Slow Medicine – a medicina sem pressa

março 22, 2016
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Por José Carlos Campos Velho:

A prática médica atual tem se caracterizado pela falta de tempo: consultas rápidas, profissionais apressados, frequentemente médicos desconhecidos frente a pacientes anônimos, são circunstâncias em decorrência das quais não se estabelece conexão entre o profissional e o paciente. Esta é a situação habitual em atendimentos de urgência. Tal estado de coisas tem gerado grande insatisfação dos pacientes , dos médicos e dos demais profissionais de saúde.

Os médicos sentem-se desconfortáveis e frustrados pela qualidade de seu trabalho, com a permanente sensação de que o controle de sua atividade lhes escapa. O paciente sente-se como um joguete nas mãos de uma imensa máquina que kafkianamente o consome, não resolve seu problema e eventualmente o agrava. O uso inapropriado da tecnologia, com os exames complementares e procedimentos de alta complexidade toma a frente na atenção médica, gerando a conhecida situação descrita no ditado: “a carroça na frente dos bois”. Na prática médica cotidiana observamos frequentemente esta situação. Trata-se de uma cultura enraizada nos nossos dias: o paciente troca breves palavras com o médico e lhe entrega um enorme fardo de exames. Ou, logo após o início da consulta, expressa a idéia de que gostaria de fazer alguns exames, quando não afirma que quer fazer “tudo aquilo que tem direito”, comentando em seguida o custo de seu plano de saúde.

A filosofia da Slow Medicine caminha na direção contrária: resgata o tempo como parte essencial da abordagem médica. O tempo para ouvir. A Slow Medicine começa pela escuta cuidadosa e respeitosa do paciente. Enfatiza o raciocínio clínico e o cuidado focado no paciente.

Após as disciplinas básicas, quando o contato com o paciente passa a fazer parte da formação do médico, o estudante aprende a colher uma história minuciosa, atendo-se tanto às queixas principais como à história da moléstia atual. Aprende a analisar cuidadosamente as informações que o paciente lhe proporciona, o interroga sobre o funcionamento dos diferentes sistemas e aparelhos, sobre seu histórico mórbido, pergunta quais os medicamentos de que ele costuma fazer uso, as intervenções cirúrgicas prévias a que foi submetido, as doenças de que já padeceu. Investiga seus hábitos de vida e seus antecedentes familiares. Posteriormente o examina, observando seus sinais vitais, e conduz um exame clínico completo, avaliando cuidadosamente os sinais que o corpo do paciente lhe expressa. A partir deste conjunto de informações constrói uma hipótese diagnóstica e, embora nem sempre seja necessário, quando necessário solicita os exames complementares que possam confirmar esta hipótese.

Finalmente faz um planejamento da terapia a ser proposta, que pode significar a prescrição parcimoniosa de medicamentos ou a ponderação cuidadosa sobre riscos e benefícios de intervenções diagnósticas e terapêuticas. Ou, então, pode optar por solicitar uma avaliação especializada na eventual necessidade de cuidados de maior complexidade de um médico ou de profissional de saúde em áreas específicas – nutrição, fisioterapia, psicologia…. Não raramente limita-se a propor a mudança de hábitos de vida em lugar de prescrever “pílulas mágicas” o que, muitas vezes, traz melhores resultados em longo prazo. Ou simplesmente assegura o paciente de que está tudo bem, e sugere que apenas se observe a evolução do quadro – adotando a “demora permitida”, colocando a observação clínica como importante estratégia diagnóstica e terapêutica.

E, importante, a situação não termina aí. O retorno do paciente, o seu acompanhamento, a avaliação dos resultados da terapêutica são também etapas fundamentais da boa prática médica.

Embora pareça romântico, este é o cuidado médico que aprendemos, e esta deveria ser a maneira pela qual a assistência à saúde deveria ser conduzida habitualmente, não importando qual a especialidade. A Slow Medicine vem resgatar esta maneira de atuar, buscando a essência da arte de cuidar, através do estabelecimento de um sólido relacionamento com os pacientes, e de uma vivência em comum envolvendo o doente, o profissional de saúde, a família e sua comunidade, relação esta que se prolonga ao longo do tempo, permitindo a criação de laços estreitos e duradouros entre todas estas pessoas, para que se conheçam e se familiarizem uns com os outros. Esta aliança terapêutica certamente traz resultados concretamente melhores para o paciente – objeto-fim de todo o cuidado médico.

A Slow Medicine não se coloca contra o uso da tecnologia. Ao contrário, procura utilizar-se dela de maneira racional e apropriada, levando em consideração as evidências científicas atuais. Procura oferecer o melhor para aquele paciente em particular, respeitando seus valores e sua individualidade. De maneira sóbria, procura adotar a moderação, agindo de maneira gradual naquilo que é essencial – a busca de cuidados de qualidade, reconhecendo que fazer mais nem sempre significa fazer melhor.

A convivência com a diversidade da prática médica e o conhecimento de que a Medicina Complementar(*) pode oferecer alívio aos pacientes em algumas situações clínicas, é uma atitude que faz parte de nossa filosofia de trabalho. A busca essencial é o cuidado, a melhora, o alívio – o suporte. E estes alvos eventualmente são melhor atingidos através de práticas menos agressivas, como por exemplo, o alívio da dor através de terapias físicas e da acupuntura. O ato de cuidar, de se interessar compassivamente pelo sofrimento do outro e de tentar buscar alternativas de alívio daquele sofrimento já é terapêutico em si. A medicina complementar se utilizou desde sempre destes preciosos instrumentos – o tempo e a escuta, a proximidade e a intimidade com o paciente.

Embora estes princípios devam ser aplicados ao atendimento de todos os pacientes, os idosos se beneficiam enormemente desta abordagem. O idoso frágil é um indivíduo de alto risco para iatrogenia, tanto do ponto de vista da utilização descuidada de medicamentos quanto da prescrição pouco cautelosa de investigações diagnósticas e de procedimentos terapêuticos agressivos. Internações hospitalares intempestivas, particularmente em ambientes hostis como as unidades de terapia intensiva, podem ser extremamente deletérias para idosos e, além de levar a sofrimentos indizíveis e muitas vezes desnecessários, podem significar o ponto de inflexão para um processo de declínio progressivo e deterioração de sua saúde, de sua capacidade funcional e de sua qualidade de vida.

A Slow Medicine salienta os aspectos multidisciplinares da atenção à saúde. Enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, dentistas, terapeutas ocupacionais, nutricionistas, fonoaudiólogos, assistentes sociais, farmacêuticos, todos tem um papel fundamental no cuidado ao paciente e podem contribuir para o seu bem estar. Aqui é importante salientar que também estes profissionais devem estar imbuídos dos princípios de cuidados adequados e apropriados. Não é raro que sugestões de medidas invasivas e pouco racionais como, por exemplo, a proposição de passagem de sondas enterais para suporte nutricional em pacientes portadores de doenças avançadas ou em fases terminais, como a demência, por exemplo, partam de membros da equipe multiprofissional e criem situações de desconforto na família do paciente, muitas vezes já no limite de suas energias. É fundamental que esta filosofia de cuidados permeie todos os campos da prática médica e influencie a equipe multiprofissional.

Os princípios bioéticos da beneficência e da não-maleficência, a máxima de Hipócrates “Primum non nocere”, devem estar sempre presentes no pensamento dos profissionais de saúde em qualquer processo de tomada de decisões, bem como o conhecimento científico atualizado. No caso do exemplo acima mencionado, as evidências atuais sustentam que a nutrição enteral ou parenteral de pacientes em fase final de demência é má prática. A preocupação com o caráter transitório de muitas condutas, assim como a busca permanente de atualização são essenciais para a oferta do melhor cuidado de saúde aos pacientes.

Sabemos que o uso inadequado da tecnologia tem importantes implicações de ordem econômica. Os custos da assistência à saúde aumentam de forma estratosférica, existindo permanentemente o fantasma da inviabilidade do sistema público de assistência à saúde. A Slow Medicine inverte a estratégia do sistema e certamente diminui custos, na medida em que investe prioritariamente em procedimentos de baixo custo e baixa complexidade. Investe fundamentalmente no cuidado profissional, investe na pessoa, tanto naquele que cuida como naquele que é cuidado e se utiliza da tecnologia apropriada de forma cautelosa. Respeita os valores e as expectativas das pessoas. Investe na reflexão cuidadosa e individualizada. Evita a solicitação de exames inúteis e de procedimentos com resultados duvidosos ou pífios, muitas vezes com custos altíssimos. Tudo faz crer que esta prática pode ter impactos positivos na redução dos custos da assistência médica.

No artigo que inaugurou a idéia da Slow Medicine (Invitation to a Slow Medicine – Alberto Dolara) , já se apontam campos e áreas que podem se beneficiar da abordagem “Slow”. Entre elas destacam-se a medicina preventiva, e as estratégias de rastreamento, que por vezes podem desencadear intervenções desnecessárias e iatrogenias; a aceitação da história natural de doenças infecciosas, através do uso judicioso da antibioticoterapia e do respeito ao período de convalescença; o acompanhamento de doenças crônicas, com o uso apropriado da tecnologia em situações de maior risco e a incansável busca de mudanças de hábitos para seu controle adequado; a assistência hospitalar aos idosos e o planejamento cuidadoso de sua alta, situações nas quais a pressa e a falta de um seguimento adequado podem significar somente reinternações precoces; e os cuidados de final de vida, que certamente melhorariam sob o manto da Slow Medicine, pois neste contexto o tempo, a comunicação habilidosa e compassiva, o suporte espiritual ao doente e sua família tem muito mais a oferecer do que o abuso de recursos tecnológicos. Ressaltamos, mais uma vez, que tais princípios devem ser adotados nos cuidados a pacientes de todas as idades, independentemente de seu perfil cultural ou socioeconômico, atendidos tanto no consultório, como no pronto socorro ou no hospital(**).

 

*Medicina Complementar , segundo o Ministério da Saúde (Portaria n*971, de 03 de maio de 2006): as Práticas Integrativas e Complementares compreendem o universo de abordagens denominado pela OMS de Medicina Tradicional e Complementar/Alternativa (Medicina Tradicional Chinesa/Acupuntura, Homeopatia, Fitoterapia, Termalismo).

**Artigo escrito com a colaboração e revisão do Prof.Dr. Dario Birolini.

Bibliografia Consultada:

1. Updates in Slow Medicine

2. Slow Medicine: A Conversation With J.Ladd Bauer Md (Ann Armbrecht blog)

3. Howard Brody MD, PhD Interview by Tricia C Elliott MD, FAAFP Choosing Wisely: Reclaiming the Practice of  Medicine—Part 4

4. J. Ladd Bauer, M.D. , THE JOURNAL OF ALTERNATIVE AND COMPLEMENTARY MEDICINE Volume 14, Number 8, 2008, pp. 891–892 Editorial Slow Medicine

5. Clare Hawkins, M.D., M.Sc.
 – Slow medicine: Taking time to practice the art of family medicine Texas Association of Familiy Medicine , Jun 2 2014

6. Kurt Kloetzel, Princípios da Medicina Ambulatorial, EPU, 1999

7. Invitation to a “Slow Medicine” , Dr. Alberto Dolara Italian Heart Journal: Supplement. Official Journal of the Italian Federation of Cardiologists 3.1 (2002): 100-101

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