Entra cantando, Apolo, entra cantando

janeiro 8, 2021
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Por: Jaqueline Doring Rodrigues

“Entra cantando, entra cantando, Apolo!
Entra sem cerimônia, a casa é tua;
Solta versos ao sol, solta-os à lua,
Toca a lira divina, alteia o colo.”

Machado de Assis

Encerrou-se o ano de 2020, e, como em todos os anos, sentimos como se houvesse uma nova folha em branco a ser escrita, não fosse pelo PS no rodapé lembrando: a pandemia ainda não acabou. Aquele “check” nos planos do ano passado, para muitos, não ocorreu. Alguns dizem que foi um ano perdido – desconsidero essa possibilidade, já que foi um ano de maior consciência coletiva (ao menos havia um potencial para isto). E não há melhor forma para qualificar o tempo do que pela consciência. Assim, neste início de texto – e de ano –, invoco o Deus Apolo para que entre cantando e, com sua lira, desperte a esperança.

Há outonos que valem primaveras

A única certeza que podemos ter do futuro é quem vamos ser. Qualquer outro desejo está a depender do ambiente, do tempo ou dos outros. Todo o resto. Caso o seu propósito de vida esteja associado com o “ser”, em vez do “ter”, certamente você não foi um dos que postaram em suas redes sociais que 2020 foi um ano perdido ou zerado. Ouso dizer que foi um ano de outono que valeu por primaveras.

“ (…) Se não possui as primitivas heras,
Vibra-lhe ainda a intensa vida sua,
E há outonos que valem primaveras.”

Machado de Assis​​

​​​​​

Esperança é o presente tocando por instantes o futuro. É a alegria passando o texto, imaginando o dia do espetáculo. E, na valsa do tempo, é a música que conduz a dança, pois não chegaríamos ao allegro assai da vida sem o adagio da esperança.​​​

A ausência de esperança leva ao desespero (des + esperança), às trevas. Dante Alighieri confirmou esta concepção na Divina Comédia com a inscrição na porta do inferno: “Lasciate ogni speranza, voi chéntrate” (“Deixai toda a esperança, ó vós que entrais”). Sem esperança, nossa estrutura psicológica rompe-se. Portanto, a menos que queiramos a escuridão, para o ano que se inicia, sugiro que guarde no bolso um frasco de esperança. Daqueles de pingar nos olhos e passar a ver a vida com mais calma, paciência, serenidade e segurança.

Identidade

Notamos uma mudança na história do cenário cinematográfico, em que plataformas de streaming ganharam espaço em detrimento das tão nostálgicas salas de cinemas. Isso ocasionou uma revolução na rapidez da produção dos filmes e das séries, além de gerar fenômenos de “bilheteria” virtual. O mais recente caso foi a série O Gambito da Rainha. E por que fez tanto sucesso?

Um dos motivos considero porque as manifestações artísticas como filmes, séries, teatros, músicas e livros são formas de superar tragédias. O artista torna-se o porta-voz permitindo o enfrentamento de traumas que estavam reprimidos, trabalhando a emoção de forma controlada. Um portal para o auto-conhecimento que talvez de outra forma levasse mais tempo para acessá-lo.

A palavra sucesso, no mais requintado significado, quer dizer “ter usado todo o seu potencial”. Nessa linha de pensamento, a repercussão dessa série mostra o quanto ficamos maravilhados quando uma pessoa desfruta de seu potencial, superando falhas humanas, vícios e/ou autossabotagens. Algo como quando uma pessoa comum encosta seus dedos em um pedacinho do céu e consegue sentir aquela centelha divina em si. O cinema faz com que esse sentimento chegue até nós com especial emoção. Nesse momento, inspiramo-nos, pois sentimos um pouco dessa vitória e a possibilidade de replicá-la. Basta permitirmos que possamos ser – sem comparações, sem medos, sem julgamentos.

Não se trata de ser homem ou mulher, de ser em prol de um partido político ou outro. Trata-se de ser. Quando acreditamos em nós mesmos, acreditamos no outro. Quando esquecemos de nós mesmos e alguém acredita em nós, lembramos quem somos de novo. Portanto, pessoalmente, creio que existe apenas uma verdade: o amor. Porém, com duas faces: amor e medo, sendo uma a expressão do amor, e a outra, um pedido dele.

A série trouxe o tema da identidade de maneira muito forte, ao retratar a união mediante a aceitação genuína do outro, respeitando suas individualidades. Ao sentir o outro e vê-lo com compreensão, houve a união. Ter identidade própria deixa-nos tão vulneráveis quanto fortes. Quando nos deixamos ser vulneráveis, há mais espaço para os outros se identificarem. E não há fraqueza nisso, ao contrário: a identificação é um terreno fértil para a compreensão, e nele é cultivado o amor.

O princípio da Individualização do movimento Slow Medicine reconhece a individualidade dos pacientes e transforma o processo da terapêutica em uma oportunidade de resgatar a sua identidade. Da mesma forma assume ser fundamental o cuidado do profissional de saúde com relação à sua própria identidade, pois é muito comum nos despersonalizarmos ao vivermos o sofrimento dos outros. Por isso, a importância do: “Quem sou eu que atende o outro?”

Interlúdio

Não se trata de ganhar ou perder, mas de aceitar e seguir jogando, atuando nesta grande peça de teatro em que todos os personagens são você mesmo, para que veja seus males e se cure. A cada ato, uma persona a menos, até restar somente você num tempo de Kairós – pouco importa o tempo de Chronos, a idade. Como dizia o poeta, “meu tempo é quando”. Esse quando é o dia em que escolher libertar-se da programação de encenar o roteiro do ego.

Em um ano de leigos discutindo sobre tratamentos precoces, de colegas assumindo posições questionáveis e de polêmicas na liderança política, tivemos a sensação de estarmos carregando o peso da pandemia nas costas. Isso porque, como médicos, estamos constantemente fazendo escolhas e nos responsabilizando por elas. Chegou um momento em que, quando havia um enfrentamento por parte de outra pessoa, com necessidade de validações ou convencimento sobre algum argumento, era como se estivessem me convidando: “Quer uma carona?”. Então, a resposta vinha sutilmente: “Não, obrigada, prefiro ir andando”.

Caminhando, consigo enxergar melhor as possibilidades, com sobriedade, o que é um dos fundamentos do Slow Medicine. É no slow da caminhada, e não no fast do carro, que podemos refletir com discernimento e não simplesmente pegar carona nas opiniões alheias.

A vida é um palco para realizarmos nossa cura. No entanto, ao invés dessa busca, estamos gerando mais dor, sofrimento, culpa e doença. Por isso, às vezes, precisamos do fechar de cortinas para o próximo ato – e, quando elas se abrem, temos uma nova chance. Assim, inicio 2021 com a humildade de quem sacrifica seu peão, resisto com a prudência à siciliana e, se precisar recuar, como uma dama, escolherei ir andando.


Jaqueline Doring Rodrigues: Sou médica geriatra e especialista em Cuidados Paliativos. Graduada pela Faculdade de Medicina da Universidade de Passo Fundo ( UPF) em 2011. Trabalho no atendimento domiciliar do serviço de Cuidados Paliativos do Hospital Oncológico Erasto Gaertner, em Curitiba/PR, atendo em consultório privado como Geriatra e em assistência domiciliar. Sou Membro e Secretária da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores (Sobrames), regional Paraná. A Geriatria é para mim uma forma de resgatar a beleza das curvas do tempo ressignificando o envelhecimento e proporcionando um cuidado digno em todas as fases da vida. Encantada pelas pessoas e suas histórias, encontro na escrita e na filosofia um caminho para o desenvolvimento das potencialidades humanas. Assim, aspiro cumprir as três funções que a natureza destinou aos homens: valores, virtudes e sabedoria.

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