Por André Islabão:
O segredo da felicidade no trabalho está contida em uma palavra: excelência.
Saber como fazer bem alguma coisa é desfrutá-la.
Uma série de artigos recentemente publicados no JAMA[1][2] e no The Lancet[3] abordaram a questão da excelência diagnóstica, sua importância e as maneiras como poderíamos alcançá-la. O processo diagnóstico é parte fundamental da atividade médica, embora receba menos atenção dos pesquisadores que os aspectos terapêuticos da medicina. Talvez isso ocorra porque um bom diagnóstico não precisa necessariamente fazer uso das tecnologias mais caras ou modernas, uma vez que diagnósticos de excelência podem ser feitos a partir de coisas relativamente simples, como uma boa anamnese, o exame físico do paciente e, quando necessário, alguns exames complementares básicos. Ainda que os autores citem as disparidades na disponibilidade de tecnologias modernas entre países ricos e pobres como um problema significativo, este não é o foco principal dos artigos. Longe de ter uma relação direta com altos custos ou tecnologias de ponta, a excelência diagnóstica pode ser vista como o processo de obtenção de uma explicação adequada e precisa para os problemas apresentados pelo paciente.
O conceito de excelência diagnóstica enxerga o processo diagnóstico sob várias dimensões, às quais devemos nos adequar na busca pela excelência. É interessante observar que existe uma sobreposição evidente entre essas qualidades de um bom processo diagnóstico e os princípios da Slow Medicine, como na primeira dimensão, a qual diz respeito à segurança do paciente e nos remete imediatamente ao primum non nocere hipocrático. Nenhum procedimento diagnóstico deveria colocar a saúde do paciente em risco desnecessariamente.
O processo diagnóstico também deve ser oportuno. Em outras palavras, a rapidez com que se busca o diagnóstico deve ser adequada à gravidade da doença ou dos sintomas do paciente. Assim como não deveríamos perder tempo para firmarmos um diagnóstico na avaliação de um paciente com dor torácica aguda sugestiva de infarto do miocárdio, a velocidade de nossas ações poderia ser reduzida em casos menos graves ou quando um diagnóstico sindrômico poderia ser suficiente em um primeiro momento, como no caso de um paciente jovem com um quadro sugestivo de gastrenterite e sem repercussão sistêmica. É preciso lembrar que existem até mesmo situações em que o tempo pode ser usado como ferramenta diagnóstica, um conceito que alguns autores chamam de “demora permitida”.
A efetividade de um recurso diagnóstico é também um aspecto importante a ser observado. É preciso fazer uma diferenciação entre a eficácia – a acurácia que um método diagnóstico apresenta nos ensaios clínicos onde é testado – e a efetividade de uma intervenção diagnóstica – a acurácia obtida pelo mesmo método na vida real e com pacientes que podem ser bastante diferentes daqueles definidos pelo delineamento dos ensaios clínicos. Um bom recurso diagnóstico deveria ter uma efetividade real comparável àquela demonstrada nos ensaios clínicos.
Dois aspectos interessantes e que costumam andar juntos na avaliação da excelência diagnóstica é o seu caráter eficiente e igualitário. A eficiência se refere à relação entre o custo do método diagnóstico utilizado e o benefício que ele proporciona, devendo considerar que os recursos de qualquer sistema de saúde são sempre limitados. Assim, um recurso como a ressonância magnética pode ser muito efetivo para diagnosticar ou afastar determinadas patologias complexas ou graves, mas ela se torna altamente ineficiente se for utilizada em todos os casos de cefaleia que apareçam na prática clínica diária. Além disso, a excelência diagnóstica propõe que o processo seja igualitário, ou seja, que todas as pessoas que necessitam de um recurso tenham acesso a ele independentemente de seu grupo socioeconômico. É preciso lembrar da onipresente “síndrome do cobertor curto”: em um sistema com recursos finitos, sempre que houver exagero de alguns, haverá falta de recursos para outros.
Por fim, toda essa busca por excelência não teria sentido se o processo não considerasse os valores do próprio paciente e fosse ajustado a eles. Os valores e preferências do paciente devem pautar, sempre que possível, as decisões diagnósticas. Além disso, um processo diagnóstico de excelência deve poder ser transmitido em linguagem compreensível ao paciente, tanto para que ele possa entendê-lo claramente como para que possa nele introduzir suas preferências. Isso diz respeito à autonomia do paciente – a qual deve ser preservada sempre que possível – e à possibilidade de uma tomada de decisão conjunta entre médico e paciente. Também é preciso lembrar que, mais do que chegar a um diagnóstico preciso no menor prazo possível, o paciente quer obter alívio para seus sintomas. Assim, a busca obstinada por um diagnóstico de certeza não deveria nunca nos desviar da prioridade de aliviar o sofrimento do paciente. É improvável que a administração oportuna de um analgésico efetivo retarde de maneira significativa o processo diagnóstico.
É interessante observar este feliz entrelaçamento entre a excelência diagnóstica e os princípios da Slow Medicine. Ele deixa bastante claro que é possível fazer uma medicina sem pressa e, ao mesmo tempo, manter a excelência em nossas escolhas, sem qualquer prejuízo para nossos pacientes. Aliás, a excelência diagnóstica proposta nessa série de artigos nada mais é do que a medicina sóbria, respeitosa e justa proposta no manifesto da Slow Medicine. Ela é sóbria porque se propõe a fazer todo o necessário para chegar ao diagnóstico correto, mas tomando o cuidado de evitar desperdícios, excessos e riscos desnecessários. Ela é respeitosa porque considera os valores e preferências dos pacientes, além de respeitar o ritmo próprio da evolução de cada doença. E ela é justa porque se propõe a oferecer os recursos diagnósticos de maneira igualitária a todas as pessoas que deles necessitem.
[1] Yang D, Fineberg HV, Cosby K. Diagnostic Excellence. JAMA. 2021;326(19):1905–1906. doi:10.1001/jama.2021.19493
[2] Berwick DM. Diagnostic Excellence Through the Lens of Patient-Centeredness. JAMA. 2021;326(21):2127–2128. doi:10.1001/jama.2021.19513
[3] Transforming access to diagnostics: how to turn good intentions into action?https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)02182-6/fulltext?dgcid=raven_jbs_etoc_email#articleInformation
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André Islabão é médico clínico geral, formado em Pelotas, RS. Exerce seu trabalho na Santa Casa de Misericórdia, em Porto Alegre, e em consultório privado. Além disso, é escritor – escreveu as obras “Entre a Estatística e a Medicina da Alma – Ensaios Não-Controlados do Dr. Pirro”, livro cujas ideias se entrelaçam de maneira muito natural à filosofia da Slow Medicine e o recém-lançado “O Risco de Cair é Voar“. É autor do blog andreislabao.com.br
PS: A foto que ilustra a matéria é de Miklós Fóth, no grupo do Facebook Fine Art and Long Exposure Photography
(The Ballerina In Black Model: Fanny Müller (Hungary)Budapest, October 2021)