Existe Direito à Esperança?

fevereiro 19, 2022
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Por Cynthia Pereira de Araújo e Pessanha Junior:

“Os miseráveis não têm outro remédio a não ser a esperança.”

William Shakespeare

Qual o ativo mais importante do ser humano? Saúde, família, amor?

Acredito que seja o tempo. Tempo com saúde, tempo para a família, tempo de amor.

E é o tempo que norteia as decisões mais importantes na medicina.

Isso é especialmente verdadeiro na oncologia, mais ainda para pacientes com câncer avançado. Quando tomamos conhecimento de doenças graves, queremos saber se elas têm cura; queremos saber quanto tempo.

Queremos que exista tratamento, que as estatísticas estejam a nosso favor. Que haja acolhimento na dor física, na dor espiritual. Que a doença não passe a nos definir – que ainda sejamos mães, filhos, que ainda tenhamos um ofício, que sejamos mais do que pacientes.

A filosofia da Slow Medicine quer trazer o tempo de volta para o centro da medicina, uma medicina que foi se transformando mais e mais na busca pela melhor tecnologia; que tem se esquecido tantas vezes que sempre há algo a se fazer pelos doentes, mas nem sempre a se fazer pela doença; e que, frequentemente, não fazer, não insistir, não tratar é a melhor opção disponível. Para que seja possível que médicos e pacientes cheguem juntos a essa conclusão, se for o caso, o tempo é essencial. Tempo de escuta e compreensão, de ambos os lados.

A obra “Existe direito à esperança? Saúde no contexto do câncer e fim de vida” é resultado da minha pesquisa de doutorado sobre as expectativas equivocadas de pacientes com câncer avançado sobre seus prognósticos e o potencial dos tratamentos aos quais se submetem. O seu fio condutor foi a diferença entre direito à saúde e direito à esperança como fundamento para o acesso a tecnologias em saúde. Mas o resultado saiu bastante do limitado mundo jurídico, com análise extensa de estudos na área da saúde, especialmente estudos médicos, e uma pesquisa qualitativa com pacientes brasileiros e alemães, em três hospitais diferentes.

A literatura demonstra que grande parte dos pacientes se submete a tratamentos médicos exaustivos e com mais ou menos graves efeitos colaterais, porque esperam deles muito mais do que eles podem promover. E que a insistência nesses tratamentos faz com que conversas de fim de vida aconteçam muito tardiamente – quando acontecem –, com referenciamento apenas tardio para equipes de cuidados paliativos. O referenciamento precoce – logo após o diagnóstico –, por sua vez, faz com que se recorra menos à quimioterapia no fim de vida, priorizando-se a sua qualidade.  

A obra “Existe direito à esperança?” é, antes de tudo, uma obra sobre compreensão. As escolhas que fazemos são determinadas pelo que entendemos. Pacientes com câncer avançado não aceitam mais um ciclo de quimioterapia e todos os seus efeitos pela chance de viver mais um mês. Eles não abrem mão de uma vida mais confortável no presente por mais alguns dias de existência no futuro. Eles acreditam na cura – ou em uma vida inteira, longeva, apesar da doença.

O que faz com que tantos pacientes estejam tão equivocados, apesar de seus maus prognósticos, apesar do declínio físico, apesar da Internet? Em grande medida, uma má comunicação, gerada por má formação, princípios equivocados, conflito de interesses e falta de tempo.

A maior vilã desse cenário responde pelo nome de esperança. Ter esperança é sempre bom, dirão alguns. Possivelmente, mas depende do conteúdo que a preencha.

Ante doenças graves, podemos ter diferentes tipos de esperança. Esperança pela cura, por uma vida longa, pelo tempo necessário para realizações que são importantes para nós, por uma vida digna, por um fim de vida sem sofrimento. Se um médico resiste em comunicar um mau prognóstico ao seu paciente – com empatia, sem pressa – por acreditar que não pode tirar sua esperança de cura, ele retira dessa pessoa a chance de fazer escolhas informadas e decidir o que fazer com o restante da sua vida, dure ela quanto tempo durar. Ele retira dela a sua dignidade e coloca no seu lugar uma esperança que se confunde com ilusão.

Existem diferentes formas de fazer isso. Nem sempre um médico precisa dizer ao seu paciente que ele está caminhando para a cura para que ele mantenha essa esperança. Basta usar a linguagem médica: seus resultados estão promissores, estou otimista, o tumor diminuiu, você está reagindo bem ao tratamento. Ou optar pela linguagem técnica do silêncio: vamos iniciar um novo medicamento, você agora fará uma nova linha de tratamento, os estudos demonstraram muitos ganhos com essa nova tecnologia.

Socialmente, existe uma mentira compartilhada e incentivada pela mídia e pela indústria farmacêutica de que a medicina tem resposta para tudo; que, no mínimo, em algum lugar do mundo o dinheiro sempre poderá comprar a cura para qualquer que seja a doença. O indivíduo que entra em um consultório médico para receber um diagnóstico traz dentro de si a crença de que a ciência tem alguma solução, qualquer que seja o problema. Mesmo que, para muitos, a palavra câncer ainda seja sinônimo de morte próxima – ignorado o fato de que sob essa denominação existam mais de uma centena de doenças, com ótimo e péssimo prognóstico –, bastam algumas palavras de incentivo a tratamentos cuja finalidade não se entende ao certo para que essa suposta verdade não se aplique ao seu caso.

Muitas pessoas sentem grande desconforto quando chamo a esperança de vilã, especialmente quando recorrem a justificativas religiosas para a manterem. O problema não é confiar no milagre, eu sempre respondo; mas confiar na ciência para obter esse milagre. Acreditar, irracionalmente, na cura é muito diferente de acreditar nela por meio de uma tecnologia que, em seu lugar, promete sobrevida livre de progressão. Tecnologia é ciência, não fé.

Baseada na filosofia de Gabriel Marcel, lembro que essa esperança da ilusão, a vilã, não é a única possível. Existe uma esperança cheia, que tem sentido pragmático. Uma esperança de interferir em um desfecho favorável. É a esperança que se tem de viver a melhor vida possível, dure ela quanto tempo durar. É a esperança da dignidade. Uma esperança permitida pela filosofia dos cuidados paliativos, em que o tempo, este que é nosso maior ativo, com acolhimento e escuta, é o grande responsável pelas decisões, com ou sem aparatos tecnológicos complexos.

Essa é a esperança mais próxima da verdadeira saúde, da maior saúde possível, para a melhor vida possível, mesmo que no seu fim. Fim de vida é tão vida quanto antes e pode até representar a parte mais importante da existência de uma pessoa.

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“Era o ano de 1.979, e eu cursava o quarto ano do ensino médico, como interno e aprendiz de um querido e competente Professor, na Enfermaria de Clínica Médica da Santa Casa de Belo Horizonte, nosso Hospital/Escola. Em um dos leitos de nossa responsabilidade, uma jovem com uma cardiopatia grave, sem quaisquer chances de cura, que não fosse um transplante cardíaco, inviável naquela oportunidade. Meu Professor me chamou para uma conversa franca e verdadeira, e então me pediu que a acompanhasse em tempo integral, até que a morte acontecesse. O fiz, embora contrariado por estar fazendo “tão pouco”, tentando ao máximo diminuir o desconforto da paciente e da acompanhante/familiar.

Levei um bom tempo para associar aquele episódio a uma das melhores aulas práticas sobre Bioética e, só depois pude constatar que foi naquele dia que os Cuidados Paliativos me encontraram.

A vida profissional foi me mostrando o quão incompleto estava no quesito Bioética e Cuidados Paliativos, me forçando a buscar ensinamentos que me foram privados na grade curricular do Curso Médico.

Foi então, que em 2.001 me deparei com uma leitura transformadora: o livro Distanásia de Léo Pessini, complementada por dois outros: Humanização e Cuidados Paliativos e Eutanásia; que se completavam em uma trilogia.

Busquei então, a leitura de todos os livros que a bibliografia daqueles me indicassem, tendo então sentido a necessidade de uma nova graduação, a de Filosofia, na tentativa de uma verdadeira lapidação de caráter, para “merecer” um dia atuar em tal área; concluindo o curso em 2.010.

Então, em plena pandemia, recebi de presente em junho de 2021, o livro: Existe direito à esperança? , de Cynthia Pereira de Araújo, uma jovem advogada, com mestrado e doutorado na área de Saúde, sendo este título citado, a tese de seu doutoramento, feitas entre Brasil e Alemanha.

A leitura foi absolutamente impactante, percebendo que o caminho trilhado pela autora, praticamente o mesmo do meu, embora certamente com a vantagem de um “GPS” acadêmico para fazer as mesmas leituras e, com um menor teor de intuição que o meu naqueles anos.

Então, se eu tivesse hoje que orientar alguém para os estudos de Cuidados Paliativos e sua real dimensão na Bioética, indicaria começar com a leitura do livro de Cynthia.”

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Cynthia Pereira de Araújo é mineira, advogada e desde sempre se interessa pelas conexões entre o Direito e a Medicina. Trabalha na Advocacia Geral da União – e muito mais do que isso! – e é mãe da Beatriz.

Pessanha Junior é médico cirurgião geral e endoscopista na cidade de Cajuru, no interior de São Paulo, está profundamente envolvido há alguns anos no projeto Educação para a Morte, que conta com um grupo expressivo no Facebook, hoje com mais de 3 mil participantes. Como ele gosta de afirmar “… sou casado há 36 anos com a mesma mulher, Gilena, e pai de duas filhas, Luísa e Laura; todas com sobrenome materno, Luz, o que é uma verdadeira benção, e buscando nas relações honestas e horizontais o nosso Norte. Gostaria de um dia, na minha falta, ser lembrado como um EDUCADOR.

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