Por Flávia Aires
“A resposta certa não importa: o essencial é que as perguntas estejam certas.”
(Mário Quintana)
Como fonoaudióloga hospitalar, sempre trabalhei com o propósito de fazer diferença na vida daqueles que, por algum motivo, precisavam da minha ajuda.
A possibilidade de impactar a vida de pacientes e seus familiares através do meu trabalho, seja reabilitando a deglutição e tornando possível o retorno e o prazer de uma alimentação por boca, seja trabalhando a comunicação nas suas diversas formas (verbal, não-verbal ou suplementar), sempre foi a força motriz para fazer o que eu faço. Poder ser uma pequena parte na história de vida deste paciente e ser lembrada como alguém que esteve a seu lado e o ajudou num momento de fragilidade e vulnerabilidade.
No entanto, ao longo da minha prática, me vi aprendendo com cada um deles e percebi que sou eu que os tenho como parte da minha história, profissional e pessoal.
Na atuação clínica, sempre priorizei a relação profissional-paciente como boa prática na área da saúde. Acredito que estabelecer uma relação mais próxima e estreitar vínculo com o paciente, seus familiares e equipe profissional, nas suas diversas especialidades, é fundamental para um cuidado efetivo e integral ao indivíduo que precisa e busca ajuda.
Essa tríade, paciente/família/equipe interdisciplinar, é essencial para alinhar expectativas e prognóstico, definir objetivos e traçar um plano terapêutico individualizado, além de uniformizar a comunicação entre os envolvidos, favorecendo assim, maior confiança e tranquilidade ao paciente e familiares, no sentido de uma equipe alinhada no seu propósito de assistência e cuidados.
Ao longo da minha profissão, me vi muitas vezes limitada e frustrada como profissional de reabilitação, no sentido de que nem sempre era possível “melhorar” ou reabilitar aquele paciente. Pacientes com doenças graves e incuráveis, em estágios avançados, eram um desafio. E, mais uma vez, me tornei aprendiz daqueles que eu deveria ajudar, porque eles me mostraram que há vida e possibilidades além da cura. Possibilidade de qualidade de vida, enquanto há vida. Possibilidade de conforto, de suporte físico, emocional, espiritual e social, porque quem sofre, necessita da competência técnica, mas também do afeto e da empatia dos profissionais de saúde que o acompanham.
Na fonoaudiologia hospitalar, é frequente o atendimento a pacientes com diagnóstico de doenças incuráveis e ameaçadoras da vida, como aqueles com doença de Alzheimer, doença de Parkinson, Esclerose Lateral Amiotrófica (E.L.A.), câncer metastático sem possibilidade de tratamento curativo, dentre outras, e que, muito frequentemente, levam à perda das funções de deglutição e/ou de comunicação. E foi na prática clínica com estes pacientes que encontrei na Geriatria, nos Cuidados Paliativos e nos princípios da Slow Medicine o apoio, a beleza e a fantástica prática mais humanizada na saúde. A Fonoaudiologia, em seu formato slow, é ainda mais encantadora na prática do que na teoria.
Além de uma boa anamnese, do exame clínico completo e da avaliação funcional da deglutição, praticar a escuta compassiva e levantar a biografia daquele paciente para entender quem é aquela pessoa, sua história e a dinâmica familiar são fundamentais no acompanhamento deste indivíduo ao longo da doença.
No aspecto fonoaudiológico, saber qual a importância da comida para essa pessoa, o que ela gosta de comer e se tem vontade de comer, além dos aspectos relacionados à comunicação, como assuntos de interesse e hábitos de leitura e escrita, são de extrema valia para estabelecer um plano de cuidado de acordo com a demanda deste paciente e tornar esse atendimento mais compassivo e humanizado. É exatamente o que prega o segundo princípio da Slow Medicine: Individualização.
Em estágios iniciais, o seguimento fonoaudiológico tem o objetivo de evitar o avanço mais rápido da doença e manter a alimentação por boca segura por mais tempo, melhorando assim, a qualidade de vida deste paciente. Este acompanhamento deve ser continuado ao longo de toda a evolução da doença, no sentido de gerenciar o aparecimento ou piora dos sintomas de deglutição e realizar as adaptações necessárias de acordo com as dificuldades em cada fase. A necessidade de realizar adaptações na dieta oral, visando facilitar a ingesta e minimizar os riscos de complicações pulmonares por broncoaspiração alimentar, é muito comum. O uso de estratégias compensatórias para tornar a deglutição mais eficiente e segura, além da orientação e treino de cuidadores para oferta de alimentação tem papel fundamental para o sucesso do conforto do paciente e como suporte à família.
Em fases mais avançadas, com o paciente acamado, sonolento e com prognóstico reservado, a reabilitação deixa de ser o objetivo, e oferecer suporte e conforto, com gerenciamento da alimentação, quando possível, é a prioridade. Medidas clínicas para ajuste salivar, frequentemente são necessárias, visando amenizar a sensação de boca seca ou reduzir o desconforto respiratório causado pela saliva, evitando assim, a necessidade de medidas mais invasivas como a aspiração de vias aéreas pela equipe. Todas essas estratégias, independentemente da fase de vida em que o paciente se encontre, podem ser inseridas no contexto de princípios slow como Prevenção e Qualidade de Vida.
Durante todo o período de seguimento fonoaudiológico, é essencial que a equipe esteja alinhada nos objetivos do plano de cuidados e as decisões compartilhadas entre equipe, paciente e familiares, sempre analisando os riscos e benefícios envolvidos e priorizando o conforto e a demanda deste paciente. Medidas relacionadas à alimentação, como a indicação de via alternativa de alimentação, são possíveis, mas devem ser bem indicadas, estar alinhadas ao plano de cuidados e trazer benefícios ao paciente. A indicação depende da fase da doença e do prognóstico e perguntas como: O paciente quer comer? Dá para ele comer? A dieta enteral trará benefício? Quais são os riscos de manter uma alimentação por boca? É possível manter uma dieta de conforto? Estes são pontos importantes a serem considerados na decisão da equipe, e a participação ativa do paciente nessas decisões transforma a estratégia escolhida num caminho único, moldado com cuidado para aquela situação específica. É disso que estamos falando quando nos referimos ao princípio slow da Autonomia. Os valores e expectativas do paciente são, sempre, o centro do cuidado.
E assim, quando todas as pessoas envolvidas neste processo estão alinhadas e compartilham a mesma direção, percebendo aquele indivíduo como único, com sua história, desejos e necessidades. Ao final, quando a morte se aproximar, é mais fácil enxergá-la como parte natural da vida e saber que a travessia será realizada com menos sofrimento e com respeito àquela biografia. Nada mais slow.
Flávia Aires é fonoaudióloga hospitalar, com formação em Neuro-geriatria pelo HCFMUSP. Atualmente é responsável pelo Serviço de Fonoaudiologia do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, fundadora e diretora da empresa Reabilita Fonoaudiologia. Apaixonada pela Reabilitação e pela troca multiprofissional que a área possibilita. Mora em São Paulo, e é mãe do Samuel e do Bento.
Imagens de re_bekka, via Depositphoto