Por Ana Lucia Coradazzi:
Eu vinha ouvindo comentários sobre o primeiro livro de André Islabão já há algum tempo, mas foi só depois de conhecê-lo pessoalmente (ou quase, se levarmos em conta a tela do computador entre nós) que acabei finalmente encomendando um exemplar, e logo nas primeiras páginas me perguntei por que não li o livro antes. Descrevo aqui como “livro” por falta de uma palavra melhor, mas Entre a estatística e a medicina da alma: ensaios não controlados do Dr. Pirro transcende o conceito habitual de um livro. Ele é uma experiência completa.
André é médico internista, com uma vivência considerável em medicina, mas o que torna seus textos impactantes não é a prática médica em si, e sim o olhar inquieto, instigante e questionador. O livro, composto de textos curtos sobre os mais diversos assuntos em saúde, faz o que toda obra literária deveria fazer e nem sempre (ou, ultimamente, quase nunca) faz: obriga o leitor a abandonar sua zona de conforto e, queira ou não, pensar. Do linguajar médico à ditadura das estatísticas, das pré-doenças aos excessos farmacêuticos, das rugas nossas de cada dia à morte que acena para todos nós, os textos vão desafiando crenças, verdades absolutas e toda uma cultura que precisa ser transformada (sim, com certa urgência, mas também sem pressa).
André executa essa proeza com maestria. Escolhe títulos provocativos e debochados (como Estamos todos pré-mortos, Era sol que me faltava!, A mente capta, ou Toda mudez será castigada). Traduz, para o bom e velho Português, os assuntos que nós médicos insistimos em manter em Mediquês pouco acessível. Explora assuntos que há muito deixaram de ser questionados no meio médico para trazer sobre eles um olhar mais sensato e pertinente, desafiando a solidez de conceitos como a soberania das estatísticas e as estratégias de prevenção. E, acreditem ou não, faz isso sem abrir mão do humor e da ironia, que tornam a leitura decididamente deliciosa.
Como se não bastasse o conteúdo rico, os detalhes do livro beiram a ostentação. As páginas com formas geométricas que separam os capítulos, convidando à leitura sem pressa e ao desfrute das palavras. O cuidado com cada frase, que nos mantém absortos no texto (e sim, isso é quase um milagre nos tempos acelerados de hoje). E o presente em forma de música, com melodias escolhidas a dedo para ampliar a experiência da leitura, e disponibilizadas em QR codes para ouví-las enquanto lemos. Definitivamente deveria haver uma palavra diferente de “livro” para categorizar este aqui.
Há muito dos princípios da Slow Medicine nos textos do André. A valorização do tempo, a individualização das condutas, a construção da qualidade de vida a partir da autonomia e do protagonismo das pessoas sobre assuntos relacionados à saúde, o uso – parcimoniosíssimo – da tecnologia, e a saúde que vai além da medicina. Mas talvez o que seja mais slow no Dr. Pirro seja a sua coragem de pensar fora da caixa, de questionar o inquestionável, de relembrar nossa condição de humanos (e, portanto, falíveis e mortais). Não é pouco. Aliás, não é nem perto de pouco. Buscar sensatez e equilíbrio em meio ao caos insano que vivenciamos na saúde hoje é, para dizer o mínimo, revolucionário. Exige dar um (ou mais) passos atrás, respirar fundo, olhar compassivamente e, enfim, agir com cautela e precisão. Exatamente o que propõe uma medicina sóbria, respeitosa e justa.
Entre a estatística e a medicina da alma é um livro para qualquer um, médico ou não, doente ou não, angustiado ou não. Para usufruir do seu valor, bastam duas condições: ser da raça humana e se deixar provocar. Cabe, aqui, um alerta de gatilho: os textos contidos no livro podem causar efeitos permanentes, como um desejo irrefreável de exercer a medicina de uma forma menos automática e mais cautelosa, um impulso irreversível de tomar as rédeas da própria saúde, e uma irresistível intuição de que estamos, sim, prestes a vivenciar uma mudança assombrosa (e bem vinda) nos rumos da Humanidade. Como o próprio André descreve no livro, já tem cheiro de carniça no ar, mas somente os corvos conseguem sentir com antecedência.
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Ana Coradazzi: Médica, graduada pela Faculdade de Medicina de Botucatu – UNESP, com residência médica em Hematologia & Hemoterapia e, posteriormente, residência médica em Oncologia Clínica. Cursou a pós-graduação em Medicina Paliativa pelo Instituto Pallium, em Buenos Aires, o que mudou de forma irreversível os rumos da sua vida. Criou a Unidade de Controle da Dor e Cuidados Paliativos do Hospital Amaral Carvalho, onde permaneceu como coordenadora até outubro de 2015. Atuou como médica do Centro Avançado em Terapias de Suporte e Medicina Integrativa (CATSMI) do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, até 2019. Atualmente é responsável pela equipe de Oncologia Clínica da Faculdade de Medicina da UNESP, em Botucatu. É autora dos livros No Final do Corredor e O Médico e o Rio, e editora do blog www.nofinaldocorredor.com, nos quais escreve sobre o quanto nosso envolvimento nas histórias de vida dos pacientes pode ser transformadora, principalmente para nós mesmos.