Doutores Humanos

junho 25, 2023
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Por Ana Carolina Eiris Pimentel

“Eu sou a principal parte da transformação da minha vida!”

(Stellinha Moraes)

            Humanizar. Quantas vezes você escutou isso no seu trabalho? Passagem de plantão? Aula de graduação, especialização, mestrado, doutorado? Nas ruas? Corredores? Mercados? Shoppings? “Esses humanos que circulam pela cidade aí a fora…” É muito estranho como as vezes nos esquecemos do básico: nossa essência. Não fazemos isso por mal, somos levados pela rotina louca da vida, trabalhar, pagar contas, estudar, pegar as crianças na escola, resolver problemas, lidar com burocracias… Ah, as burocracias… tudo aquilo que faz com que não só sejamos como queiramos que tudo seja fast, “para ontem”, como gostamos de dizer. E nisso surgem filas, sistemas, máquinas, judicialização tudo para “otimizar” o nosso tão precioso tempo.

Antes, confesso, eu não gostava de usar esse termo “Humanizar”, por que para mim é tão óbvio: como vamos humanizar aquilo que é feito por nós, humanos? Mas me dei conta de que estamos nos perdendo na automatização da vida e recordar aquilo que nós somos e fazemos é, sim, necessário. Vamos humanizar! No último mês de maio tive a grande honra de poder participar do Doutores do Mundo (DM) através da sua parceria com a ONG Anjos da Tia Stellinha, no Rio de Janeiro. O objetivo é ofertar, ao longo de uma semana, atendimentos em saúde para aqueles que mais precisam. Nessa expedição em especial as especialidades foram odontologia, clínica médica, oftalmologia, ginecologia, pediatria, dermatologia e psiquiatria, oferecidas a mulheres e crianças moradoras do Morro dos Macacos assistidas pela ONG.

As consultas foram realizadas por voluntários do próprio DM, dentre eles médicos, estudantes de medicina, dentistas, enfermeiros e farmacêuticos que viajam Brasil afora, doando seu tempo para tratar quem não consegue acesso a assistência. As pessoas já saem dali com um tratamento definido e, se precisarem, de encaminhamento para exames e outras especialidades. O objetivo é ser resolutivo, mas ao mesmo tempo acolhedor, direcionando a assistência à necessidade daquela região. Muitas dessas pessoas esperam por atendimento em saúde por meses: crianças sem vacinas, mulheres sem exames preventivos, idosos sem medicamentos, e todos com muitas dúvidas.

Tudo começou quando os organizadores chegaram antecipadamente e conheceram o ambiente e a diretora da ONG, Stellinha Moraes, dona de um sorriso lindo e firme e de uma bela casa colorida com salas e espaço educativos que ofertam aulas de confeitaria, arte, dança, costura e outros serviços para essas mulheres e crianças. Tudo foi arrumado e pensado em atendê-las da melhor forma possível: a ginecologia numa sala mais reservada, assim como a oftalmologia e psiquiatria; a pediatria num espaço mais aberto e bem numa quadra de jogos; a farmácia, que continha diversos medicamentos, doados e comprados, foi organizada e identificada para a distribuição; as demais especialidades tinham pequenos consultórios divididos pelos corredores da casa. As pessoas? Essas estavam a mil, nós voluntários conhecendo o espaço, a nós mesmos e à comunidade, e eles, os pacientes, com brilho nos olhos pela esperança de serem acolhidos.

Logo na entrada, uma bancada com nosso mascote, o Bolota, o cão que deu luz à recepção e à expedição. Todos que chegavam já vinham com um sorriso no rosto ao vê-lo. ‘Bom dia! Boa tarde! Para qual especialidade você está marcada?’ ‘Gineco, mas soube que tem clínico geral, posso ir também?’ ‘Claro!’ E nisso quem conduzia o fluxo eram eles mesmos, tudo o que era necessário era providenciado. Às vezes, por falta de recursos mais avançados, precisávamos encaminhar as pessoas para o posto de saúde mais próximo, e ao receber as orientações eles já agradeciam, porque sentiam que tinham um caminho a seguir. 

O cão Bolota, mascote da expedição no Rio de Janeiro.

Nessa espera, por um momento reparei… silêncio… percebi a ansiedade deles pelo atendimento, a curiosidade de ver gente nova, a animação por algo ser resolvido, o misto de gratidão e esperança em cada rosto com a testa franzida, segurando a emoção nos olhos e nas pernas saltitantes. Olhei aquilo e pensei logo em música, na triagem entre a aferição de uma pressão arterial e outra, pergunto a quem está ali: ‘O que acham de uma música? Vocês gostariam?’ ‘Sim! Claro! Por que não?’ E coloquei a playlist clássica que conquista o coração de qualquer um: MPB, já começando em alto estilo com ‘Drão’, de Gilberto Gil’. Achei aquilo tão sensacional… tem algo mais esperançoso que a semeadura de um grão? Semear saúde…

Uma das nossas primeiras pacientes foi A.C., senhora de olhos redondos expressivos, cabelos curtos e grisalhos, mãos firmes e sorriso tímido, que escondia um coração agoniado. Ela contava que estava passando por um tratamento de quimioterapia e desde de então sua pressão arterial nunca mais foi a mesma. Não tinha mais opções disponíveis de medicamentos para controlá-la, e o que funcionava era caro demais… Fizemos uma nova receita, solicitamos um ecocardiograma, e um pedido especial a uma unidade especializada. Demos a ela a medicação que tínhamos e que a ajudaria por um tempo. Lembro que eu e a médica que a acompanhamos sentimos por não poder ajudar mais e ela disse “isso é tudo” com os lindos olhos brilhosos e, assim, antes de ir embora, pediu um abraço.

Se eu pudesse resumir, numa única palavra, a ação dos doutores do mundo, a palavra seria “abraço”. É uma iniciativa que reúne pessoas de diversos estados dispostas a doar a si mesmas e seu trabalho em prol da humanização, do mesmo jeito que um grande abraço reúne pessoas que cultivam respeito e afeto entre si. Ao meu ver, isso é o conceito positivo de saúde divulgado pela Slow Medicine: puro e simples, que reitera que a saúde não só é um direito de todos, como integra tudo que envolve a vida de alguém: sua casa, sua família, seus sentimentos, a região onde mora, seu trabalho e tudo aquilo que a define.

No primeiro dia de atendimentos, bem cedinho, antes das pessoas chegarem, Stellinha nos explicou alguns cuidados que deveríamos ter com algumas falas e orientações, como a atenção ao racismo estrutural, prescrições com comprimidos (pois alguns pontos da comunidade não têm acesso a água) e a abordagem quanto a casos de violência doméstica. Esses detalhes foram observados, absorvidos e escutados de perto, algo que infelizmente o sistema de saúde atual não consegue dar conta por diversos motivos – falta de infraestrutura, má administração, limitação de recursos e a insana valorização da produção numérica de atendimentos. A questão é: o que é saúde para você? Para A.C., foi um abraço. Para nós, foi o Bolota. Para a Stellinha, é a própria comunidade que rege, é a base do seu trabalho. Ela criou o método Quadrilátero de Apoio, que compõe: Educação – seja escolar e psicopedagogia para as crianças, como ensino continuado para suas mães; Terapia – acompanhamento profissional centrado nas demandas dessas pessoas; Assistência social – ofertando informações sobres seus direitos e órgãos que podem auxiliá-las; Integração social – atividades que envolvam as crianças, mães e sua família na sociedade, com empoderamento, autonomia e conhecimento, e sempre respeitando sua cultura e realidade.

Conhecemos Michelle, assistida pela ONG e também cozinheira de mão cheia, olhos de mel, sorriso largo e tímido, bochechas rosadas e cachos dourados, nervosa em nos receber e preocupada se íamos gostar de sua comida. Disse para Stellinha ‘Eles são chiques né, estou nervosa…’ e aí quando chegamos e mostramos que somos na verdade tão humanos quanto eles, seu coração se abriu e sua comida encantou nossos dias. Todos fascinados com o seu tempero, comida de verdade, sabe? Bem Slow food, aquela que valoriza o afetivo do ingrediente, que tem o sabor que ela tem e nada mais! E quando perguntaram qual o segredo? Eu já sabia qual era… amor! 

E assim a nossa parceria casou tão bem que a nossa ida não só cuidou dessas mães e crianças, como elas que cuidaram da gente também! Assistir a elas energizou a nós e a todos: eles a continuarem e não desistirem (Drão). Dissemos a elas, sem falar muito inclusive, podem ir, mas agora vão com segurança e conhecimento sobre seu corpo, sua saúde e seu autocuidado. Foram ao todo 976 atendimentos, 37 DIUS colocados, 88 preventivos colhidos que serão examinados e seus resultados retornados à ONG em 30 dias, 60 ultrassons realizados, 118 vacinas de COVID e Influenza aplicadas (em parceria com a prefeitura do Rio), três tratamentos complexos e seis encaminhamentos que a ONG mediará, 240 kits dentais entregues, 1324 medicamentos ofertados, 50 kits de higiene, 198 óculos entregues e 8 palestras mediadas com assuntos como: infecções sexualmente transmissíveis, ciclo menstrual, sexualidade, métodos contraceptivos, primeiros socorros, câncer de pele, amamentação e planejamento familiar.

Todas ali saíram mais empoderadas e com os sonhos fortalecidos, mais conscientes de si. Mas… e nós? O grande misto humano nacional, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio de Janeiro , São Paulo, Minas Gerais, tudo junto e misturado… Chegamos acanhados e um pouco tímidos, uns já se conheciam outros não, mas os dias se passam e os pacientes nos aproximam, a causa nos aproxima, e quando menos esperamos já nos chamamos por apelidos, uns ajudam aos outros no que precisam, marcamos saídas, um dia fomos turistar pelo Rio. Alguns foram em busca do pôr do sol do Arpoador, a paisagem e o banho de mar renovou a todos nós. Aprendemos, ao ver o horizonte azul avermelhado, que esses momentos criam em nós memórias afetivas que nos dão sentido em continuar. Ao voltar para ONG, estávamos mais leves e com a certeza do significado embutido em nosso trabalho. 

Dos feedbacks que tivemos das pacientes ao longo dessa semana, o que mais foi dito por elas foi sobre a valorização do tempo, o tempo em ser ouvido, o tempo em ser examinado, o tempo em ter aquele espaço do paciente respeitado, o tempo em ser enxergado e é sobre isso… Voltamos a ele né? O tempo. Nós que temos o tempo, ou ele é que nos tem? Fica aí a dúvida já respondida por aqueles que querem ver. O importante na verdade é que o Doutores do Mundo ensina aos humanos por aí afora que às vezes precisamos até correr, mas será sempre necessário parar para um abraço.


Para mais informações sobre a Grupo Anjos da Tia Stellinha e o Doutores do Mundo:
Grupo Anjos da Tia Stellinha
Telefone: (21) 3496-5760
Site: https://grupoanjosdatiastellinha.org.br/
Instagram: @anjosdatiastellinha
Doutores do Mundo – Semeando Saúde: https://www.doutoresdomundo.org


Ana Carolina Eiris Pimentel: Enfermeira graduada pela Universidade Federal Fluminense, residente do Programa Cardiovascular da Universidade Estadual Rio de Janeiro vinculada ao Hospital Universitário Pedro Ernesto, admiradora do movimento slow e eterna aluna apaixonada pelo cuidado.

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