Por Ana Lucia Coradazzi:
Dona Maria tinha 68 anos, os últimos deles vividos com grande dificuldade. Um câncer de mama, diagnosticado já em fase avançada, vinha comprometendo de forma cruel sua qualidade de vida, causando dores, cansaço, falta de ar. Apesar dos tratamentos que ela vinha recebendo, a doença mantinha seu curso, conduzindo Dona Maria a passos largos para seus momentos finais. Ela percebia isso. Sentia sua energia se esvaindo, a falta de apetite, a fadiga. Mas, apesar de compreender que sua vida estava chegando ao final, o que mais a preocupava (e assustava) era a possibilidade de morrer longe da sua família, cercada por tubos e aparelhos, sem poder se comunicar. Tinha vivenciado essa situação triste com seu pai, anos antes, após um derrame cerebral extenso, e as sequelas emocionais eram visíveis na família toda até hoje. Por isso, ao ouvir de seu médico que poderia decidir como gostaria de ser tratada, seus olhos tinham mostrado tanto surpresa quanto alívio. Sim, ela poderia definir, a qualquer momento, os procedimentos aos quais não gostaria de ser submetida, as situações que julgava degradantes (e às quais não queria ser exposta), e até mesmo quem seria a pessoa que poderia tomar decisões por ela, no caso dela própria não ser capaz de fazer isso. Ela poderia contar com compromisso, por parte da equipe de saúde e da sua própria família, de que buscariam respeitar seus desejos e compreendê-los em sua profundidade, dando a ela autonomia para terminar sua vida da forma como julgasse mais adequada. Em outras palavras, o médico tinha proposto que eles definissem, juntos, seu Plano Avançado de Cuidados (PAC), o qual poderia inclusive ser registrado formalmente por ela num documento ao qual chamamos Testamento Vital (TV).
Embora tanto o PAC quanto o TV sejam reconhecidamente válidos pelo Conselho Federal de Medicina e previstos pelo Código de Ética Médica, na prática ainda são raros os pacientes que chegam a formalizá-los. Os motivos para isso são muitos, mas o mais importante ainda é o desconhecimento (tanto por parte dos pacientes quanto das equipes de saúde) a respeito da existência desses instrumentos quanto à forma adequada de construí-los junto ao paciente. Desconhecimento este que, muitas vezes, é expresso de forma preconceituosa nos hospitais e instituições de saúde, nos quais pessoas em fase final de vida são continuamente submetidas a procedimentos desproporcionais às suas crenças e valores, sob a alegação de que médicos têm a obrigação de fazer tudo o que puderem para salvar a vida alheia. A alegação em si é verdadeira. Mas também é verdade que todos temos autonomia para decidir que tipo de vida julgamos que vale a pena ser salva. Todos temos o direito de escolher como queremos viver, inclusive (e talvez principalmente) quando a vida está chegando ao final.
O segundo motivo, este sim ainda mais complexo que o desconhecimento, é nossa falta de disposição (ou de coragem?) para pensar a respeito da nossa própria morte. Para a maior parte de nós, morrer é um assunto que deve ser evitado, postergado ou até mesmo ignorado. Há inclusive quem acredite que pensar na morte atrai a própria… Mas a questão é que, no processo necessário para definirmos os cuidados a que gostaríamos ou não de ser submetidos, nós não estamos falando da morte, e sim da nossa vida. Somos impelidos a pensar nas coisas que realmente amamos, respeitamos e valorizamos. Fazemos escolhas que dizem muito sobre o que somos e sobre os legados que gostaríamos de deixar. Não se trata de simplesmente escolher entre ser ou não entubado, ir ou não para a UTI. Estamos falando sobre definir qual o significado da vida para nós mesmos.
Não é difícil imaginar que a construção de um Plano Avançado de Cuidados é um processo a ser percorrido sem pressa, bem ao estilo Slow Medicine. Seus princípios podem ser observados durante todo o caminho. Tempo, para que a pessoa possa refletir sobre suas prioridades e aprofundar-se em si mesma. Individualização, para permitir que as decisões tomadas sejam completamente coerentes com aquela pessoa única. Autonomia, para que seus valores e crenças mais sagrados sejam tratados com o respeito que merecem. Qualidade de vida, para que os passos finais não coloquem a perder as conquistas de um caminho inteiro. Compaixão, para que seja possível compreender o sofrimento antes de tomar atitudes intempestivas para eliminá-lo. E, por fim, o uso parcimonioso da tecnologia, sem o qual estaremos oferecendo medidas que não fazem sentido nenhum.
É assim, auxiliando as pessoas a exercerem sua autonomia em prol da proteção de seus próprios valores, que profissionais da saúde estabelecem com seus pacientes uma relação de parceria sagrada, que resulta em Planos Avançados de Cuidados, Testamentos Vitais ou quaisquer outras medidas que preservem a vida que essas pessoas entendem como digna. É desse tipo de relação que surgem os melhores resultados na vida das pessoas, resultados que pouco têm a ver com números, gráficos, estatísticas e tempo de sobrevida. Trata-se, principalmente, de ajudar as pessoas a conectarem-se com elas mesmas e com o que lhes é caro. Simples (e complicado) assim.
Para saber mais sobre Testamento Vital:
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Ana Lucia Coradazzi: Nascida na cidade de São Paulo, mora em Jaú, no interior, há muitos anos, com o marido e suas duas filhas. Oncologista clínica com titulação pela Sociedade Brasileira de Cancerologia, é especialista em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium, na Argentina. Atualmente atua como oncologista no consultório e na Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Também integra a equipe de Cuidados Avançados de Suporte e Medicina Integrativa do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em SP. Apaixonada por livros (e escritora nas horas vagas), procura reservar um tempo para correr, buscando manter o corpo saudável e a mente tranquila.