Por Ana Célia Rodrigues de Souza:
“A hora do encontro é também despedida. A plataforma desta estação é a vida.”
Milton Nascimento e Fernando Brant
Convido-os agora para uma rápida visita: adentrarmos pelo túnel do tempo e desembarcarmos em 2018, no período pré-eleitoral presidencial. Redes virtuais a mil por hora, muitas propagandas sendo veiculadas – fakes ou não -, discussões intermináveis ou findadas com o rompimento de relacionamentos, saída de grupos de WhatsApp ou Facebook , sérios desentendimentos familiares, preocupações com a convivência nas próximas festas de natal ou demais futuros encontros presenciais com aqueles que não comungavam nossas ideias. “Apagar”, “bloquear”, “isolar” (palavras que nos remetem a “fim”, “morte”) eram ações frequentes experimentadas por muitos, que jamais poderiam antever os dias atuais.
Carnaval de 2020: já se espalhavam pelo mundo algumas notícias sobre um surto do novo coronavírus na China. Grandes aglomerações nas lindas (ou nem tanto) festas por todo o Brasil. Alguns poucos pensaram em suspendê-las. Enfim, ocorreram e aqueles que se divertiam (ou não) jamais suporiam que poucos dias depois a OMS (Organização Mundial de Saúde) anunciaria a pandemia pelo novo coronavírus: Covid-19.
Repentinamente, todas as nossas rotinas foram quebradas e fomos convocados a olhar a dura realidade que nos cerca desde sempre, mas, até então, “negada” por um positivo mecanismo de defesa psicológico que nos poupa de estar de cara com a morte vinte e quatro horas por dia, todo o dia da semana.
Com a recomendação: “FIQUE EM CASA”, aqueles que podem – pois, tal fato é um privilégio – tentam se reinventar, querendo ou não, com maior ou menor dificuldades.
Dia 08 de Março, 23 de Março ou 04 de Abril … pouco importa. Se é segunda-feira, quarta ou domingo, tanto faz. Todos morremos metaforicamente para nossos jeitos de viver a vida e estamos todos em luto!
A primeira morte vivida por todos é a de si mesmos!
Para os que estão em casa: como passar o tempo, organizá-lo, suportá-lo? Como conviver com a família e amigos? Como e de que se alimentar? Como se exercitar? Como se entreter? Como se informar?
Num mundo governado por leis patriarcais, ordenadoras e limitantes de nossas vidas, parece mais fácil tocar adiante no piloto automático. Nada de preocupações com aqueles que não podem ficar em casa, excetuando-se, claro, os considerados “peças” fundamentais para a execução das atividades denominadas essenciais pelos governantes. Estou citando aqueles que não têm casa, ou vivem em favelas, ou estão desempregados, ou se desdobram na dita “economia informal”, enfim, aqueles que amargam uma miséria, só crescente no Planeta Terra.
Em tempos de pandemia, esse imenso grupo de pessoas distribuídas por todo o globo, finalmente, estão, no mínimo, ganhando visibilidade. Não é muito, mas já é um começo e embora saiba que possa durar pouco, sinceramente, desejo muito que possamos fazer algo de relevante para essa população à margem do sistema, resultando em mudanças profundas na desigualdade social em todos os países.
Esse momento de tentar se reinventar é decorrente da morte de nossas rotinas de ontem. E sempre que vivenciamos uma morte, necessitamos de um período para a elaboração dessas perdas, para que possamos nos transformar e nos readaptar, nascer de novo. Isso é o luto e essas são as mortes que denomino “simbólicas”, com suas facetas concretas e metafóricas.
Muitas pessoas estão vivenciando esse “cara a cara” consigo mesmas com grandes dificuldades, mas não vejo outra maneira a não ser “ir em frente” e “enfrentar”, pois TUDO passa!
Agora, pensando na população mundial, não podemos esquecer uma relativa pequena parte, que além desse luto comum a todos nós, está sobrecarregada por uma dor incomensurável: a dor de não poder acompanhar, cuidar, despedir-se e enterrar seus entes queridos que estejam morrendo solitários por COVID-19 (ou outras patologias).
Os rituais fúnebres são de enorme valia para nos auxiliar a passar por esse processo de luto.
Em alguns serviços hospitalares, principalmente na Itália – berço do movimento Slow Medicine – profissionais de saúde, tentando minimizar esse impacto, empáticos ao sofrimento humano e contribuindo para um processo de morte com dignidade, estão se utilizando da tecnologia de smarthphones, tablets ou computadores, propiciando o acompanhamento e a despedida por parte de familiares, quando possível, pois imagino o caos de um grande serviço com muitos pacientes morrendo nas unidades de terapia intensiva (UTIs).
Sendo assim, como um “bálsamo” para cicatrizar tamanha ferida, só consigo sugerir que possamos ligar a todo vapor essa maravilhosa capacidade psíquica humana da IMAGINAÇÃO. Por meio dela, talvez consigamos nos aproximar, estar atentos e zelosos para nos despedirmos de quem amamos e concretamente estamos isolados. No mundo imaginal tudo se torna possível, inclusive um ritual fúnebre. Boa sorte a todos!
Ana Célia Rodrigues de Souzaé psiquiatra e analista junguiana e que, como todos, está em luto no momento, encontrando tempo para, entre os atendimentos e grupos de supervisão virtuais, cuidar das plantas, aprender a pintar com aquarela, reaprender a cozinhar e na medida do possível, desfrutar da imensa saudades de seus familiares, todos isolados.