Por José Carlos Campos Velho:
“Por isso é que a filosofia Devagar pode ser resumida numa única palavra: equilíbrio”
– Carl Honoré –
O primeiro parágrafo do livro Devagar narra uma cena em que o autor, esperando o ônibus que atrasou em uma praça nas proximidades de Roma, ouve Simon & Garfunkel em seu walkman e simplesmente entrega-se a viver aquele momento, olhando os transeuntes, uns meninos jogando bola e a cena italiana paralisada no tempo. Nenhuma pressa. Anos depois, surpreende-se ao perceber que sua vida podia ser resolvida por uma notícia que viu em um jornal: “A história para fazer dormir em um minuto” . Neste momento, a epifania: contrastando com sua primeira conclusão de que finalmente havia encontrado uma saída para as exigências de seu filho de que contasse longas histórias na hora de dormir – impedindo-o portanto de dedicar-se à outras tarefas – constata que algo estava inadequado: o que poderia ser mais importante do que aquele momento essencial de convivência com o seu filho? Neste momento, parado em uma fila para pegar o avião, observando o ritmo vertiginoso das pessoas à sua volta, brota dentro dele uma constatação: “a minha vida se transformou numa corrida de obstáculos, para conseguir encaixar sempre mais e mais coisas em cada hora do dia. Sinto-me um Scrooge, com um cronômetro, obcecado com o aproveitamento de cada migalha de tempo, um minuto aqui, alguns segundos ali”. A Itália, berço do Movimento Slow Food, que se organizou a partir do protesto capitaneado por Carlo Petrini contra a inauguração de uma filial de uma rede de Fast Food em plena Piazza de Spagna, fornecia à Carl Honoré as pedras que iriam sedimentar seu caminho como o principal porta-voz do Movimento Slow no mundo.
Neste aspecto, seu livro Devagar tem um papel de vanguarda. Carl Honoré aborda de uma maneira didática as diferentes iniciativas que tem sido constituídas em torno do ideário do movimento que propõe a desaceleração do cotidiano e o resgate de uma forma mais tranqüila e satisfatória de viver a vida. Prestando atenção ao momento presente. Valorizando o que chamamos as pequenas coisas da vida: preparar uma comida e desfrutá-la com a família e os amigos, uma caminhada no parque e pelas ruas da cidade, a convivência com as crianças, a leitura de um livro ou a escuta de uma música pelo simples prazer de ouví-la.
Mas o livro vai muito além de uma proposta ingênua de volta ao passado, para um mundo utópico e irrealizável. No seu início, na introdução “A Era da fúria” e em seu primeiro capítulo “Faça tudo mais depressa”, o autor faz uma análise geral do atual estado de coisas e busca as raízes históricas da transformação do tempo e da pressa nos algozes do homem moderno. “Precisamos então definir aqui o nosso propósito. Neste livro, Depressa e Devagar não se limitam a definir uma alternativa. Remetem também a maneiras de ser, ou filosofias de vida. (…) É uma questão de estabelecer ligações reais e significativas – com pessoas, o trabalho, a comida, tudo.” A filosofia Devagar não é contra a tecnologia, ao contrário, reconhece seu papel fundamental na qualidade de vida que ela permite no nosso tempo. Porém, a grande questão é seu papel na determinação do nosso cotidiano. A primeira edição do livro é de 2004, antes da proliferação dos smartphones e de uma presença tão ostensiva da internet em nossas vidas, quando as redes sociais ainda estavam engatinhando. Mas, neste sentido, o livro é profético e sua mensagem ainda ganha um sentido mais profundo na contemporaneidade.
Começando pelo Movimento Slow Food, o livro passeia pelas diversas iniciativas que compõe o “Mundo Devagar”. Uma leitura agradável, em que Carl Honoré revela-se um contador de histórias, em suas andanças pelo mundo, freqüentando lugares e conhecendo pessoas, uma extensa e profunda pesquisa sobre as atividades são penetradas por esta nova concepção da vida. Debruça-se sobre a vida nas cidades , o sexo, a infância e a criação dos filhos, os múltiplos aspectos contemplados pela filosofia Slow. De particular relevância é sua abordagem de dois pontos fundamentais da vida humana: o trabalho e o lazer. Falando de uma questão trágica que é o excesso de trabalho no Japão e sua conseqüência mais radical, o karoshi , ele aponta para o estabelecimento de novas relações de trabalho, em que o exagero mostra-se contraproducente. Propõe uma nova maneira de vivenciá-lo, mais tranqüila e, surpreendentemente, mais produtiva. Salienta a importância do lazer, identificando em atividades como a jardinagem, o tricô e a leitura , maneiras de passar o tempo livre de maneira saudável, que permitem o contato com a natureza, com as pessoas e, no caso da leitura, consigo mesmo.
A primeira menção à expressão Slow Medicine foi o artigo de Alberto Dolara , publicado em 2002, no Italian Heart Journal. De maneira pioneira, Devagar fala de uma abordagem mais cuidadosa dos problemas de saúde. No capítulo “Mente/Corpo: mens sana in corpore sano”, o autor discorre sobre técnicas corporais de prevenção e promoção da saúde como a Yoga, a Meditação, o Tai Chi Chuan e o Chi Kung e sua larga disseminação no Ocidente como maneiras de cuidar da preservação da saúde. São métodos em que a desaceleração do pensamento e os movimentos calmos e tranqüilos têm impacto positivo no organismo como um todo, em seus aspectos físicos, psíquicos e espirituais. Falando mais especificamente sobre a prática médica, o capítulo seis, chamado “Medicina: os médicos e a paciência”, Carl Honoré cita um provérbio inglês que afirma que “o tempo é uma excelente cura”, congruente com o primeiro princípio da Slow Medicine, que nos diz que “a tomada de decisões melhora quando os médicos dedicam o seu tempo e sua atenção ao paciente”. Esclarecendo que existem casos em que as decisões e as ações devem ser rápidas, particularmente em situações de urgência, o autor nos coloca que “…na medicina também, como em tantas outras áreas da vida, mais rápido nem sempre quer dizer melhor. Muitos médicos e pacientes começam a se dar conta de que frequentemente vale a pena ir devagar. A reação à Fast Medicine está ganhando impulso. Em toda parte os médicos exigem passar mais tempo com os pacientes. As faculdades de medicina passaram a dar mais ênfase à conversa como ferramenta de diagnose. São cada vez mais numerosas as investigações científicas demonstrando que frequentemente a paciência é a melhor política.” Falando de uma experiência pessoal, o autor identifica na utilização de técnicas da Medicina Complementar e Alternativa uma forma de abordagem dos problemas de saúde onde a relação com o profissional de saúde e o respeito ao tempo necessário para a estruturação do cuidado se configuram como essenciais, contrapondo-se ao atendimento convencional que recebeu em um grande hospital londrino. Já diz o texto que procura conceituar a Medicina sem Pressa que “… a convivência com a diversidade da prática médica e o conhecimento de que a Medicina Complementar pode oferecer alívio aos pacientes em algumas situações clínicas, é uma atitude que faz parte de nossa filosofia de trabalho. A busca essencial é o cuidado, a melhora, o alívio – o suporte. E estes alvos eventualmente são melhor atingidos através de práticas menos agressivas, como por exemplo, o alívio da dor através de terapias físicas e da acupuntura. O ato de cuidar, de se interessar compassivamente pelo sofrimento do outro e de tentar buscar alternativas de alívio daquele sofrimento já é terapêutico em si. A medicina complementar se utilizou desde sempre destes preciosos instrumentos – o tempo e a escuta, a proximidade e a intimidade com o paciente”.
Devagar já foi publicado em mais de 30 idiomas. Carl Honoré é canadense (embora tenha nascido na Escócia) e vive em Londres com sua mulher e seus dois flihos. No Brasil, onde viveu na década de 90, o livro é mais facilmente encontrado em sebos. Recentemente foi publicado também em audiobook, narrado pelo próprio autor, acessível em seu website. Seu TED Talk já foi visto mais de 2 milhões de vezes. Certamente, trata-se de uma obra fundamental para todos aqueles que se interessam pela Slow Medicine – e por uma vida com mais qualidade.