As lições do cinema: “Padre Johnny”
Por Carla Rosane Ouriques Couto e Vera Anita Bifulco
“Penso que outros médicos concordariam comigo que nós somos treinados para falar, mas não para permanecer em silêncio. Somos ensinados a explicar, mas não a escutar. Nada nos foi ensinado sobre a paz interior nem sobre solidão, e muito menos sobre a força do amor e da companhia espontânea.”
Derek Doyle.
Esta é a história do encontro entre dois homens: Jan e Patryk. Quem conta a história é Patryk. De início informa que os dois são apenas dois “inúteis”. Ele próprio, um jovem criado numa família violenta e pobre, sem trabalho, dependente de drogas e com dívidas no tráfico da pequena cidade chamada Puck. Jan, outro inútil solitário, que mal enxergava e andava. Era um jovem padre católico, estranho e estranhado por dizer o que pensava. Jan era de outra região da Polônia, um estrangeiro em más relações com os superiores locais, e até então teria tido uma vida onde tudo estava contra ele. Nascido prematuro em julho de 1977, tinha sequelas de marcha e de visão. Atraído por causas perdidas, ministrava aulas para presidiários.
Jan tinha outras práticas estranhas: visitar com a amiga Ania, pessoas pobres que estavam perto da morte, em casa. Instigado por Ania, cansada de ver os tristes cenários de morte, Jan inicia um projeto de fundação de um hospice, hoje a Casa de Acolhimento Padre Pio (The Puck Hospice, fundado em 2009). Enfrentava novamente a oposição de seus superiores da Igreja. O encontro com Patryk ocorre quando a justiça determina que o jovem cumpra um período de serviços no hospice de Jan, em funcionamento ainda precário.
O desenrolar da narrativa traz a nós, profissionais de prática Slow, algumas indagações: ser um cuidador paliativo exige quais habilidades humanas e técnicas? É possível que tais habilidades sejam desenvolvidas ou ensinadas? Quais os caminhos que Jan percorre para transformar Patryk num cuidador de excelência? Creio que esta reflexão é bastante relevante para a Slow Medicine.
Vejamos o que se pode extrair desse belo encontro.
Ao ver Patryk pela primeira vez, Jan afirma: “sua presença exala intensidade…” e designa para ele vários trabalhos na casa, desde o apoio a enfermagem à pequenos consertos. Aí estão os primeiros elementos: empatia, acolhimento, confiança. Atitudes estranhas para Patryk, um jovem sem autoestima, um “perdido” em sua própria definição. Jan Kaczkowski era um padre católico polonês, mas tinha outro “eu” (talvez o “eu expandido” de Freud): muito bem-humorado, alegre, musical, dançante e brincalhão. Esse “eu” gostava de ser chamado de “Johnny”. Johnny e Patryk criam um vínculo e passam a ter longas conversas entre um baseado e outro nas horas de folga, pois Jan dizia: “já acham que eu fumo maconha mesmo…”
A doença de Jan, um Glioblastoma agressivo (tumor cerebral) diagnosticado logo após se conhecerem, exige de ambos novas tarefas. “A vida não é justa” dizia Jan, mas precisamos “ter responsabilidade e fazer as coisas até o fim”. E Patryk que achava ter tido sorte nesse trabalho comunitário, enfrenta desafios complexos. A percepção da vida e de Deus, ou algo que o represente, começa a mudar em Patryk. Segura as mãos de quem está morrendo, segura um celular para a mãe se despedir de um filho pequeno, faz amizade com idosos, aprende a ler poesia com uma idosa. Começa a pensar diferente, talvez Deus não esteja “cagando para o mundo”. Ele começa a ser “visto”, “ouvido” pelos pacientes e equipe do hospice.
Jan considera sua doença “parte do seu chamado”, e segue seus planos de estruturar o hospice. Patryk se torna um amigo inestimável. Tem suas recaídas e problemas, e Jan permanece sempre firme e confiante ao seu lado, inclusive testemunhando a seu favor em tribunais. Aí aparecem outros elementos do Cuidado Paliativo: o valor do tempo, a confiança mútua e a certeza de que estamos conectados num plano maior. Patryk começa a ver sentido na morte, como na vida. Percebe a importância de termos calma e tempo para perdoarmos e sermos perdoados. Ao perder uma paciente idosa especialmente querida, aprende e leva consigo o valor da amizade.
Jan depõe no julgamento de Patryk por ter descumprido uma sentença provisória e diz:
– “O verdadeiro valor do ser humano só pode ser visto na presença de uma verdadeira tragédia humana, eu o vi (Patryk) num lugar repleto de doentes terminais. Não é apenas um serviço comunitário. Consigo ver o sorriso de pacientes. Quando um moribundo sorri a outro ser humano, que não se trata de um parente ou amigo, ou é apenas uma pessoa muito boa, ou alguém em quem ele confia, e cuja presença ele valoriza”.
Mais lições estão aqui representadas: além da presença, a qualidade da presença. O relacionamento pessoal, não automatizado, o olhar, a escuta, o contato. Outra passagem comovente da história é o encontro entre Patryk e Pablo, o traficante que o perseguia. A mãe de Pablo é internada na casa, e os dois aprendem com essa convivência.
Jan começa a ter momentos difíceis na doença: tem dores, passa períodos acamado e tem dificuldades de se mover. Patryk está a seu lado, agora trabalhando como cozinheiro e estudando culinária. O humor permanece entre eles, tão suave como a luz que penetra nos ambientes do hospice em alguns momentos. O trabalho do cuidar também permanece. As velas seguem sendo apagadas algumas horas depois da morte de alguém, que nunca morre só. Alguém está ao seu lado, segurando as mãos e confortando.
Jan comparece a um evento público. A primeira questão da entrevista é: o que devemos dizer aos entes queridos que estão morrendo?
“Nós doentes terminais não precisamos que nos consolem, deem tapinhas nas costas e digam que vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem…a mensagem que precisamos é – não tenha medo, aconteça o que acontecer, estou com você. Estarei com você, não vou te abandonar porque te amo. Mas para dizer isso, é preciso trabalhar nisso a vida toda. É preciso se esforçar porque relacionamento são difíceis. Nada nos isenta da responsabilidade de cultivar relações com aqueles que amamos. O tempo é a coisa mais valiosa que podemos oferecer ao outro. O nosso tempo…”
Os Cuidados Paliativos não são românticos, nem belos, nem fáceis, como demonstra a história. O fato de Jan ter existido, passado por aqui, de certa forma nos consola para as possibilidades de que essa especialidade seja realmente expandida no mundo. Aproximadamente 88% das pessoas em todo o mundo que precisam de cuidados paliativos não têm acesso a eles e, no Brasil, infelizmente, não é diferente. Isto significa que milhões de crianças e adultos estão sendo desassistidos em suas necessidades no final da vida. 2
O que Jan ensina a Patryk não está claro e nem é determinado pelos currículos dos cursos de saúde. Trata-se de educar pelo exemplo, pelo amor e pela fé. Pela certeza de que há um sentido em chegar e partir. Trata-se de algo que supera os muitos elementos para “que tudo dê errado”, como parecia ser na chegada de Patryk e nas suas recaídas. O sofrimento e a morte não são para os fracos por mais que seja o que temos de mais certo na vida. Quem nunca se deparou com um cenário de dor e morte, longe está de entender a vida. É nesse fio delimitador do ser e do deixar de ser que o mistério da vida encontra significado.
A vida de Jan e sua obra é plena dos princípios da Slow Medicine: o valor do tempo que é presença, de certa forma infinito em sua dimensão humana. Talvez tenhamos cinco minutos para consolar um filho diante da morte do pai, mas serão para esse filho, perenes em sua memória e em sua saúde mental. A paixão e a compaixão pelo ser humano integral, com suas belezas e mazelas, sem julgamentos, com amor, acreditando no potencial, na centelha divina que nos habita e que por mais que os homens não consigam ainda admitir, que somos todos, sem exceção filhos de um mesmo Pai ou de um princípio do bem seja que nome se dê ou a que religião se siga. Assim como as sombras que carregamos essa luz do bem habita a todos nós. A mágica capaz de desenvolver esse potencial está certamente em outro ser humano, e menos em livros e manuais. Mais na consciência do que na ciência. Difícil de nomear mas possível de reconhecer e sentir, esse sentimento que uniu Jan e Patryk pode estar presente nas relações de trabalho, e entre equipes e pacientes. Um vínculo capaz de sustentar a travessia de quem está partindo.
Ao assistir “Padre Johnny” é impossível não lembrar do médico Derek Doyle, pioneiro em Cuidados Paliativos, e de sua obra “Bilhete de Plataforma”, na qual descreve o cotidiano de um hospice: um espaço de tempo no qual risadas e lágrimas acontecem, se intercalando, como fios cruzados de uma trama que de alguma maneira criam força a despeito de aparentemente estarem em lados opostos. Vida e morte. Vidas que vão e renovam vidas que ficam. A humildade de Doyle está presente em Jan, talvez de forma mais evidente, pela profissão. Jan era Doutor em Teologia e especialista em Bioética. Tem pelo menos 13 livros publicados em seu país, ainda sem tradução para o português. Após ter subido a plataforma de embarque com muitas pessoas, honrando o seu bilhete de acompanhante, Jan teve ao seu lado nessa travessia, além da família, um jovem considerado “causa perdida”, mas que se transformou no pouco tempo de convívio. Um momento emocionante do filme é quando o pai de Jan se revolta e diz que gostaria de ir no lugar do filho. Jan lhe responde: “não interfira no meu chamado, você fez tudo que se pode fazer como pai”.
Derek Doyle afirmava que andando a noite pelos corredores do hospice se perguntava: “como uma enfermaria pode ser quieta e pacífica mesmo sob a sombra da morte. Nesses momentos há um grande sentimento de mistério e de maravilha, e um profundo senso de honra ao se perceber que é possível ministrar as pessoas esse tipo de cuidado ao fim de suas vidas.” Essa é a sensação do expectador em muitas cenas da vida de Jan, silenciosas, apenas iluminadas pelos raios de luz do sol, entrando pelas persianas. São momentos em que a ciência silencia, e a fé e o amor inundam o cenário. Um cenário que o movimento Slow Medicine aspira, persegue e acredita que todos merecemos, da chegada à partida. Fica o desejo de que seres humanos como Jan não sejam mais vistos como estranhos, e que cuidar de pessoas no fim da vida, seja tudo, menos uma causa perdida.“
Em vez de esperar a vida toda por algo,
comece a viver hoje.
Já é bem mais tarde do que imagina.”
Jan Kacskowski. 1977-2016.
Ficha técnica:
Padre Johnny (Netflix) Título original: “Johnny”
Direção: Daniel Jaroszek Roteiro: Maciej Kraszewski
Protagonistas: Dawid Odrodnik e Piotr Trojan
Polônia, 2022
Referências:
Carla Rosane Ouriques Couto. Médica pela UFSM (1984), especialista em Pediatria, Saúde Pública, Saúde do Trabalhador, Medicina de Família e Comunidade, Educação Médica, Terapia de Família. Mestre em Psicologia Social. Perita Médica Federal. Mãe e avó. Sou envolvida e intrigada pelo ser humano e sua aventura. Em busca de uma jornada com mais sentido, hoje sou estudante de Psicanálise.
Vera Anita Bifulco. Psicóloga, Psicooncologista, Mestre em Cuidados Paliativos pelo Cedess/Unifesp, Coordenadora do Comitê de Cuidados Paliativos pela Sociedade Brasileira de Psicooncologia (SBPO), psicóloga integrante da equipe multiprofissional de Cuidados Paliativos da Unifesp. Mãe e avó. Não vejo os Cuidados Paliativos romanceados como muitas vezes é colocado pela mídia. Morrer é difícil, principalmente morrer bem, com dignidade e sem sofrimento. É uma construção de toda uma vida. Acredito no potencial humano de transformação capaz de mitigar o sofrimento de seu semelhante através do conhecimento, aprendizagem constante, empatia e doação.
Maravilhoso texto, que traz com sensibilidade as dores dos finais. Além de ser uma ótima dica de filme.
DEUS abençoe a todos os médicos, enfermeiros, profissionais da saúde física e mental; padres, religiosos, sem conceito de religião, teem uma palavra de consola ou conforto para um ser humano. Abraço fraterno de Liana.