Por Ana Coradazzi
“Nenhuma pergunta é tão difícil de responder quanto aquela cuja resposta é óbvia.” – George Bernard Shaw
Sábado à noite. Cinco minutos de carro foram suficientes para encontrarmos multidões de pessoas aglomeradas em volta de algum veículo com som alto, ou no entorno de algum bar, ou simplesmente conversando pelas ruas. A grande maioria sem máscaras, e todas a menos de um metro de distância umas das outras (na verdade, a bem menos de um metro). Nada por ali lembrava que estamos vivenciando a maior pandemia da história moderna. Nada lembrava, sequer, que aglomerações passaram a ser atos irresponsáveis num nível bem mais amplo que o individual: passaram a ser imorais. Mas, olhando todas aquelas pessoas, era difícil acreditar que todas elas fossem realmente irresponsáveis, imorais ou mal-intencionadas. Acreditar nisso seria, no mínimo, deprimente. Seria a constatação de que não merecemos mais o charmoso título de únicos animais racionais do planeta. Pior: seria a prova inconteste de que somos uma raça em franca decadência.
Mas, se não estamos diante de seres humanos coletivamente (e gravemente) empobrecidos de suas faculdades mentais, o que explica tudo isso? Se informações não nos faltam (pelo contrário, estamos quase nos afogando em meio à infodemia), se boas intenções não nos faltam (sim, prefiro acreditar que todo mundo é bem intencionado até prova em contrário), e se condições logísticas não nos faltam (afinal, custa menos ficar em casa do que sair para a balada), o que nos falta? Obviamente, uma única resposta simples não seria suficiente aqui, mas podemos tentar compreender. Mais do que isso, podemos olhar para nossos próprios umbigos e tentarmos reconhecer, entre as atitudes que duramente criticamos nos outros, os traços humanos que fatalmente nos unem a eles.
A saúde é sempre comemorada como nosso maior bem enquanto seres viventes. Ao mesmo tempo, nós a expomos o tempo todo a riscos e desafios. Comemos junk food, adiamos a caminhada para a próxima semana, mantemos hábitos sabidamente deletérios, acolhemos o estresse do dia-a-dia como se fosse normal. Quando muito, mudamos um ou dois desses maus hábitos em nome de atingirmos um patamar mais alto de bem-estar. Mas, mesmo entre as pessoas mais disciplinadas em relação à própria saúde, não será necessário procurar muito para encontrar atitudes que as coloquem em risco: não há argumento que faça uma mãe ficar longe do filho doente, mesmo que o risco dela mesma adoecer seja imenso. Todos nos expomos a riscos, maiores ou menores, e nós os assumimos por motivos que moram nas profundezas do nosso ser. O grande desafio acontece quando a exposição individual a riscos se transforma em exposição coletiva, como temos visto durante os longos meses de pandemia. Aqui, a compreensão precisará ir além da pessoa e migrar para a coletividade, até para a própria raça humana. Teremos que fazer melhor juntos.
No início dos anos 50’s, um grupo de psicólogos do U.S. Public Health Service mostrou-se muito preocupado com o baixo número de pessoas submetidas a exames de triagem para tuberculose, mesmo com a disponibilização de aparelhos de raio X perto de seus domicílios (1). Eles queriam compreender o que fazia com que as pessoas não se engajassem na realização de um exame simples, de baixo risco, que poderia detectar precocemente a doença e, assim, tratá-las de forma muito mais eficaz. A resposta, obviamente, não estava na capacidade de raciocínio lógico, visto que não havia motivo racional para não realizar uma radiografia pulmonar. Foi na busca por compreensão desse comportamento ilógico que foi construído o Health Belief Model (HBM), um modelo psicossocial de mudanças comportamentais relacionadas à saúde, atualizado nos anos 80’s e utilizado até hoje para desenhar estratégias que promovam o engajamento das pessoas, principalmente em questões de saúde pública (2). Falando de uma forma bastante simplificada, o HBM leva em conta que nossas percepções individuais a respeito da saúde e das doenças têm um papel determinante no nosso comportamento relacionado a elas. Nossas atitudes estão fortemente relacionadas à percepção subjetiva que temos a respeito dos obstáculos a serem enfrentados para adotar determinado comportamento, dos benefícios individuais que obteremos ao adotá-lo, da nossa própria susceptibilidade à doença que queremos evitar, da severidade e consequências que essa doença poderia ter em nossas vidas, e da nossa própria capacidade de adotar o comportamento preconizado (3).
Não nos sentimos motivados a parar de fumar (um hábito que provoca relaxamento e prazer), se acreditamos que o risco de termos câncer de pulmão é pequeno ou distante. Também não nos empenhamos em usar protetor solar se, para nós, o risco de câncer de pele parece remoto. E assim seguimos com nossas atitudes muitas vezes ilógicas e até antagônicas, permeadas por questões emocionais que abrem grandes crateras em nossas atitudes pretensamente racionais. Quando estamos apaixonados, não nos importamos com o risco de pegar o resfriado da pessoa amada através do seu beijo. Mas, se um colega de trabalho de quem não gostamos espirra ao nosso lado, imediatamente saímos de perto (e ainda comentamos com os outros o absurdo dele ter ido trabalhar gripado, colocando a todos em risco).
É claro que fatores externos podem influenciar nossas decisões. Se recebemos informações incorretas, orientações inadequadas ou sugestões ineficazes, isso pode nos induzir a más decisões. A desinformação e as orientações baseadas em interesses políticos, pessoais ou financeiros estão, inclusive, entre os aspectos mais funestos da pandemia. Mas ao introjetarmos tudo isso em nossas vidas, não há como fugir da responsabilidade: as decisões finais são nossas. São as nossas limitações cognitivas e emocionais que nos fazem reagir desta ou daquela forma ao que recebemos do mundo. Se acreditamos que o risco de adquirirmos a covid-19 é baixo, qualquer discurso negacionista nos comoverá, resultando no desprezo pelas máscaras e/ou pelo distanciamento social. Se acreditamos que, para nós, a doença será apenas uma gripe leve, não nos sentiremos dispostos a sacrificar nosso convívio social para evitá-la. Se entendemos que a adoção das medidas preconizadas nos trará prejuízos (sociais, financeiros ou emocionais), nossa propensão a adotá-las será muito baixa. O desafio aqui é muito grande: estamos falando de uma doença que, embora seja altamente transmissível, causa poucos sintomas (ou até sintoma nenhum) na maior parte das pessoas, e cujas medidas necessárias para evitar a transmissão têm um impacto brutal na vida de todos. Estamos pedindo que as pessoas modifiquem completamente suas vidas em nome da preservação das vidas de alguns de nós. Estamos pedindo demais? Acho que não. Nada é mais humano do que a empatia e a compaixão. Vemos sacrifícios muito maiores todos os dias. Assistimos imensas campanhas nacionais para ajudar uma única criança a obter um tratamento caro, ou organizações de pessoas voltadas exclusivamente a ajudar o próximo. Isso significa que temos em nós o desejo intrínseco de auxiliar, de proteger, de doar. A questão é o quanto estamos dispostos a sacrificar de nós mesmos, e em que estamos dispostos a acreditar. Podemos acreditar no que quisermos: do discurso do político poderoso à mensagem da tia no grupo do aplicativo de celular, do cientista renomado ao pseudocientista viciado em holofotes, da conceituada instituição de saúde ao vídeo sem autoria definida que está viralizando nas redes sociais. Mas precisamos ter em mente o quanto nós mesmos nos pregamos peças, no quanto nossos desejos e crenças pessoais podem nos induzir a más decisões e a erros de julgamento, e no quanto podemos ser irresponsáveis e cruéis sem nos darmos conta disso. Não podendo confiar cegamente em nossos julgamentos, precisamos escolher, com cuidado, em que (e em quem) acreditar.
Eu, pessoalmente, acredito na Ciência. Não porque ela está sempre certa, mas porque conheço suas limitações. A Ciência nos mantém próximos da possibilidade de errar, ela expõe nossa pequenez e nos faz mais humildes. A humildade é uma ferramenta poderosa para minimizar nossa tendência a acreditar no que gostaríamos em detrimento da realidade, e isso talvez seja a questão mais importante: a realidade independe do que nós acreditamos. Ela simplesmente está lá. As pessoas não deixarão de morrer de covid-19 porque eu ou você acreditamos que a doença não é assim tão grave. E o vírus não vai deixar de circular porque nós “decidimos” que a vacina não funciona. A realidade independe de nós, mas nossos atos podem modificá-la. A Ciência pode ajudar a tomarmos atitudes melhores que não dependam dos nossos vieses cognitivos, e por isso acredito nela. E acredito, principalmente, nas pessoas que sofrem. Seu sofrimento me é apresentado todos os dias, e não tenho como ignorá-lo. Talvez as centenas de pessoas aglomeradas no sábado à noite não tenham tido a infelicidade (ou a oportunidade) de tocar o coração de pessoas em sofrimento com os próprios dedos. Ou talvez o sofrimento alheio tenha sido tão assustador que elas decidiram afastar-se dele, preferindo acreditar que era apenas uma ilusão ou uma possibilidade tão remota que não vale o sacrifício de tentar evitá-lo. Mas o mais provável é que elas tenham se deixado levar pelos doces braços das armadilhas psicológicas que trazemos instaladas em nossa condição de humanos, maquiando a realidade de forma a deixá-la menos desconfortável ou dramática. A ironia cruel disso tudo é justamente essa: nossos traços, tão humanos, têm nos desumanizado.
A pandemia não modificou as pessoas. Ela apenas as expôs. Algumas atitudes irresponsáveis (ou imorais) não as transformarão em monstros irrecuperáveis. As atitudes podem ser lamentáveis, mas a pessoa por trás delas ainda é um ser humano, em evolução como todos os outros, buscando sua melhor versão. Mas é sempre bom lembrar que nós raramente já somos a melhor versão de nós mesmos, e que cabe a nós melhorar nossas próprias atitudes a cada dia que se inicia. Faz parte de ser um humano que orgulhe a raça o desejo de melhorar a si mesmo e o mundo ao nosso redor. Se a dor do outro não te afeta, quem precisa de ajuda é você.
Referências bibliográficas:
Ana Lucia Coradazzi: Sou médica, graduada pela Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP. Concluí a residência médica em Hematologia e Hemoterapia na UNESP e, posteriormente, a residência em Cancerologia Clínica no Hospital Amaral Carvalho, em Jaú/SP. Foram o imenso desconforto e a sensação de impotência ao lidar com pacientes em sua fase final de vida que me levaram a cursar uma pós-graduação em Medicina Paliativa pelo Instituto Pallium, em Buenos Aires, o que mudou de forma irreversível os rumos da minha vida. Criei a Unidade de Controle da Dor e Cuidados Paliativos do Hospital Amaral Carvalho, onde permaneci como coordenadora até outubro de 2015, e depois trabalhei no Centro Avançado em Terapias de Suporte e Medicina Integrativa (CATSMI) do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, até 2019.. Atualmente sou responsável pela equipe de Oncologia Clínica da Faculdade de Medicina da UNESP, em Botucatu. Sou autora dos livros No Final do Corredor e O Médico e o Rio, nos quais escrevo sobre o quanto nosso envolvimento nas histórias de vida dos pacientes pode ser transformadora, principalmente para nós mesmos.
Moro em Jaú, no interior de São Paulo, com meu marido Fábio e as duas luzes da minha vida, Mariana e Lorena, além da minha coelha de estimação, Julieika. Junto deles, busco o equilíbrio de que tantos dos meus pacientes falam, encontrando na corrida e na prática do yoga a paz que preciso para manter a mente saudável.
Bom dia.
Sou formado na XIV Turma de Medicina de Botucatu, seu texto várias vezes me levou às lágrimas, a morte este ao meu lado, no dia a dia por 35 anos, fui Legista além de Otorrinolaringologista, o que você escreve encontra eco na maioria dos acidentados, sempre encontraremos pelo menos uma das condições: negligência, imprudência ou imperícia. Parabéns pela maneira clara pela qual suas idéias são posta, impecável.
Estamos criando no Hospital Unimed de Itapetininga os Cuidados Paliativos e gostaria de saber da colega sobre a possibilidade de sua vinda para nos brindar com uma palestra, quando a Pandemia deixar de ser esse fantasma. Aguardando por sua resposta. Obrigado mais uma vez
Bom dia, Edson! Obrigada pelas palavras generosas! Quem sabe conseguimos combinar essa palestra em Itapetininga? Vamos nos falando!!
Uau… li há pouco, relerei outro dia, e encaminhei para algumas pessoas
Obrigada, Naor!!! Um grande abraço!