Por Elizabete Band:
“A pena é mais forte que a espada”
Edward Bulwer-Lytton em Richelieu ou the Conspiracy
qual foi o caso de infecção mais difícil que já tratei. Já se vão vinte anos de infectologia, e neles muitos casos complexos, mas responder a essa pergunta é fácil porque o caso de Marilia (nome fictício) me marcou muito e continua me servindo de norte quando preciso tomar decisões difíceis. Marília foi minha paciente durante quase três anos. Tinha perto dos setenta, e nenhum familiar vivo, exceto um sobrinho muito distante com quem não tinha contato. Com os pais já falecidos, solteira e sem filhos, ela era cuidada por cuidadoras profissionais e suas rotinas eram gerenciadas por uma amiga mais jovem. Quando me tornei sua médica ela já tinha uma lista de pelo menos quinze diagnósticos e para o controle de suas enfermidades tomava mais de trinta comprimidos ao dia, além de diversas injeções de insulina. Ela era cadeirante devido a uma fratura de quadril, e tinha uma perda visual progressiva em decorrência de uma retinopatia diabética de difícil controle. Era visível que seu sofrimento ultrapassava o físico – havia solidão, sim, muitas limitações, e, com isso, depressão e ansiedade, mas seu corpo também a traia, não conseguindo conter a vastidão de sua alma.
Marília era culta e viajada, e nos tornamos amigas. Fui a duas festas de natal em sua casa, em uma delas levei meu filho. Pedia conselhos, dividia angústias, ela era sempre muito acolhedora, embora tivéssemos nossos dias ruins – a frustração com suas limitações avançava a passos largos, e ela começou a sentir um incômodo muito grave: o mau cheiro da urina era constante, o que a desesperava. Marilia queria antibióticos para sua infecção, e nesse momento entramos em conflito: Marília não tinha infecção, e sim colonização urinária por bactérias. Não tinha nenhum outro sintoma, o que era um indicativo de que as bactérias que agora estavam morando em sua bexiga não estavam causando nenhuma inflamação ou invasão. A isso chamamos de bacteriúria assintomática. Hoje os guias de uso racional de antimicrobianos não recomendam o tratamento dessa condição, já que não será possível, na maioria dos casos, erradicar a microbiota instalada na via urinária em definitivo. Existem fatores de risco que fazem com que esse desequilíbrio se mantenha, e após o término do antimicrobiano alguns dias depois lá estarão as bactérias novamente. Se tratarmos sempre essa presença inofensiva delas entraremos em um ciclo infinito de tratamentos, o que em algum momento levará ao desenvolvimento de resistência aos antimicrobianos. Precisaremos de antibióticos cada vez mais caros, tóxicos e que aumentarão ainda mais o desequilíbrio ecológico dos pacientes, até o momento em que não teremos mais opções de tratamento, com risco de danos e mesmo de uma fatalidade.
Nenhum desses argumentos deteve Marília. Ela não tolerava o odor em sua urina por uma questão: sentia uma vergonha profunda quando suas cuidadoras trocavam suas fraldas e sentiam aquele cheiro. Isso afetava mais sua dignidade do que a perspectiva de dano a seu corpo causado pelos medicamentos. E eu já estava sem opções de manejo que não envolvesse antibióticos, já tínhamos ajustado o que era possível, hidratação, troca de fraldas, acidificação da urina… As suas vias urinárias não conseguiam mais se defender da invasão bacteriana.
Sugeri a ela tratar aquele episódio e manter antimicrobianos profiláticos, mas ela não conseguia tomar mais comprimidos – a enorme quantidade de medicamentos que usava já lhe dava náuseas antecipatórias. Tínhamos um impasse: eu sofria tanto pelo sofrimento que ela estava passando como pela ideia de lhe causar dano por um tratamento que não só não resolveria seu problema, mas provavelmente o aumentaria. Sem falar nas diversas potenciais interações medicamentosas dos antibióticos com todos os medicamentos que ela usava.
No fim das contas combinamos de tratar aquela colonização em um primeiro momento e manter um antibiótico profilático com melhor tolerância.
e a profilaxia deixou de funcionar. Ela começou a precisar de tratamentos mais complicados, com necessidade de antibioticoterapia parenteral, que causavam grandes equimoses em suas veias frágeis além de riscos a um rim já desgastado. Minha angústia crescia, mas ela ficava aliviada sem aquele cheiro forte de urina.
Marília faleceu de uma outra causa, antes que os tratamentos repetidos pudessem causar maiores estragos. Atendendo ela em casa, em seu ambiente, com tempo, largo conhecimento de seu histórico de saúde, de sua biografia, de seus valores e de suas angústias, pude buscar uma alternativa que fosse prudente, que respeitasse seu sofrimento e evitasse danos maiores.
Quantas situações iguais a essa não são tratadas no dia a dia de forma apressada, quanto dano nós, prescritores de antibióticos, temos o potencial de causar?
Nos últimos vinte anos vimos surgir, fortalecer e ganhar importância a iniciativa “saúde única” : a ideia de que pessoas, animais e meio ambiente têm sua saúde interligada. A infectologia, a mais ecológica das especialidades médicas, já lida com essa ideia desde o surgimento das primeiras infecções resistentes aos tratamentos convencionais. Cada pessoa é um ecossistema. Nossas prescrições têm um imenso poder de afetar seu equilíbrio, e as consequências são potencialmente devastadoras, exatamente por que somos interligados ao meio ambiente.
– com o uso de antibióticos desnecessários, por tempos muito longos, sem um olhar protetor ao paciente e seu microbioma. E onde está esse paciente, muitas vezes? Em ambiente hospitalar, onde tudo é muito mais rápido e automatizado. Quando estudamos causas do aumento de germes multirresistentes em hospitais, sabemos que os pacientes hospitalizados em geral são mais frágeis, mais doentes e têm mais necessidade de antibióticos. Mas também precisamos reconhecer que atualmente a pressa domina muitas das práticas hospitalares – com a sobrecarga de trabalho e a cultura da produtividade e metas. Nessa roda viva se esquece até do simples ato de lavar as mãos de forma rigorosa e sistemática, medida que é reconhecidamente fundamental para quebrar o ciclo de transmissão de microrganismos durante a assistência. Não temos tempo para exercer coisas simples e de enorme impacto. E os custos disso no fim das contas, em recursos e em vidas, é imensurável.
Existem situações que requerem tomada rápida de decisão, ação imediata, sempre. Afinal, em um infarto cerebral, tempo é cérebro. Em um infarto do miocárdio, tempo é músculo cardíaco. Em sepse, tempo também é vida, vida de qualidade, com menos sequelas. Essas situações requerem intervenção rápida e agressiva, sem dúvida. Mas em infectologia podemos rever nossas condutas depois que a emergência passou e os pacientes estão estáveis. Checar as culturas do paciente e ver se é possível trocar o tratamento para opções mais simples, ou se é possível até mesmo suspender os antimicrobianos. Hoje existem evidências crescentes de que menos é mais nos tratamentos de infecções – cursos mais curtos são igualmente eficazes em diversas situações, e agregam muito menos danos. “Bactérias não têm relógios”, costumamos dizer, e a contagem tradicional de tempo de tratamento em semanas vem sendo revisada. Hoje focamos mais em sinais clínicos de resolução de infecção do que em um tempo predeterminado. Todos nós somos sistemas diferentes – nós e nossos habitantes microscópicos – e o tempo de resolução das infecções também varia bastante.
A Organização Mundial da Saúde afirma que a resistência antimicrobiana é uma das dez maiores ameaças à saúde pública global da atualidade. A saúde única está ameaçada, e ela envolve todos nós. Nós que detemos o poder da pena – da caneta, do carimbo, do receituário, temos uma enorme responsabilidade: tomar decisões prudentes, individualizadas, seguras, levando em consideração todos os riscos potenciais dos antibióticos que prescrevemos, pensando não apenas em seu benefício. Antibióticos são facas de dois gumes, poderosos como as nossas canetas. Só o tempo pode nos auxiliar nessas batalhas. Tempo para pensar cada caso em todas as suas nuances, para decidir o momento certo de usar essas armas, e por quanto tempo as utilizaremos. Tempo, sempre o tempo, esse grande aliado.
Essa famosa frase pode ser interpretada de muitas formas – a pena, a caneta, são símbolos de ideias e de comunicação. A prescrição é uma de nossas armas. Que possamos sempre fazer o melhor uso dela, especialmente em casos como o de Marilia, tão complexos, buscando sempre em nossas decisões os maiores benefícios com o mínimo de riscos.
Elizabete Band: nasci em Salvador, a Roma negra. Criança, queria ser bióloga – era o amor pelo mar! – ou escritora; virei médica. Médica, me encontrei no estudo das doenças infecciosas. Me formei na UFBA na virada do milênio quando nos prometiam tecnologias que melhorariam o mundo. A realidade que se desenhou foi outra: excessos, pressa, mecanização de tudo. Após me titular pela Sociedade Brasileira de Infectologia pausei tudo e fui ser mãe do Gael. Com ele aprendi muitas coisas, inclusive sobre o tempo e essa pressa que estava tomando tudo. E fui entendendo que meu tempo é o da calma.
Hoje sou infectologista e também paliativista em construção, após aperfeiçoamento pelo Instituto Paliar em 2018. Trabalho atendendo pessoas que vivem com HIV em um centro de referência estadual e com infectologia geral em consultório. Visito pacientes em domicílio – e com eles aprendi tantas coisas sobre o tempo! Faço parte do SCIH do Hospital Aristides Maltez, centro oncológico que é totalmente filantrópico, 100% SUS e que nunca desde sua criação fechou as portas. Sou apaixonada por histórias e por história, por viagens, conhecimento e movimento constante. E por escrever também.
Tento juntar tudo que fui aprendendo no caminho em todas as minhas práticas – pessoais e profissionais. Acredito na vida e no trabalho calmo, prudente, respeitoso, amoroso. Acredito no um feito de muitos, no cuidado feito por múltiplos olhares. E acredito principalmente na escuta e no poder das palavras como fonte de transformação.
Parabéns! Adorei a leitura!
Belo e instigante texto. São fatos que fustigam nossa alma de Médicos que tratam gente como nossos pais, esposa, filhos… Como nós! Paramos o necessário para pensar, avaliar, refazer, introjetar em nossa vida e profissão? Saúde e boa jornada!
Gostei demais do texto. Ficou claro como o caso impactou sua vida profissional, Dra. Elizabete. Prazer em conhecê-la!
Grata, Celia! Esse foi realmente um evento muito marcante na minha vida – profissional e pessoal.