o uso de cinco ou mais medicamentos na prescrição diária) inevitável na prática médica atual. Por mais justificável que seja a coexistência de mais de cinco fármacos em uma prescrição – basta imaginar um sujeito hipertenso, diabético e com doença coronariana que facilmente chegamos a isto – a polifarmácia nunca é inócua: traz consigo o ônus da interação medicamentosa, dificuldade em se manter a adesão e, logicamente, aumenta o risco de iatrogenia.
Frente a esse problema, cada vez mais se fala em desprescrição. A preocupação com a polifarmácia e com a própria racionalidade da terapêutica leva a necessidade de se tentar tornar as prescrições as mais enxutas possíveis. Para tanto, a cooperação entre profissional e paciente faz-se fundamental.
O primeiro passo para a desprescrição envolve a conscientização sobre a existência de opções. Efeitos adversos de drogas, o acréscimo de um novo medicamento ou um novo diagnóstico podem ser oportunidades para se conversar sobre as alternativas disponíveis. Deve ser levado em conta que as atitudes dos pacientes em relação aos fármacos não raro são contraditórias: eles valorizam o uso de medicamentos, percebem isso como um cuidado, mas também se incomodam com a necessidade de usar tantos remédios. O balanço entre essas percepções é influenciável pelo clínico, na medida em que este prive da confiança do seu cliente. O clínico, por sua vez, pode ser tentado a manter-se na chamada inércia terapêutica: o reconhecimento do problema e a incapacidade de ação. O receio de a suspensão de um fármaco ser mais prejudicial que sua manutenção, tanto da parte do assistente como do paciente, reforçam esse ciclo.
Após a conscientização, é necessário discutir as opções, seus riscos e benefícios. A capacidade de o paciente adquirir informação sobre o que se está tratando e compreender o equilíbrio entre riscos e benefícios não deve ser superestimada, pois envolve muito repertório técnico – para não entrarmos no mérito de todos os vieses cognitivos que a humanidade traz consigo e suas implicações nesse tipo de análise, apesar de a toda hora todos nós estarmos pesando riscos e benefícios a cada decisão, ainda que inconscientemente. Tais decisões são particularmente difíceis quando se discute, por exemplo, variáveis de difícil estimativa na vida real, como medicamentos de uso profilático, que não tratam nenhum sintoma mas podem modificar um desfecho incerto, como adoecimento ou morte por determinada causa. A partir daí, é preciso entender as preferências do paciente. Estas são moduladas por fatores como características de personalidade, estado emocional e acesso à informação. Há pacientes que querem estar no comando das decisões, e estão dispostos a discutir questões como expectativa de vida e benefícios do tratamento. Outros preferem simplesmente esquivar-se desses assuntos, e podem preferir delegar as condutas a alguém de sua confiança, que não raramente será o próprio profissional. O detalhe é que nem sempre está claro para as partes o grau de liberdade que a relação permite para esse tipo de discussão. O profissional pode facilitar isso, conversando sobre preferências sobre qualidade de vida ou prolongação da sobrevida.
Uma vez que haja entendimento e concordância sobre as potenciais vantagens da desprescrição, pode-se tomar a decisão. É fundamental a observação do efeito prático da suspensão de medicamentos que, evidentemente, pode ser revista a qualquer tempo. Na prática, ainda é muito comum o clínico conquistar a confiança do paciente simplesmente por retirar da prescrição uma droga por ter concluído que parte dos problemas do cliente a ela se devia. É mais difícil, todavia, a proposta de desprescrição em sujeitos que se apresentam bem, assintomáticos.
Se nos concentrarmos no lado menos complicado de toda essa questão – a pertinência de se manter polifarmácia em indivíduos frágeis e/ou com expectativa de vida reduzida, conseguimos entender e pôr em prática a desprescrição com mais facilidade. Assim colocado, isto parece uma platitude, mas alguns dados podem ilustrar a necessidade de se discutir esse tema com clareza.
Curtin, O’Mahony e Gallagher estudaram o consumo de medicamentos no último ano de vida de idosos num hospital da Irlanda. Realizaram um estudo observacional, que incluiu 410 pacientes, com idade média de 80.8 anos, a maioria bastante frágil, a partir dos registros de suas internações hospitalares. Conforme o estudo, o número médio de medicamentos usados nas hospitalizações era 23.8/paciente. Oitenta por cento dos pacientes receberam pelo menos um medicamento potencialmente inapropriado na prescrição de alta, e um terço recebeu três ou mais fármacos dessa categoria, na qual se destacavam hipolipemiantes, inibidores da bomba de prótons, antipsicóticos e suplementos de cálcio.
O critério para se considerar a inadequação de determinado medicamento foram as recomendações do STOPPFrail – Screening Tool of Older Persons Prescriptions in Frail adults with limited life expectancy. Tal critério foi definido por um painel de especialistas, justamente para nortear a desprescrição em indivíduos que, conforme o detalhamento do acrônimo expõe, são idosos, frágeis e com pouca expectativa de vida. Ou seja, os casos em que a decisão pela desprescrição parece ser mais fácil. Muitas das drogas listadas no STOPPFrail são frequentadoras habituais de semelhantes listas, e bem conhecidas dos geriatras. Sua catalogação num instrumento voltado a desrpecrição e a realização de estudos com essa finalidade auxiliam a prática clínica, na medida em que a fundamentam.
Estudos não aleatorizados sugerem que a desprescrição associa-se a menor mortalidade. Estudos aleatorizados (de melhor qualidade) não reproduziram, contudo, tal achado. Uma metanálise sobre desprescrição concluiu pela redução no número de quedas e uma tendência a menor mortalidade dentre os idosos de 65 a 80 anos (mas não acima dos 80 anos), o que sugere a possibilidade de o benefício da desprescrição variar ao longo do processo do envelhecimento. Talvez os maiores beneficiários da desprescrição sejam então os indivíduos de maior sobrevida –aqueles em que decidir pela descontinuidade de determinados tratamentos pode ser mais difícil – mas ainda não podemos concluir isso.
Em suma, a conscientização sobre o problema da polifarmácia é fundamental para se pensar em desprescrição. A compreensão e a participação do paciente nesse processo é imprescindível. Já há ferramentas de auxílio para a prática da desprescição, como o STOPPFrail.
O Movimento Slow Medicine tem como uma importante referência teórica a Medicina Baseada em Evidências. A volta da racionalidade à prática médica, onde o bom senso seja um imperativo e a tomada de decisões seja centrada nas melhores escolhas para o paciente, focando particularmente sua qualidade de vida, mormente em se tratando de idosos, está na ordem do dia. Desprescrição pode ser considerada, por excelência, uma prática slow. Mas esta prática não deve ser errática ou intempestiva. Esforços no sentido de torná-la segura, balizada por evidências, são muito relevantes. O sítio canadense Deprescribing concentra diretrizes bastante úteis e de fácil aplicação para a prática clínica. O assunto vem sendo objeto de interesse crescente pela comunidade acadêmica, e novos estudos deverão trazer mais luz sobre os efeitos práticos da racionalização terapêutica.
Referências:
Jansen J et al. Too much medicine in older people? Deprescribing through shared decision making. BMJ 2016; 353: i2893 doi: 10.1136/bmj.i2893
Curtin D et al. Drug consumption and futile medication prescribing in the last year of life: an observational study. Age and Ageing 2018; 0: 1-5 doi: 10.1093/ageing/afy054
Lavan AH et al. STOPPFrail (Screening Tool of Older Persons Prescriptions in Frail adults with limited life expectancy): consensus validation. Age and Ageing 2017; 46: 600-607 doi: 10.1093/ageing/afx005
Page AT et al. The feasibility and effect of deprescribing in older adults on mortality and health: a systematic review and meta-analysis. Br J Clin Pharmacol 2016; 82: 583-623 doi 10.1111/bcp12975
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José Renato Amaral: sou geriatra, graduado pela Faculdade de Medicina da USP, onde fiz minha residência. Sou assistente do Serviço de Geriatria do Hospital das Clínicas da FMUSP desde 2003. Embora paulistano, sempre sonhei em ser médico e morar numa chácara, no interior, mas deu nisso. Acredito nos fundamentos do movimento Slow Medicine como princípios para a boa prática médica contemporânea, tanto no interesse de cada indivíduo/paciente, como para a sociedade como um todo.
Artigo muito pertinente. Vários doentes ficam angustiados não só com os efeitos colaterais da polifarmácia, mas também com a dificuldade financeira para adquirir remédios e o aspecto prático de como tomá-los da maneira correta mais de uma vez ao dia. Mais do que nunca, é desejável a prescrição comedida e racional de medicamentos para pacientes de todas as idades.
Renato Jose Amaral
Suas colocações foram ótimas !
A pedido da SBGG, estou escrevendo um capítulo , sobre Desprescrições em Geriatria, para o Tratado de Geriatria. Sou o Coordenador da Medicina do Idoso na PUC-SP.
Sou da primeira turma de Pós graduação da PUC-RS, 1980. Època empírica da Geriatria.
Peço autorização para, colocar algum comentário seu, onde farei referências a seu nome.
Att .
Professor Vicente Spinola Dias Neto
PS todos falamos as mesmas coisas, más?
Forte abraço.
.
Caro Renato
Sou professor de Geriatria na PUC-SP
Peço autorização para colocar comentário seu no capitulo que estou escrevendo, para o Tratado de Geriatria.
Att
Vicente Spinola Dias Neto
Olá, Prof. Vicente
Desculpe, só vi agora seu comentário (porque o Zé Carlos me avisou). Claro, será uma honra contribuir com seu trabalho!
Um abraço,
José Renato
[email protected]