Fecha a janela, doutor

setembro 15, 2020
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Por Antônio Pessanha Henriques Júnior

“A discrição é para a alma o que o pudor é para o corpo.” – Francis Bacon

​​​O século XXI, especialmente o ano de 2020, tem sido um período que nos remete a lugares sombrios aos quais, mesmo em épocas pessimistas, dificilmente imaginaríamos voltar. As redes sociais permitiram a qualquer pessoa, de qualquer condição social, nível de instrução, com conhecimento ou não de causa, expressar seus sentimentos e opiniões em textos, vídeos, áudios ou fotos, sem absolutamente qualquer preocupação ética (e até estética). Por vezes, esse acesso deslumbrado e ilimitado se traduz em posturas agressivas, desrespeitosas, hostis, caluniosas e inconsequentes. O mais incrível, no entanto, é o alcance e a velocidade que este tipo de mensagem tem, maculando Biografias (maiúsculas e longas), individuais ou institucionais, que são pulverizadas a tal ponto que é praticamente impossível reconstruí-las.

A exposição pública de pessoas, a quebra de sigilos e confidencialidades, a invasão de privacidades e sentimentos, nunca foram tão desrespeitadas como agora. Não que inexistam leis ou punições, na verdade tais desrespeitos são amplamente descritos em códigos de ética e na própria legislação dos países. O que nos falta – lamentavelmente – é EDUCAÇÃO (e, por que não dizer, AMOROSIDADE).

A vida em sociedade exige exercícios em Moral e Ética, que impõem limites que não devem (ou não deveriam) nunca serem ultrapassados. Entre o que penso e o que faço, há um intervalo enorme. Respeitados os limites, danos serão sempre evitados, e sentimentos de culpa serão minimizados. Ao resistirmos à exposição do outro, preservamos a nós mesmos. Isto se chama SOBRIEDADE. Sem ela, viveremos de escândalos, crenças falsas, e a terrível sensação de não poder confiar em nada ou ninguém (qualquer semelhança com nossos tempos atuais NÃO é mera coincidência). 

Se a preservação da sobriedade é tão necessária na vida cotidiana, desde o ato de conversar com seu vizinho até declarações públicas das autoridades do país, que dizer do seu papel no exercício da medicina? Não estamos nem mesmo nos referindo ao Código de Ética Médica, que deixa muito clara a postura esperada do médico diante de seus pacientes. A sobriedade é algo mais profundo do que acatar um código ou mesmo uma legislação. Trata-se de uma postura de vida, e de oferecer ao outro o respeito que lhe é de direito. Isso só pode ser alcançado com o exercício diário de relações honestas e horizontais, permeadas de humildade, inteligência e paciência, e desprovidas de atitudes arrogantes ou prepotentes. Relações sem pressa.

A sensação, infelizmente, é de que voltamos aos tempos da fofoca na janela, ou nos bancos da praça. Havia uma cena que, indignados, víamos acontecer de forma recorrente no Hospital do Pronto Socorro João XXIII, em Belo Horizonte (MG), o maior hospital de trauma do estado. Eram as décadas de 70 e 80, quase meio século atrás. Famílias inteiras costumavam ficar em frente à entrada da unidade de emergência, onde chegavam as ambulâncias com feridos graves, e se “deliciavam” ao assistir pacientes sendo retirados às pressas e direcionados à sala de politraumatismo. Comiam pipoca, cachorro quente e refrigerante, dos carrinhos de lanche que ficavam estacionados na ampla calçada em frente ao hospital, e comentavam animadamente sobre a situação trágica deste ou daquele sujeito, classificando qual parecia mais estropiado. Faziam disso o programa de sábado e domingo. A curiosidade, assim como a fofoca, tem um lado de patológico se não lapidado. Quem a lapida – vejam só – é a tal da EDUCAÇÃO. A sobriedade deriva dela, assim como as bases para uma sociedade mais justa e respeitosa. 

Hoje as janelas e os bancos da praça foram substituídos pelas redes sociais, e as entradas das unidades de emergência já não podem mais ser transformadas em espetáculo. Mas nossa curiosidade mórbida não parece ter sido nem minimamente lapidada, assim como nossa falta de Educação (e aqui, lamentavelmente, incluem-se muitos médicos e profissionais da saúde, visto que a Educação – assim, com letra maiúscula mesmo – pouco tem a ver com instrução, e sim com nossa compreensão do mundo). É essa lapidação que o movimento Slow Medicine propõe, com sua medicina sóbria, respeitosa e justa: compreender o paciente além da sua doença, respeitando-o no contexto da sociedade onde vive e, principalmente, preservando-o dos olhares mórbidos de quem quer que seja. Cabe a nós, médicos, manter as janelas fechadas.​​​​​


Antônio Pessanha Henriques Júnior: Nascido em Cajuru, pequena cidade do interior de São Paulo, na região de Ribeirão Preto, graduei-me médico na Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais, com residência médica em Cirurgia Geral / Trauma e Endoscopia Digestiva, nos Hospitais João XXIII e Felício Rocho. Graduei-me depois em Filosofia, que me proporcionou uma verdadeira ressureição. Desde então, com um especial interesse em Cuidados de Fim de Vida, há 8 anos participo de um projeto,  EDUCAÇÃO PARA A MORTE – na cadeira de Filosofia do ensino médio da principal escola estadual da cidade, e administrador de grupo no facebook de mesmo nome onde se busca passar conceitos principalmente nos quesitos da ÉTICA e da BIOÉTICA, recorrentes num aprendiz da Slow Medicine. Casado há 35 anos com a mesma mulher, Gilena, e pai de duas filhas, Luísa e Laura; todas com sobrenome materno, LUZ, o que é uma verdadeira benção, e buscando nas relações honestas e horizontais o nosso Norte. Gostaria de um dia, na minha falta, ser lembrado como um EDUCADOR.

Este texto foi compilado com a colaboração de:

Ana Lucia Coradazzi: Médica oncologista clínica, graduada pela Faculdade de Medicina de Botucatu/UNESP e com especialização em Cuidados Paliativos pelo Instituto Pallium, atualmente sou responsável pela equipe de Oncologia Clínica da Faculdade de Medicina de Botucatu. Sou autora do livro No Final do Corredor e do blog homônimo (www.nofinaldocorredor.com), nos quais escrevo sobre o quanto nosso envolvimento nas histórias de vida dos pacientes pode ser transformadora, principalmente para nós mesmos. Moro em Jaú, no interior de São Paulo, com meu marido Fábio e as duas luzes da minha vida, Mariana e Lorena, além da minha coelha de estimação, Julieika. Junto deles, busco o equilíbrio de que tantos dos meus pacientes falam, encontrando na corrida e na prática do yoga a paz que preciso para manter a mente saudável.

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