Errar é humano: mais humano ainda é atribuir o erro aos outros

julho 3, 2018
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Por Lívia Callegari:

Sou quem sou porque somos todos nós.

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A reportagem Revista Super Interessante, matéria de capa publicada na edição 391, intitulada Erro Médico, traz números alarmantes das falhas e eventos adversos na assistência em Saúde, que acabam por gerar aumento exponencial de mortes e demais prejuízos ao paciente, situação esta que ocorre não apenas no Brasil, mas também em outros países. Em que pese o atual cenário da área saúde no país, essa expressiva quantidade de lamentáveis acontecimentos, de fato, poderiam ser evitáveis.

Sem adentrar em determinados meandros de ordem técnica, apesar da reportagem se escorar em essência de uma cultura meramente punitiva, além de tratar qualquer falha em saúde como puro e simples erro médico e não se aprofundar em alguns elementos essências que possam advir do sistema, ainda assim, acaba por trazer importantes reflexões acercada necessidade de mudança, que pode ser consubstanciada no resgate da velha arte de cuidar.

Obviamente que, tal cenário de degradação se instala por haver uma assistência à Saúde massificada, escorada na pressa, metas evidentemente baseadas em conflitos de interesse, segundo o qual o paciente passa a ser um número dentro de estatísticas de questionável valor, e não um indivíduo a ser analisado holisticamente e de acordo com os seus valores pessoais. Esse modelo que preconiza procedimentos e não qualidade, acaba por confluir em um direcionamento que, invariavelmente, conduz à insegurança do sistema, associado a um dano que gera comprometimento de uma função do organismo do paciente que, em sua medida extrema, pode levar à morte, ou uma disfunção física, social ou psicológica, e  que pode, ainda, ocasionar reflexos a terceiros. Esses acontecimentos  em muitas situações é ocasionado pela falta de comprometimento nas relações. Por sua vez, os pacientes, que padecem desse sistema descompensado, são os imediatos receptadores dessas ingerências e as reais vítimas de eventos adversos.

É bem verdade que, em virtude de fatores imponderáveis ou de difícil controle, a área da saúde guarda em si um risco intrínseco. Acreditar que, por exemplo, um procedimento cirúrgico possa ser totalmente isento de complicações, é uma  quimera. Crer, também, que um profissional nunca vá cometer uma falha, é outra ilusão. Todavia, evitar-se incidentes que invariavelmente levarão o paciente ao um risco desnecessário, ou talvez potencializá-lo é uma obrigação, e não apenas regra do bom senso ou um ditame ético. O que deve existir é o desenvolvimento de cultura de segurança, segundo a qual,  tenha por objetivo reduzir a um mínimo o risco de dano associado ao serviço de saúde.

Nesse diapasão, a prestação de serviço de saúde deve ter como foco o paciente, e não interesses escusos. Isso porque, é direito fundamental do indivíduo a proteção, o cuidado humanizado e a qualidade na prestação do serviço, essencialmente que se dá com o fundamental  resgate da relação profissional da saúde-paciente, a pedra fundamental da Slow Medicine.

Imprescindível, portanto, abordar o paciente de maneira não açodada, com o desenvolvimento de técnica adequada para dividir as informações a fim de que haja uma decisão compartilhada, sem se olvidar que durante esse processo deve haver  a adoção da escuta ativa, comunicação adequada, cautela, ponderação, sensibilidade, sopesamento de valores, empatia, além de adotar o uso parcimonioso e racional da tecnologia, pois se distante a isso, como  nas palavras do Dr. Dário Birolini, “quando não se estabelece relação médico-paciente, há um mero negócio.”

Outrossim, e sem esquecer da importância, também é necessário desenvolver planos que visem à segurança ao paciente, para que não seja causado  dano inaceitável à vida – considerada no seu amplo espectro – que, além criar repercussões jurídicas, também geram prejuízos de ordem financeira e desperdício desnecessário para o sistema. De igual sorte, um ambiente inseguro, igualmente causa desmotivação e pressões extraordinárias sobre o profissional, que pelo desgaste físico e emocional, pode desenvolver burnout. Com efeito, o trabalho que poderia ser exercido com maestria, fica totalmente a desejar. Portanto, nos mais variados setores, quando inexiste a cultura da segurança e se abre margem para o surgimento do dano, perde o paciente, perdem os profissionais, perdem as instituições e perde a sociedade.

Deve-se respeitar a essência humana de todos os envolvidos no sistema, pois quando um evento adverso ocorre, ainda que estatisticamente mensurado em um risco mínimo, quando ocorre, para aquele paciente individualmente, representa cem por cento.

Protocolos assistenciais baseados em evidência científica, e não em interesses econômicos, são importantes para servirem de norte ao raciocínio clínico e não para engessá-los, pois na prática deve haver a individualização no atendimento. Respeitar processos racionalmente propostos e realizar concretamente  checklist de cirurgia segura com conferência ativa, também são fundamentais, pois a prevenção é a chave para aspectos comportamentais e não deve estar adstrita ao médico, mas também aos demais profissionais da saúde sem exceção, por ser a efetiva barreira ao dano.

Resposta do CFM à reportagem da Revista Superinteressante

Para tanto, o treinamento é fundamental. Não apenas um treinamento mecânico, como infelizmente ocorre em algumas instituições que acabam por formar seres autômatos, mas um treinamento que leve a um conhecimento concreto e introjetado, dada a importância do desenvolvimento da atividade de cada participante da cadeia de assistência.

A área da saúde não necessita de profissionais que executem os trabalhos mecanicamente, pois isso pode gerar falhas. A área da saúde precisa de profissionais que tenham, dentro das limitações possíveis de cada atividade, poder de decisão diante das peculiaridades que possam se apresentar no cotidiano, questionamento frente a casos novos e implementações que se façam necessárias à melhoria do serviço. Enfim, todos devem estar inseridos no sistema, inclusive se  contar com o relato da experiência do paciente, para que o foco da assistência não se torne mera falácia.

É um longo caminho para mudanças de concepções pré-existentes e a substituição para um modelo de qualidade, humanizado – no sentido mais pleno da palavra – e centrado no paciente, pois soluções mágicas, ao que se saiba, ainda não existem.

PS: o título do artigo é uma frase atribuída à Anton Tchekhov.

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Lívia Abigail Callegari, nascida  em São Paulo. Advogada inscrita no Brasil e em Portugal, atua na área do Direito Médico. Especialista em Bioética pela Faculdade de Medicina da USP e em Direito da Medicina pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. Atualmente é pesquisadora científica no Grupo de Pesquisa em Bioética, Direito e Medicina GBDM/USP. Ama estudar e transmitir o que aprende. Gosta de viajar e tomar contato com outras culturas. É apaixonada por artes em geral e livros, mas encontra na arte marcial e na dança o seu verdadeiro meio para a reconexão. Só faltou falar que ama felinos….

 

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